Escolheu o apelido da mãe porque funcionava melhor para um escritor. Vive rodeado de palavras e de livros. Escreveu crónicas, poemas, diários e peças de teatro, traduziu livros, colaborou em blogues. Coordena a coleção de poesia da editora Tinta da China e é co-diretor da revista literária Granta. Foi sub-diretor e diretor interino da Cinemateca e há 11 anos tornou-se, na TSF, um ministro do Governo Sombra. No início de maio, Pedro Mexia venceu o Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores com o livro Lá Fora.
Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha
Gosta de ir para fora? Costuma viajar com regularidade?
Costumo viajar com regularidade. Mas é muito curioso porque este livro, que se chama Lá Fora [ed. Tinta da China] e é sobre sítios, teve mais leitores do que outros que eu publiquei antes porque as pessoas julgam que é um livro de viagens. E até certo ponto é – tem algumas crónicas que foram escritas durante ou depois de viagens. Mas nunca me ocorreria escrever textos de viagens. Acho que isso é um estilo muito particular para o qual eu não sou particularmente dotado. Na verdade os textos são sobre ideias que temos dos sítios antes de lá irmos e depois de lá irmos, sobre o confronto entre a imaginação e a realidade. E eu não gosto muito de viajar. Do processo de viajar. Gosto muito de estar lá fora. Viajar – e sobretudo andar de avião – detesto.
E gosta de regressar aos locais? Àqueles onde foi feliz, pelo menos.
Não há muitos sítios a que eu tenha ido que não voltasse. Há um ou dois países a que não voltaria, por razões diferentes. Nalguns casos por razões físicas do sítio, outros casos por razões humanas. E, na verdade, na maioria dos casos – como é o meu –, as pessoas falam em viajar, mas o que fazem é turismo de poucos dias. Isso não é viajar, no sentido minimamente nobre da palavra. Viajar (já nem digo viver nos sítios) tem um lado Bruce Chatwin, de exploração, mochila às costas… E isso eu nunca fiz nem é a minha vocação.
Quanto tempo costuma ficar, no máximo, num sítio?
Nos países europeus nunca fico mais de uma semana. Fora da Europa fico mais tempo. No Brasil, por exemplo. Ou nos EUA. Mas como muitas vezes essas viagens são convites de eventos literários, como festivais de poesia, o tempo que fico não é muito controlado por mim. Às vezes acrescento uns dias mais para além da programação em que vou participar ou a que vou assistir, para poder explorar um bocadinho mais. Por isso é que eu tenho alguma relutância à ideia de descrever isto como viagens. É de facto turismo. Há um cunho pejorativo acerca da palavra, mas eu não tenho problema nenhum com isso. É ir a sítios onde não estamos habitualmente, onde não vivemos. E depois, claro, há turismo de várias naturezas. Há pessoas que preferem sítios inexplorados, inóspitos e perigosos, há quem goste de cinemas e livrarias e museus, como é o meu caso.
É um viajante cauteloso, que planeia, ou também gosta de ser surpreendido?
Planeio um bocadinho. Por uma razão: tenho um péssimo sentido de orientação e tenho a certeza que se não planeasse me perderia em qualquer cidade do mundo e apareceria sem um rim algures. É mais por isso do que propriamente por ser muito meticuloso – que não sou. Planeio porque os dias em que estou fora não são dias para perder tempo, são dias em que se deve fazer coisas e ir a sítios. Se faço como tantas vezes em Lisboa, que é perder tempo e andar às voltas, não saber bem para onde vou, isso é mau numa viagem.
Bloomsbury, em Londres, é um dos seus locais de referência. Volta lá com alguma regularidade?
Quando comecei a ir sozinho, ou com outras pessoas, a Londres, fiquei sempre aí. Apesar de Londres ser gigantesca, Bloomsbury fica perto, a pé, de quase todos os sítios que me interessam. Quase todos os cinemas e teatros e alguns museus. Além disso Bloomsbury é o bairro literário por excelência de Londres. Há toda uma mitologia e as pessoas também viajam à volta de mitologias – como os turistas que vêm a Lisboa e querem ver o [Fernando Pessoa] e sentar-se naquela mesa n’a Brasileira. O próprio bairro nasceu como uma espécie de “enclave meio rural” e foi crescendo, com parques e jardins e, evidentemente, o Museu Britânico. E a partir daí criou-se todo um polo cultural à volta de Bloomsbury. E é um sítio onde eu não me perco, o que para mim é uma vantagem. Todos nós, quando dizemos que conhecemos uma cidade, na verdade, a não ser que vivamos nela, conhecemos apenas partes da cidade. E eu conheço todo os sítios para onde se vai facilmente a partir de Bloomsbury. É a minha Londres.
E a Biblioteca de Londres, é a mais bonita que já visitou?
Curiosamente, nunca fui à Biblioteca de Londres. Também já fui várias vezes a Paris e nunca fui ao Louvre. Nem à Torre Eiffel. Aquela coisa de ir a Roma e não ver o Papa – por acaso já vi o Papa – nalguns casos aplica-se a mim. Não sei como é que eu, tendo ido tantas vezes a Londres, não fui ainda a três ou quatro sítios importantes. Mesmo em Bloomsbury. É lá que fica a casa do Dickens, por exemplo, um dos grandes fetiches literários. Eu não sou um grande dickensiano, mas enfim…
Costuma visitar bibliotecas, nos locais para onde viaja?
Mais livrarias do que bibliotecas, a não ser que sejam bibliotecas particularmente bonitas ou que me interessem por alguma razão. Lembro-me, na Irlanda, da Biblioteca do Trinity College, que estava na minha lista de sítios a visitar em Dublin.
