La Serenissima vive numa luta entre o turismo e a autenticidade. Os venezianos estão a deixar a cidade dos canais e das gôndolas cada vez mais entregue aos turistas: são mais de trinta milhões por ano. Entre multidões e protestos, a cidade continua belíssima. Até quando?

Texto de Marina Almeida

Ainda há venezianos a morar em Veneza? «Só eu», diz Marta. Bem-disposta, divide-se entre a receção de dois hotéis no centro da cidade, que cobram uma taxa turística diária de 3,5 euros por pessoa. Ora fala italiano, ora inglês, ora francês e não tem tempo a perder. Há sempre reservas a entrar, clientes a sair, check-in, check-out, palavras-passe do wifi, indicações com bolas de esferográfica vermelha sobre o mapa daquilo que não se pode mesmo perder.

A cinco minutos a pé está um dos pontos quentes da cidade, a Praça de São Marcos. O caminho até lá faz-se pelas ruelas sedutoras que atravessam canais e tornam Veneza um bombom. Não é preciso ver o mapa para sabermos que estamos a chegar: o carreiro vai-se enchendo de gente, o passo abranda, tornamo-nos um caudal. Neste percurso, são poucos os habitantes locais. Ainda haverá alguns com negócios – pizarias, lojas de malas de pele, lojas de vidro de Murano e lojas pejadas de máscaras venezianas – mas o rio de gente faz-se de turistas. Casais, grupos, gente que segue um chapéu-de-chuva ou um pau de selfie com um girassol de plástico na ponta enquanto escuta a guia através de headphones. Casais com malas a reboque à procura da casa temporária. Um cenário semelhante ao que Lisboa assiste em bairros históricos, como Alfama, ampliado.

Todos desaguam em São Marcos. Ali, naquele divino terreiro, os restaurantes disputam a atenção dos clientes com pequenas orquestras que tocam músicas românticas ou hits dos anos 1980 esculpidos a violino e piano. Os turistas fotografam e fotografam-se, fazem vídeos, deslumbram-se com aquele sítio mágico. Em todos os acessos à praça, estão as regras para ser turista, escritas em italiano, inglês, alemão e francês: não circular de fato de banho ou em tronco nu, não se sentar em zonas públicas não designadas para tal, não comer, não deitar lixo para o chão, não andar de bicicleta, skate, patins, não usar colunas ou rádios com volume alto, não alimentar os pombos, não mergulhar ou nadar nos canais. As multas começam nos 25 euros. Sentar-se na Praça de São Marcos para comer dá direito a multa de duzentos euros, a mesma para andar de fato de banho. Já um banho nos canais pode custar ao infrator quatrocentos euros.

A comuna de Veneza criou regras para melhor gerir a vida no centro histórico e proteger os moradores. Por toda a cidade há avisos do que é interdito fazer e quais as multas em que incorrem os infratores.

O regulamento é omisso em relação às malas com rodinhas e é neste aparato que François e Clara Junot chegam à cidade. Apanharam o barco desde o Aeroporto Marco Polo e preparam- se para procurar o apartamento que alugaram por três dias enquanto tiram as primeiras fotos. «É belíssimo», diz a francesa, não parecendo importar-se com a enchente à sua volta. Ainda não sabiam que as ruas da cidade enlouquecem qualquer GPS e os mapas só levam diretamente à morada o campeão mundial de orientação. Todos os comuns mortais se perdem e voltam a perder-se antes de alcançar o destino. Talvez seja, também esse o encanto de Veneza. As ruas estreitas e a promessa de surpresa ao virar de cada esquina. «Vamos por esta, gosto mais», diz uma espanhola às amigas. Escolhem uma viela estreita e seguem. Parece um jogo, este de se perderem para voltarem a encontrar-se.

