A beleza medieval

No sopé de uma montanha avassaladora, ao largo da Boka Kotorska, cresceu uma das mais antigas e bonitas cidades de Montenegro, considerado o mais novo país do mundo. Cidade histórica com os pés no Adriático, Kotor é Património da Humanidade. A UNESCO assim a classificou.

Texto Petra Alves
Fotografias Constantino Leite

Primeiro, uma confissão: entrar em Kotor foi obra do acaso. E, como tantas vezes acontece, o não planeado acaba por sair tão bem ou melhor do que os trajetos desenhados a régua e esquadro. O elemento surpresa terá certamente influenciado a nota final que atribuímos à cidade, uns 9 pontos em 10, mas ela merece cada ponto e cada vírgula.

Depois de largas centenas de quilómetros por estradas de Montenegro, que faz fronteira com a Sérvia, Kosovo, Albânia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, Kotor foi uma lufada de ar fresco. Estávamos no final da viagem pelo país e o pensamento ia já em modo TGV com destino a casa. Então, o que tem Kotor que nos fez abrandar e ficar? O cenário. Quer se saiba ou não da existência de uma Kotor no mundo, quem por ela passa pode sentir várias coisas: indiferença não será uma delas. Segunda confissão: tínhamos acabado de ser multados, por falta de cinto de segurança. Isto, quilómetros antes de entrar na cidade. O ânimo não estava, portanto, elevado. Valeu-nos a generosidade de Kotor, que absolveu todos os nossos «pecados».

Apesar de começar a aparecer nos roteiros turísticos, Montenegro, de uma forma geral, não compete com a vizinha Croácia. Por enquanto, a afluência de visitantes é quanto baste para que a autenticidade se mantenha. Mas talvez não o seja por muito mais tempo. Um dos pontos que nos atraiu, assim que avistámos Kotor, foi o porto. Não propriamente o porto, mas os barcos que lá estavam atracados. Como é que numa terra tão pequena, perdida na costa do Adriático, reluzem tantos «diamantes»? Kotor quer que o seu porto recupere a importância que teve a partir da Idade Média. Os últimos séculos assistiram ao desenvolvimento do comércio e dos assuntos marítimos. Aqui eram negociados os bens que chegavam de outras partes do mundo e consta que é a única cidade, desta região, que mantém a tradição marítima: a marinha está ativa há mais de doze séculos e continuam a ser usadas a indumentária e as cerimónias originais.

De há uns anos para cá, além do investimento nas infraestruturas, o imposto sobre serviços marítimos foi diminuído para atrair capital estrangeiro. É mais em conta ter aqui um barco de recreio atracado do que na Croácia ou Itália. Pelo menos, é o que diz quem os tem. Porto Montenegro, por exemplo, tem na Baía de Kotor uma marina com vários serviços associados, para além de apartamentos e hotel. Outros grandes grupos estão a investir na região com o objetivo de a transformar num pequeno paraíso destinado a orçamentos substanciais. No verão veem-se cruzeiros de Veneza e da Grécia e muitos turistas de um dia vindos de Dubrovnik, já que a cidade fica a apenas duas horas da fronteira com a Croácia.

Perto da cidade não há praias de areia branca, só um espelho de água irresistível. A toalha estende-se nas pedras.

Considerada uma das cidades medievais mais bem preservadas, Kotor tem cerca de 2000 anos. É pequena, labiríntica, rica e quente (no verdadeiro sentido do termo, sobretudo em agosto). Antes de avançar pela zona antiga, abraçada por muralhas, há que parar no mercado que se desenvolve junto à entrada; é uma antevisão do que a gastronomia local tem para oferecer. Entre frutas, legumes, vegetais coloridos e aromáticos, presunto e mel destacam-se as «joias da coroa». Para quem gosta de queijo, há os com pinhões, nozes, presunto, paprica, pesto, de cabra, ovelha e vaca. A variedade de cogumelos selvagens é ainda maior, já que cerca de metade do território montenegrino é floresta. Há peixe, como em todos os mercados, porém aqui encontra-se um que nos é especialmente familiar: vendem-se sardinhas, mas preservadas em sal durante três meses. Estas iguarias tradicionais são acompanhadas por vinho branco misturado com meio copo de água – é assim que o bebem por cá. Os produtos são locais e quem os vende tem orgulho em dizer que tudo o que ali está exposto é daquela terra dos Balcãs.

