Por baixo de Zagreb está uma cidade que só eu consigo ver. Os edifícios, a paisagem, as pessoas e os objetos estão no mesmo lugar, quase sobrepostos, mas apresentam ligeiras diferenças nos contornos, no tom de algumas cores. Às vezes, é difícil explicar com exatidão os contrastes entre Zagreb e a cidade que só eu consigo ver. Não é uma cidade exata, mas existe, apresenta um certo nível de tangibilidade que, para mim, tem muita importância. Por baixo de Zagreb está a cidade que conheci quando vim aqui pela primeira vez, há quase vinte anos, e que fui ampliando em viagens mais ou menos espaçadas, memória e esquecimento.

Há ruas por baixo destas ruas. Era aí que eu caminhava, espantando-me com detalhes. Agora, o sol de setembro tinge estas pedras; antes, talvez estivessem cobertas de neve acabada de cair, eu a sentir esses pontos gelados a derreterem-me na pele, ou talvez estivessem cobertas por sol, também setembro, comparável com este, mas diferente, outro sol, outro setembro.

Passam elétricos da mesma maneira que passa o tempo. O ruído que fazem ao deslizar nos carris de aço permanece no ar apenas por instantes. Poderia agora entrar num desses elétricos e seguir até ao fim da Ilica. Poderia também encontrar lugar numa das esplanadas da praça das flores, onde o tempo está parado, onde as tardes se transformam numa matéria informe, transparente.

Quantas cidades existirão ainda por baixo desta? Entro em antiquários onde folheio livros e revistas dos anos da Jugoslávia.

As ruas do centro de Zagreb enchem-se com as vozes de homens, mulheres, pais e mães de crianças a correr, vendedoras de flores, um homem que agora vende maçarocas de milho e que venderá castanhas em outubro, uma freira vestida de negro até aos pés, adolescentes muito louras de calções. A língua croata é uma superfície sobre a passagem do tempo, as sílabas cortam os instantes.

Quantas cidades existirão ainda por baixo desta? Entro em antiquários onde folheio livros e revistas dos anos da Jugoslávia. As letras dessas páginas ignoram este presente, falam ainda para a década de setenta, estão ainda numa cidade e num país que só pode ser visto por alguns. Nas fotografias das revistas, há figuras que sorriem abertamente, exibem a confiança de estarem no agora, e estavam.

Deito-me na relva do parque Zrinjevac. Este verde vive a força da sua juventude. Assisto ao céu entre copas altas de choupos. Os troncos partem de onde estou, erguem-se demoradamente e, de uma vez, explodem em ramos e folhas, explosão imóvel, tocada apenas por uma brisa. A cor do céu emana sobre si própria, lança azul sobre azul, cria variações ténues dessa cor, possíveis ou não. Fiapos de nuvens desfazem-se sobre esse fundo absoluto. Muito devagar, num êxodo soprado, é assim que as nuvens avançam, desaparecendo.

Também essa é uma forma de entender o tempo, de exprimi-lo. Levanto-me da relva, sinto a temperatura, os sons e a presença de Zagreb. De repente, parece-me que talvez eu próprio seja uma das diferenças desta cidade. Se fui eu que mudei, deverá existir outro no meu lugar, mais ou menos desencontrado de mim, diferentes contornos e cores. Quem conseguirá vê-lo?

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