A imprensa do dia (La Nuova di Venezia) titula que uma em cada dez casas da cidade já são Airbnb. A plataforma online independente Inside Airbnb diz que existem perto de oito mil apartamentos destinados a turistas. Giuseppe Tattara, professor na Universidade Ca Foscari, estima que atualmente sejam 53 mil os residentes no centro histórico da cidade. Tem 73 anos e mora em Veneza há 38. «A cidade está a abarrotar de turistas, muitas lojas fecharam porque foram transformadas em casas para turistas ou em lojas que vendem artigos a turistas», diz-nos. Além disso, zanga-se, os preços estão caros – restaurantes, bares, transportes. Uma refeição num restaurante não custa menos de 17 euros (prato, bebida e café, sem sobremesa), e é preciso procurar fora do centro para encontrar estas pechinchas. Considera que a esperança para os residentes «é muito pequena» e nem a ideia de que o turismo é bom para a economia local o animam – «não há estudos, viu algum estudo?» – e critica, irónico, o poder local: «A autoridade empenha-se em aumentar o número de visitantes diários e evita qualquer limite de fluxos turísticos.»

A Praça de São Marcos e os cafés históricos nas arcadas são um corrupio constante. Em muitos destes locais só se pode parar para tirar uma fotografia ou escutar a orquestra, pois os preços são proibitivos.

Uma das medidas da Comuna de Veneza (autarquia) são as previsões do fluxo turístico para todos os dias do ano, uma espécie de meteorologia turística. «Organize a sua viagem a Veneza com antecedência: se quiser realmente aproveitar a cidade e não esperar em filas para museus, transporte público e acesso a áreas de estacionamento, evite dias em que estão previstas grandes afluências de turistas», lê-se no site. No boletim do turista pode consultar a previsão de turismo para a cidade, dia-a-dia, com sugestões alternativas para os dias complicados: por exemplo, visitar as outras ilhas (como Murano ou Torcello).

O excesso de turismo na cidade preocupa também a UNESCO, que ameaçou já retirar a classificação de Património da Humanidade a Veneza: por ano entram na cidade cerca de trinta milhões de turistas, sendo as alturas críticas os fins de semana de maio a setembro. Em abril, a Comuna de Veneza anunciou medidas de exceção para o verão de 2018, com a restrição de acessos a zonas mais concorridas, criação de vias de sentido único e chegou mesmo a instalar torniquetes em alguns pontos de acesso à cidade.

Veneza mantém um encanto muito especial, único no mundo. Além das ruas feitas de água, mantém muitos traços do passado e da época dos mercadores que ajudam a fazer uma viagem no tempo.

Francesco é piloto de aquatáxi e tem dificuldade em zangar-se com o turismo, mas reconhece que há dias, como o que acontecera na semana anterior, que são «muito difíceis». Recorda essa combinação terrível em que cinco cruzeiros ali aportaram, mais os visitantes que chegaram de comboio e avião: eram mais 15 mil pessoas na cidade. As gôndolas não pararam, os vaporettos andavam ainda mais cheios, os restaurantes e, claro, o táxi aquático. «Os venezianos gostam de dizer que estão contra o turismo, mas a verdade é que oitenta por cento trabalham no turismo. Há a cultura, há os eventos, mas é o turismo que pesa aqui», diz, enquanto orienta o barco pelo grande canal. Tem 50 anos e sempre viveu na cidade. «Há muita gente a sair para a mainland. A vida aqui é cara. As casas, a comida, e tudo o que trazes para aqui tem sempre de vir de barco. Há muita gente a desistir.» Ele, para já, não pensa baixar os braços.

Passamos por debaixo da ponte de Rialto. Lá em cima, é sempre hora de ponta, noite e dia. Disputa-se um lugar junto ao parapeito para a foto, vendem-se previdentes paus de selfie e rosas vermelhas. Estas podem custar três ou cinco euros, dependendo da hora do dia e da paixão do momento – ainda não estão tabeladas.