A cidade antiga é seguramente a parte mais bonita. Desenvolve-se dentro de muralhas com cerca de 20 metros de altura, levantadas no século XV como proteção aos ataques do Império Otomano. Kotor sofreu três grandes terramotos: nos séculos XVI e XVII, ficaram danificados muitos edifícios emblemáticos, cujos resquícios foram mais tarde incorporados em novas estruturas de estilo barroco. Mais recentemente, em 1979, a terra voltou a tremer e mais uma vez vários marcos arquitetónicos foram afetados. Mesmo depois de tantos abanões, a cidade tem praças encantadoras e vários modelos de arquitetura medieval preservada ou restaurada. Conta uma história preenchida com ocupações de vários povos, o que se reflete na arte e contribui para a sua beleza. Tem múltiplas influências, já se chamou Katareo, Dekatera, Katarum; já pertenceu a gregos e a romanos, a russos e a franceses. Esteve sob o controlo veneziano durante cerca de quatro séculos e esta herança está por toda a parte, incluindo nas pequenas praças e nas igrejas. Cada século, principalmente entre os XVI e XIX, tem pelo menos um edifício emblemático que o representa, um carimbo identitário na cidade. Cada novo governante trazia na bagagem a sua própria cultura e misturava-a com a preexistente.

É notório o orgulho do povo na sua história, sobretudo na parte em que o Império Otomano, apesar do seu poder nos Balcãs, nunca ter conseguido efetivamente tomar conta daquele território. Em 1878 é reconhecida a independência a Montenegro, mas a partir de 1918 a sua história escreveu-se sob domínio do que mais tarde seria reconhecido como Jugoslávia. Passou depois a Sérvia e Montenegro até 2006, ano em que o povo foi chamado às urnas para decidir se manteria ou não a união. O povo decidiu que não e Montenegro declarou a sua independência. E isto é um resumo do resumo da história recente daquele país, saltando a parte em que a NATO, em 1999, embarga a Sérvia e Montenegro em resposta à ofensiva de Milosevic contra Dubrovnik. A história ajuda a contextualizar, a perceber um presente que, felizmente, está já longe de ocupações e cedências de identidades. Hoje, Montenegro e a sua Kotor vivem em paz.

Quadro perfeito. Cidade pequena, porto pequeno, montanhas gigantes a desafiar as alturas. A diversidade de Kotor conquista, a cada ano, turistas de todo o mundo.

Um primeiro périplo para tomar o pulso à cidade começa na entrada principal, construída em 1555, quando Kotor estava sob o domínio veneziano (1420-1797), como comprova o leão alado de São Marcos, símbolo de Veneza. Uma vez dentro das muralhas, é caminhar no sentido dos ponteiros do relógio. Apesar de pequena, a cidade velha pode ser bastante labiríntica e facilmente o sentido de orientação fica desgovernado. Mesmo os habitantes por vezes têm de recorrer à alta Cathedral St. Tryphon para voltar a sintonizar a «bússola». Aliás, este edifício merece aqui um parêntesis: é o mais impressionante de Kotor e um bom exemplo da intervenção feita depois do terramoto de 1667; reconstruíram-se as fachadas e acrescentaram-se campanários barrocos. Pelos interiores de telhados abobadados, o altar, o crucifixo de madeira de 1288… Vale a pena visitar.

De novo nas ruas, é continuar a seguir os ponteiros do relógio e não há erro: o final do percurso será o ponto de partida. As ruas estreitas desembocam em praças mais ou menos movimentadas. A Trg od Oružja, Praça de Armas, a maior, está cercada por restaurantes, cafés e esplanadas onde é possível assumir o papel de turista, ou seja, sentar e ver gente passar. Nos intervalos desta árdua tarefa, deambula-se pelas ruas de pedra, fechadas ao trânsito, que apelam ao consumo, há que dizê-lo, porque é tudo tão cuidado que apetece ficar e ver mais um souvenir ou entrar numa oficina em que se fazem sapatos à mão. Vão-se encontrando praças com nomes divertidos, como Leite e Flor, mas isto tem uma explicação: era comum atribuírem às praças o mesmo nome do que se costumava transacionar nelas.

