88888888. Na China, quando não se sabe a password do wi-fi, vale sempre a pena tentar o número 8 repetido 8 vezes. Funciona com impressionante frequência. A superstição chinesa à volta do 8 está presente em todo o território e, depois de almoçar num restaurante de Zhuhai, consegui entrar assim na internet. Essa sorte, no entanto, não foi suficiente para abrir a maioria das páginas ocidentais a que costumo aceder. Duas horas antes, no outro lado da fronteira, em Macau, estava habituado a navegar sem restrições. Esqueci que estava na China.

Zhuhai não deixa esquecer a China. Basta atravessar uma linha no chão e há uma transformação absoluta. Entre Macau e Zhuhai, mudam as cores, mudam os cheiros. Naquele dia, pareceu-me até que mudou o clima. Em Macau, na área da Porta do Cerco, ao entrar no posto fronteiriço, estava calor e humidade; mais tarde, quando saí no outro lado, depois de tratar do visto temporário, preencher papéis, esperar em filas, seco pelo ar condicionado, cheguei a um ambiente outonal, encoberto.

Mas abandonei também logo esse novembro súbito porque, após poucos metros, a única opção era a descida de um lanço de escadas, a entrada no Mercado Subterrâneo de Gongbei. Seria possível ficar logo aí. Em todas as direções, abria-se um labirinto com milhares de pequenas lojas, comida, objetos brilhantes, roupas de marcas famosas, o nome escrito com erros: Addas, Atidas, Aadidas.

Na China, quando não se sabe a password do wi-fi, vale sempre a pena tentar o número 8 repetido 8 vezes.

Insistindo, resistindo aos apelos estridentes de brinquedos a pilhas, cheguei ao outro lado, subi as escadas e, outra vez no mundo, vi-me submerso num imenso mercado de vegetais, fruta, carne, peixe e cabeleireiros. Milhares de pessoas a escolherem abóboras, a negociarem o preço de alguns quilos de feijão-verde. À minha frente, um rapaz entornou uma caixa de lagostins vivos para dentro de um alguidar com água. Sobre as bancadas, peixes cortados ao meio sangravam vivos, davam espasmos, saltavam para o chão às vezes, procuravam o mar. E, sem explicação, entre tudo isso, dezenas de cabeleireiros, homens sentados, indefesos, a fixarem os seus próprios olhos no espelho, mulheres a meio de pintarem o cabelo, também indefesas. Cá fora, no chão, tartarugas num saco de rede moviam-se para onde podiam, experimentando, sem entender. À mesma velocidade, um septuagenário de camisola branca de alças passava muito devagar numa cadeira de rodas elétrica, guiando-a com um manípulo no braço da cadeira, equilibrando um cigarro de cinza entre os dedos da outra mão. E uma mulher dormia inclinada sobre a bancada da carne, ao lado de um homem a cortar bifes com um enorme cutelo; e um sapateiro dormia enrolado sobre si próprio, contorcionista, banco baixinho; e uma criança dormia presa às costas da mãe, cabeça caída, desgovernada.

Lembrei-me disto depois de almoçar na avenida marginal de Zhuhai. Através da vitrina, observava rapazes e raparigas a passearem, gente a pedalar lentamente em bicicletas. O restaurante não possuía wi-fi, apanhava várias redes, mas ninguém tinha a password, tentei o número 8 repetido 8 vezes, acertei à primeira. Sim, tenho sorte, tenho muita sorte.

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Crónica publicada na edição de abril de 2019 da revista Volta ao Mundo (número 294).


 

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