Os vaporettos andam à pinha. A linha que sai da ferrovia e segue para o centro está permanentemente entupida de turistas e malas de dimensão excessiva (ainda não há restrições para elas). Uma viagem simples custa 7,5 euros e o passageiro pode demorar-se até 75 minutos no trajeto. O passe de um dia custa vinte euros, de dois dias trinta, o de uma semana sessenta (sem limite de permanência). Nos terminais de vaporettos passam os avisos de chegada da próxima carreira seguidos de #enjoyrespectvenice, num piscar insistente. A hashtag foi lançada pela câmara, no âmbito do Ano Europeu do Turismo Sustentável e está um pouco por todo o lado.

Os vaporettos são os barcos que asseguram o transporte público e estão sempre cheios. Em todas as estações há avisos: #enjoyrespectvenice parece ser o novo lema da cidade dos canais.

Os venezianos também apanham os barcos de transporte público e a maioria parece conformada com a intensa disputa pelo espaço. «Sim, os venezianos não gostam de ter os vaporettos sempre cheios, mas vão fazer o quê?», pergunta o taxista aquático, apontando para um dos barcos de carreira que mais parece uma gigantesca lata de sardinhas. É assim há uns dez anos, estima. «Antes era mais classes média/alta, agora noto mais classes baixas» a fazer turismo.

A via aquática é a única alternativa ao andar a pé na cidade. As bicicletas estão proibidas e os carros, já se sabe, estacam em Tronchetto (uma hora de estacionamento custa três euros, um dia 21 euros). Não muito longe dali está o terminal de cruzeiros da cidade. Ali atracam os mastodontes do mar, numa escala impossível de ignorar. A cidade preparava mais um protesto contra os grandes barcos. Marta explica que não estão contra os cruzeiros, até porque «também vêm uns dos Estados Unidos e vão outros para a Grécia», mas querem que a rota atual seja mudada, porque prejudica o meio ambiente. Apesar do desânimo, o professor Tattara está também envolvido no movimento de cidadãos No Grandi Navi, que luta para mudar o percurso dos enormes navios de cruzeiro. «Queremos retirar os navios da lagoa que atraquem no cais do Lido ou no porto de Trieste», explica.

Por toda a cidade há cartazes a convocar para a manifestação contra os barcos grandes e muitos mais a lembrar as regras da sã convivência na cidade. La Serenissima luta pelo estatuto de velha dama que tem de ser respeitada, e há uma espécie de guerra silenciosa nas paredes enquanto a vida segue nas ruas.

No centro da cidade, o comércio é repetitivo. Lojas de pizzas, de malas de pele ou de máscaras venezianas porta sim, porta sim. Perto da Praça de São Marcos juntam-se as grandes cadeias internacionais.

As lojas junto aos locais mais turísticos – a Praça de São Marcos, Rialto, Cannaregio – parecem todas iguais: máscaras, máscaras, máscaras, vidros, vidros, vidros, peles, peles, peles, piza, piza, piza. Também há teatros transformados em supermercado, com frescos no teto – como o Tigotà, na Strada Nuova, em Cannaregio. Em várias montras lê-se a palavra «original». A mala original de Veneza, a piza, a máscara. Os friolane (sapatos). Mas a palavra parece valer pouco nesta tentativa de combater a globalização do típico. É em bairros como Dorsoduro ou no Castelo que ainda se consegue encontrar lojas aparentemente únicas.

Ateliês de impressão ou de bijuteria, a pastelaria Rosa Salva ou a livraria Aqua Alta, onde os livros previnem o iminente estado de pés de molho, amontoados em barcos, banheiras ou até numa gôndola. Mas esta não será uma livraria para encontrar lançamentos recentes, antes para deixar que livros manuseados de edições distantes o encontrem a si.

O grande canal serpenteia todo o centro da cidade e, em determinadas alturas do dia, é um corrupio de aqua táxis, vaporettos e gôndolas, para lá do transporte de mercadorias e particular.