Em qualquer parte de Kotor saberão explicar onde fica o Palácio Grgurin, construído no século XVII; os dois pequenos canhões, símbolo das muitas batalhas travadas por marinheiros e piratas, indicam a chegada ao destino. Hoje, o palácio alberga o Museu Marítimo, sem dúvida um dos lugares a visitar, não fosse tão afamada a marinha local. Retratos dos capitães famosos, modelos de barcos à vela, instrumentos de navegação, mapas geográficos, gravuras e aguarelas das cidades costeiras, uma coleção etnográfica que testemunha a idade de ouro da navegação de Kotor, do século XVI ao XVIII, entre outros valiosos tesouros daquele mar são aqui exibidos. Diz-se que o capitão mais conhecido dá pelo nome de Ivo Vizin. Em 1852, partiu no seu veleiro de pequeno porte para fazer mais uma viagem para troca de mercadorias e acabou por concluir o maior projeto naval do século XIX, navegando o mundo de porto em porto.

Fora das muralhas acede-se à Baía de Kotor, ótima para nadar. Exatamente neste ponto, junto à cidade, não se encontram praias de areia branca ou de outra cor qualquer. Aqui, há pedras e não convidam a estender o corpo, mas são suficientemente acolhedoras para o secar antes de voltar à vida da cidade. Nadar nas águas límpidas deste enorme «lago» de água salgada é obrigatório. A temperatura pode ser, porém, o único senão para quem espera encontrar um mini-Adriático. A temperatura do mar que banha Montenegro atinge belíssimas máximas de 27o C; aqui, na baía, é possível encontrar a água entre os 18o C e os 20o C.

O mercado junto às muralhas é um belo cartão-de-visita da região. Aqui estão os principais produtos, vendidos por orgulhosos produtores locais.

Para se ter uma visão de conjunto e perceber a organização da pequena Kotor há que subir a cerca de 1200 metros de altitude, à fortaleza de St. Ivan. A pé. São mais de 1300 degraus. Estrategicamente surge, a meio da escalada, uma capela que mesmo os menos devotos vão querer visitar: chama-se Nossa Senhora da Saúde, foi construída pelos sobreviventes de uma praga que assolou a cidade em 1572. Muitos apelidam-na de Nossa Senhora do Descanso, justamente por oferecer repouso aos aventureiros dos degraus. Mesmo com paragem pelo meio, o truque é enfrentar cada degrau com a mesma convicção com que se enfrenta o último; acreditar que o exercício físico é uma coisa boa para a saúde; ir parando e apreciando a paisagem; levar água, e, claro, evitar as horas de maior calor. A merecida recompensa não falha quando se chega ao topo e se vê a Baía de Kotor rendida aos nossos pés.

A povoação, as montanhas, o braço de água completam um quadro tão perfeito que é capaz de responder à pergunta que entretanto pode surgir a meio da escadaria (porque é que me meti nisto?). Dependendo da hora do dia, a luz incide sobre as montanhas de diferentes perspetivas emprestando-lhes diferentes tonalidades. Quando ficam à sombra, já no final do dia, ganham um tom mais escuro e com ele uma maior carga dramática.


Guia de viagem

Moeda: Euro
Fuso horário: GTM +1
Idioma: Montenegrino
Quando ir: no verão, quando a temperatura média ronda os 24,5ºC.

Ir
Para a capital de Montenegro, Podgorica, voam a TAP, Air France, Turkish Airlines, Air Serbian e Austrian Airways. No entanto, entre Lisboa e Podgorica não há voos diretos. A Turkish Airlines tem voos Lisboa-Podgorica por cerca de 600€, com escala em Istambul, sendo por vezes necessário pernoitar na cidade turca; a viagem pode demorar cerca de 25 horas. Por menos de 400€, a Air France é uma opção; o voo também não é direto, faz escala em Paris, mas a viagem demora menos tempo, cerca de 10 horas. Uma vez em Podgorica, pode optar-se por autocarro ou táxi para chegar a Kotor. Até 4 pessoas, o táxi cobra entre 40€ e 60€, dependendo da companhia, e demora 01h30 (montenegrotaxi.com, professionaltaxi.me, intravelmontenegro.net, taxi-travel.me). Poderá compensar se viajarem duas ou mais pessoas, já que só para ir do aeroporto até à estação de autocarros, pagará de táxi cerca de 10€. O preço da viagem de autocarro até Kotor ronda os 8€.

