Num dos seus contos mais famosos, o escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu sobre Uqbar, um país que o protagonista/narrador descobre no verbete de uma enciclopédia e que, depois, continua a investigar em diversas leituras. No texto, são revelados bastantes dados acerca desse país, tanto no que respeita à organização social ou à filosofia vigente como também em relação às artes, idioma e outros aspetos estruturais da sua cultura. Entre múltiplas referências bibliográficas, conclui-se que Uqbar não existe realmente. Um dos aspetos interessantes é o contraste entre o pormenor dessa descrição, a coerência do pensamento apresentado e o seu caráter ficcional, a riqueza da fantasia que propõe. Num mecanismo que cruza fronteiras literárias, Borges cita ideias de autores que inventou, relacionando-as com teorias de outros autores que tanto podem ser reais como fruto da sua imaginação.

Este conto é especialmente eloquente para quem entende a viagem como uma tentativa de aprofundar o conhecimento do mundo. Por um lado, para cada um de nós, a existência do país que Borges inventou é, afinal, a mesma de todos os lugares que não experimentámos através dos sentidos. Ou seja, Uqbar apenas existe na sua descrição e naquilo que imaginamos dele, que é exatamente a forma como existe para nós a Gronelândia, por exemplo, se nunca lá tivermos estado de facto. Com isto, não quero dizer que a Gronelândia não existe, muito pelo contrário, quero chamar a atenção para este nível abstrato da sua realidade que, no caso de nunca lá termos estado, é a única representação que possuímos. Segundo esta perspetiva, se lemos o conto de Borges, Uqbar existe, visitamo-lo através do que sabemos e do que imaginamos. A sua experiência não é sensorial, é intelectual.

Este conto é especialmente eloquente para quem entende a viagem como uma tentativa de aprofundar o conhecimento do mundo.

Mas não haverá sempre uma dimensão intelectual em todas as experiências? Este é o outro ensinamento que o conto de Borges nos deixa: mesmo quando vamos lá, quando sentimos a temperatura, falamos com as pessoas, rodamos o pescoço para olhar em volta, há sempre uma parte do que acreditamos ver que é composta de informação prévia e de imaginação. Essa camada é como um filtro sobre tudo, muitas vezes confundimo-la com a própria realidade. Quem se interesse por conhecer os lugares para onde viaja, quem sente o apelo de conhecer o mundo, deverá cultivar consciência em relação a estes dois aspetos. A informação depende necessariamente das fontes que se tiver consultado. Nesta época de tanta oferta, as variações de fiabilidade e de profundidade são imensas. Quanto à imaginação, depende da capacidade de empatia ou, reformulando, do modo como avaliamos as diferenças entre nós e os outros, o que acreditamos e o que somos capazes de acreditar, o que conhecemos e o que queremos conhecer.

Uma parte importante da obra de Jorge Luis Borges, nome incontornável da literatura mundial, assenta nos enigmas de espelhos que estabelece com as palavras. Também a viagem ganha com o uso do espelho, avanço civilizacional que nos reflete e que, quando disposto na posição certa, pode refletir o mundo inteiro.

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