Aqui e ali, perto de uma das milhentas pequenas pontes ou junto à lagoa, estão os gondoleiros. Vestem-se a rigor. Camisa às riscas azuis, calças e chapéu. Meia hora de passeio durante o dia custa oitenta euros, o circuito noturno, das 19 às quatro da manhã, é cem euros. Os preços estão tabelados, mas podem variar se houver direito a serenata flutuante.

Os homens da gôndola não se ensaiam a cantar a plenos pulmões, Volare ecoa prédios acima, junto à ponte da Cortesia, óóóó ouve-se em eco vindo de quem está em terra a fotografar e a filmar furiosamente. No fim, aplaudem-se mutuamente. Veneza é uma festa.


Guia de Viagem

Documentos: Cartão de Cidadão
Moeda: Euro
Fuso Horário: GMT+1
Idioma: Italiano

Ir

O aeroporto mais próximo é o Marco Polo e tem ligação ao centro de aquatáxi ou de barco (procure o terminal do Alilaguna). Outra opção é o comboio, e tem uma estação de Vaporetto em frente (Ferrovia). De carro, deixa a viatura em Tronchetto e segue de barco (ou a pé). As bicicletas estão interditas.

Quando ir

A Commune de Venezia aconselha a todos os visitantes a consultar o calendário
da cidade antes de viajar. A informação oficial mostra os dias mais favoráveis para
o turista circular na cidade e visitar os monumentos e sítios.
comune.venezia.it/

Ficar

Hotel Gabrielli
Um quatro estrelas no centro da cidade, junto à lagoa com a ilha de San Giorgio Maggiore mesmo em frente. A cinco minutos a pé da Praça de São Marcos, tem 85 quartos, 27 dos quais com vista para a llagoa. Foi recentemente remodelado, sendo todos os quartos diferentes.
Oferta ampla ao pequeno-almoço.
RIVA DEGLI SCHIAVONI 4110
hotelgabrielli.it/en

Comer

Oisteria ai Assassini
Um restaurante num beco da cidade, com esplanada numa rua sossegada para os dias amenos. Lá dentro o ambiente é acolhedor e a carta variada, com propostas de prato do dia e vinho a copo.
SESTIERE SAN MARCO 3695

Pastelaria Rosa Salva
Dizem-nos que as melhores tramezzino estão nesta pequena pastelaria. As sandes triangulares sem codea apresentam-se em variados recheios suculentos – cogumelos, atum, presunto ou salada russa – e são uma das delícias da casa fundada em 1879. É uma boa solução para um almoço leve ou uma pausa para café entre as deambulações pela cidade.
VIA SAN MARCO, 950
rosasalva.it/it/rosa-salva/

Comprar

Dolceamaro
Chocolates e vinho – que melhor combinação se pode encontrar? Entre as iguarias desta acolhedora mercearia, o Orto de Veneza, um malvasia produzido na região.
Custa 30 euros a garrafa, sete o copo.
CAMPIELLO BRUNO CROVATO

Visitar

Basilica San Giovanni e Paolo
Exemplar do século XV, é uma das maiores igreja da cidade e guarda no seu interior obras de Veronese (entre outros artistas), como a belíssima Adoração dos Pastores. A entrada custa 3,5 euros mas vale bem a pena, até pela calma que ali se pode encontrar.
CASTELLO, 6363

Museu Peggy Guggenheim
Em 1949 Peggy Guggenheim comprou o palácio Venier dei Leoni, junto ao grande canal, e mudou-se para Veneza. Dois anos depois abriu a sua casa e a sua coleção de arte do século XX ao público, e assim permaneceu até à sua morte, em 1979. O museu permanece aberto, gerido pela Fundação Guggenheim.
DORSODURO, 701-704
guggenheim-venice.it/inglese/default.html


Reportagem publicada originalmente na revista Volta ao Mundo de janeiro, edição 291.

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