Dormir

Astoria
Localizado dentro das muralhas, o Astoria é um boutique hotel construído no século XIII. Em tempos foi casa de famílias nobres; melhor dizendo, palácio. De traço gótico, hoje dispõe de suites com generosos metros quadrados de área e quartos duplos confortáveis. A combinar com as paredes de pedra, a decoração é também ela sóbria. Conta ainda um restaurante, de cozinha montenegrina e internacional cujo menu pode ser consultado online, e bar.
Os preços para quarto duplo variam consoante a época do ano, entre os 90 e os 235 euros.
322, Trg Od Poste
Tel: +382 69 775 522
astoriamontenegro.com

Comer

Gailon
Se os olhos também comem, aqui vão ter um banquete. O Galion fica junto à marina, tem amplo terraço sobre a água e bela vista sobre a cidade velha. O peixe grelhado é protagonista, mas há várias opções de cozinha internacional. A partir de 10€.
Suranj Bb
Tel. +382 32 311 300

Cesarica
Para sabores da terra, autênticos, este restaurante no coração da cidade velha deverá estar, pelo menos, no top 5. É gerido por uma família que faz questão de manter as características tradicionais na decoração e na comida que leva à mesa dos clientes. O patriarca também é pescador, pelo que muito do peixe é trazido por ele. O polvo com azeitonas e tomate e as lulas estufadas com camarão recomendam-se.
Stari Grad 375
Tel. +382 69 049 733

Comprar

Vinho montenegrino
Serão poucos os restaurantes onde vai encontrar a oferta vínica da região. Se é esse o objetivo, há que procurar a Mon Ami Wine House, perto da praça Trg od Mlijeka (Praça do Leite). Trata-se de uma pequena mas simpática loja onde é possível fazer prova de vinhos locais, e nacionais, a partir de 4€ e ainda encontrar a famosa (para quem gosta) Rakija, uma espécie de aguardente forte, muito comum nos Balcãs, feita a partir de fruta. Como diria um italiano que encontrámos a fazer a prova: «se tem fruta, não deve fazer mal!». A loja está aberta das 09h00 à meia-noite, com intervalo entre as 15h00 e as 17h00.
Crna Gora

Fazer

Pela água
A parte mais bonita da cidade, a que está entre muralhas, é relativamente pequena. Mesmo que fique pouco tempo em Kotor, dará para aproveitar a proximidade com a água. Para os mais aventureiros, a Kayak Montegro tem uma oferta alargada de tours, de um dia, em caiaque ou paddle. Também alugam caiaques por hora, meio dia ou dia inteiro (com preços a partir de 5€). Garantem equipamentos seguros e adequados a qualquer nível de experiência.
kayakmontenegro.com

Por terra
Kotor partilha a baía com outras pequenas povoações que merecem visita. Risan fica a 20 quilómetros e tem praia com areia, espreguiçadeiras e tudo a que há direito. A apenas 8 quilómetros está Prcanj, pequena e tranquila vila com a maior igreja das redondezas – demorou 120 anos a ser construída (1789-1909). Uma hora é o suficiente para chegar a Sveti Stefan. Esta antiga vila de pescadores, uma ilha ligada por ponte ao continente, viu o seu ADN mudar drasticamente quando, nos anos 1960, Tito a transformou num resort de luxo. Na época, era destino balnear de Elizabeth Taylor ou Sophia Loren. Hoje está em «remodelação» e paga-se entrada para a visitar. A barroca cidade de Perast, a 11 km de Kotor, foi fundada em 1320 para defender a baía. Hoje a batalha acontece no mercado imobiliário: é que as propriedades da pequena Perast têm dos preços mais alto de Montenegro.

Consultar

montenegro.travel
Consulado de Montenegro, no Porto: Rua Marechal Saldanha, 418;
Tel. 226.109.147

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