Compra muitos livros em viagem? Perde muito a cabeça?
Digamos que eu tenho em casa uma divisão de supostas arrumações, com malas secundárias compradas na véspera de me vir embora dos sítios. Acho que isso responde à pergunta. Tenho sempre, sempre, sempre excesso de bagagem porque de facto, em alguns países, ainda há livrarias [risos]. Quando fui pela primeira vez a Oxford, por exemplo. Os alfarrabistas de Oxford têm uma particularidade: muitos dos livros que têm à venda são livros de que professores ou alunos se desfizeram antes de irem embora. Têm preciosidades, às vezes até bastante baratas, porque não era possível às pessoas levaram aqueles livros com eles. Eu que nunca fui muito de alfarrabistas, a primeira vez que entrei num de Oxford desgracei-me imediatamente porque a oferta é incrível.
Pegando numa coisa de que falou há pouco, a propósito do seu livro Lá Fora: a ideia que temos dos sítios antes de lá ir. Como foi Palermo, em Buenos Aires?
É estranho eu dizer isto, mas eu não sabia quase nada de Buenos Aires e tinha a certeza que ia gostar. Um argentino dizia-me que não conhece ninguém que tenha ficado desiludido com Buenos Aires. Não sei se isso é verificável, mas de facto é muito difícil ficar desiludido com a cidade. E eu, que sabia que ia gostar mas não sabia bem do que estava à espera, tinha uma ideia – como tenho de todos os sítios – da literatura, cinema. Alguém descreveu Buenos Aires como a capital de um império que nunca existiu. É como se, em vez de uma colónia, fosse a capital do império. E é um país que tem quase uma espécie de presunção europeia. Não que ser europeu seja grande coisa, mas há qualquer coisa de europeu ali. Em alguns bairros, sobretudo, como San Telmo e Palermo. San Telmo era um bairro colonial, com um certo lado aristocrático, que depois se tornou decadente do ponto de vista arquitectónico e boémio pela animação noturna e diurna. E Palermo tem aqueles fantásticos parques, absolutamente ingleses – e a zona dos museus também. É uma cidade que não é demasiado grande para ser opressiva e a mim pareceu-me seguríssima, coisa que talvez não estivesse à espera numa grande capital sul-americana, comparada com o Brasil ou o México, onde a sensação de segurança nem sempre é muito grande. E depois, lá está, e isso para mim é muito importante, existe uma mitologia de Buenos Aires. Há cidades que não têm mitologia e há cidades que têm, por causa dos escritores que as inventaram ou que as imaginaram. Eu gosto muito de chegar aos sítios e confrontar a ideia que eu tinha de uma cidade com aquilo que encontro.
Já teve más experiências, nesse confronto?
Posso dizer que tinha uma mitologia de Macau que não correspondeu, de todo, ao que encontrei. Macau foi uma das minhas grandes desilusões.
Porquê?
A presença da língua portuguesa mantém-se, mas a presença de Portugal não. Ou seja, para dar o exemplo, lojas, indicações nos autocarros, etc, tudo em português, mas depois ninguém fala português. Na zona histórica, o senado, e por aí, várias coisas em português mas depois ninguém tem muita noção. Eu fui ao cemitério à procura do túmulo do Camilo Pessanha, um dos grandes poetas portugueses, enterrado em Macau, e ninguém sabia onde estava. Em português ninguém sabia, inglês também não, outras línguas eu não falo, por isso fui lá em vão. Na construção também… Aparentemente não há uma distância mínima, até estética, entre um edifício e outro. E de vez em quando há uma casa fantástica e coladinho a ela há um prédio alto com roupa a secar e a pingar. Enfim, foi uma mistura dessas coisas todas. Senti que havia ali uma mitologia colonial – ou pós-colonial, seja o que for – que eu estava à espera em Macau e que não se concretizou.
E cinema? Viaja também pela mitologia do cinema e atrás dos lugares onde foram gravados filmes ou que tenham inspirado autores ou realizadores?
Tenho alguns livros desse género, sobre locais famosos em Londres, Nova Iorque, etc. Mas a não ser que esteja a passar por lá e reconheça, não vou à procura deles. Mas é muito interessante pensar que o cinema é que foi a nossa aula de geografia. Nós somos bombardeados com ideias de sítios e eles fazem parte da nossa imaginação, tal como outras coisas que fazem parte da nossa experiência. Não há uma diferença radical entre um sítio que vimos milhares de vezes ao vivo e um sítio que vimos milhares de vezes num filme. Pode parecer que sim mas não há diferença. Por isso é que para mim viajar significa muitas vezes constatar uma espécie de continuidade entre os sítios imaginados e os sítios vividos.
E que ideia tem do Japão? É uma das suas viagens de sonho, que ainda está por concretizar. O que espera encontrar e porque está ainda por realizar?
O Japão nunca foi um destino em que eu tivesse pensado, mas todas as pessoas que eu conheço que foram ao Japão gostaram muito. Nalguns casos reiterando um pouco aquela imagem típica que temos do país, com a gentileza das pessoas, etc. E várias pessoas me disseram uma coisa engraçada: quase toda a gente percebe e talvez fale inglês. Mas algumas pessoas que não falam bem inglês têm vergonha de falar mal e portanto não respondem para não fazer má figura. Há qualquer coisa na mentalidade japonesa, talvez até mais do que no Japão, que me fazem ter vontade de lá ir. Além de já ter lido várias coisas sobre o país. Claramente a paisagem humana, a geografia humana, são o que me faz ter tempo de lá ir. Os japoneses são um povo que eu acho intrigante e aquela é uma sociedade de contrastes que eu gostava de conhecer. É muito provável que lá vá em breve.
Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF.