Filipe Morato Gomes dispensa apresentações: fundou o blogue Alma de Viajante e é inspiração para muitos que, como ele, gostam de se perder pelo mundo. Trabalhava em multimédia até ser despedido e dar uma (grande) volta à vida.

Texto de Bárbara Cruz

«Qualquer dia despeço-me e vou dar uma volta ao mundo.» A frase era uma das que Filipe Morato Gomes mais repetia há cerca de 15 anos, quando ainda trabalhava em informática. Mas nunca teve coragem para deixar o emprego. Acabou por ser uma decisão que não teve de tomar: a empresa em que trabalhava passou de cem para vinte funcionários e ele foi um dos demitidos. «Ser despedido foi a melhor coisa que me aconteceu, porque tive a felicidade de conseguir transformar um momento teoricamente mau numa coisa fantástica», diz o autor do blogue Alma de Viajante, portuense a viver em Matosinhos que, aos 47 anos, é uma referência para os portugueses que gostam de viajar ou não passam sem ler relatos de viagens pelo mundo.

Filipe tinha pouco mais de 30 anos quando foi empurrado da zona de conforto e se fez à vida por uma estrada alternativa. Tornou-se um dos primeiros viajantes profissionais portugueses e um guru na tribo dos que passam mais tempo de malas feitas do que sentados no sofá. Reconhece que não foi fácil abdicar da segurança e do conforto do salário ao fim do mês. «Agora escrevo mil posts de inspiração, tento incentivar as pessoas a seguirem os seus sonhos. Mas é difícil deixar tudo para trás, eu não tive coragem», admite. Quando se viu sem emprego, decidiu concretizar o projeto da volta ao mundo. Contou com o apoio da mulher, que não conseguiu tirar uma licença sem vencimento para o acompanhar – mas acabou por se lhe juntar em vários períodos – e quando regressou, ano e meio depois, vinha com a certeza de que queria ser dono do seu tempo, «viver do trabalho que resulta das viagens». Para que não haja dúvidas, põe os pontos nos is: «Ninguém me paga para viajar, o meu trabalho é escrever, produzir conteúdos. Que não haja aqui romantismos», esclarece.

Filipe começou por alimentar um site com as crónicas que foi publicando no suplemento de um jornal diário durante a volta ao mundo, mas com o passar dos anos investiu mais no trabalho online. O Alma de Viajante cresceu ao mesmo tempo que o portuense ia acrescentando carimbos ao passaporte. Hoje, o blogue gera receitas e junta textos que «saem da alma» com outros mais práticos, de dicas de viagens. Os leitores, fiéis, agradecem e pedem mais: é raro o dia em que Filipe não receba dezenas de mensagens, seja para agradecer dicas, textos de incentivo ou com perguntas sobre países e roteiros.

«Agora escrevo mil posts de inspiração, tento incentivar as pessoas a seguirem os seus sonhos. Mas é difícil deixar tudo para trás, eu não tive coragem» admite.

Manter o blogue obriga-o a viajar «num equilíbrio difícil», sempre de computador e máquina de fotográfica às costas. «Nunca estou realmente de férias, mas não me queixo», diz a rir-se. O facto de viajar para partilhar destinos com outros obriga-o a ponderar as rotas, mas o critério mais importante é ir ver o que mais lhe aguça a curiosidade. «Continuo a mesma pessoa, a viajar com a minha mochilinha às costas, os meus chinelos. Se me derem a escolher entre o hotel de cinco estrelas e a casa da tia Maria, escolho a casa da tia Maria», diz sem hesitar. Até agora, já esteve em cerca de cem países, mas os planos nunca se esgotam. «A liberdade de poder decidir o que fazer no dia seguinte não tem preço», frisa.

Não sabe precisar como ganhou gosto pelas viagens, mas é rápido a apontar o avô como referência nesse campo: cresceu a ouvi-lo contar como passava anos sem tirar férias para depois juntar os dias todos e passar um mês na Austrália, fazer o transiberiano ou explorar o Brasil. «E viajar nessa altura não era tão democrático como hoje», reflete.

Se pudesse, faria sempre viagens longas, nunca menos de dois ou três meses. «Sou mais ave do que árvore, tenho poucas raízes.» Abdica desse formato por uma questão familiar: desde que nasceram a Inês, 11 anos, e o Tiago, de 4, que faz mais viagens, mas mais curtas. «Tenho um projeto eternamente adiado, descer a costa leste de África, do Cairo até à Cidade do Cabo. Seguir os passos do Theroux em Viagem por África», afirma.

Filipe é um dos fundadores da Associação de Bloggers de Viagem Portugueses. O Alma de Viajante recebe dez mil visitas por dia.

Quando a filha mais velha tinha 4 anos, decidiram embarcar em família numa volta ao mundo – a segunda para Filipe. «Foi um abrir de olhos. Percebemos que os miúdos, se motivados, fazem tudo.» Não resiste a contar como a Inês, que mal falava inglês, pediu a uma senhora que a levasse até aos pais quando se perdeu num hotel nas ilhas Fiji: «Father no there, mother no there, disse-lhe ela. A senhora percebeu e ajudou-a.»

Dos países por onde já passou, guarda as melhores recordações do Irão, onde já esteve 21 vezes, muitas das quais como líder de viagens, tarefa que entretanto abandonou para se concentrar no blogue. Tem com a China um «problema para resolver» – cansou-se de lá estar, provavelmente devido a uma «má escolha de itinerário». Lembra-se do «momento emocionalmente mais difícil que já viveu» – o tsunami de 2004 no oceano Índico. Estava no Laos com a mulher, jornalista, que se lhe tinha juntado por algumas semanas e acabou desviada para a Tailândia para cobrir a tragédia. Ele acabou por trabalhar também como repórter fotográfico na Tailândia e no Sri Lanka. «No momento em que baixava a máquina fotográfica desatava a chorar», recorda. «Na Tailândia vi o lado da morte, no Sri Lanka o sofrimento dos vivos. Nunca até hoje mostrei essas imagens a ninguém, porque me fazem sofrer muito», recorda.

Imagem de destaque: Direitos Reservados

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