Fazer a barba em Las Vegas
Cheirava a 7-Eleven. A luz era demasiado branca e, por isso, mostrava todas as pequenas sujidades mal varridas, esquecidas em cantos, entre armários e parede. O chão refletia as lâmpadas em grandes poças de luz; por isso, iluminavam a partir do teto e a partir do chão.
Metade dos americanos estavam bêbados. Tentei interessar o meu filho mais velho pela compra das lâminas de barbear. Mesmo naquele pequeno 7-Eleven, todos os produtos existiam em meia dúzia de opções, pelo menos – é assim a América. Mas já era quase meia-noite – cedo para alguns, tarde para nós – e entravam homens a falar alto, chegavam da avenida principal de Las Vegas, vinham hipnotizados. O meu filho mais velho tinha 15 anos e, por isso, não sabia bem o que sentir por estar ali àquela hora – orgulho de adulto ou receio de criança.
Antes, durante o dia, tínhamos entrado em casinos apenas para aproveitarmos o ar condicionado, porque não aguentávamos mais. Tudo refletia o sol. À tarde, Las Vegas inteira era esse sol do deserto. Àquela hora noturna, não ficava mais fresco. Era um agosto calcinado. O ar, que tinha ardido durante o dia, respirava-se com dificuldade, sabia a queimado, secava-nos por dentro. O ar condicionado daquele 7-Eleven era uma trégua dessa fornalha.
Tudo refletia o sol. À tarde, Las Vegas inteira era esse sol do deserto. Àquela hora noturna, não ficava mais fresco.
Acabei por ser eu a ter de tomar uma decisão acerca das lâminas de barbear. Escolhi as que me pareceram mais memoráveis. Já tínhamos recolhido as outras compras e, por isso, fomos para a fila da caixa.
O meu filho mais velho nunca me pede nada e, por isso, não me pediu pastilhas, chocolates, pilhas ou lenços de papel. Ficou ao meu lado, sério e calado, a representar uma idade de pessoas sem dúvidas – compradores convictos de lâminas de barbear.
A senhora da caixa não se interessou por nós ou pelas nossas compras. Estava a olhar para outro lado e a pensar noutra coisa. Fez as perguntas que aprendeu a fazer, estendeu a mão para receber os dólares, mas teria feito exatamente a mesma coisa se nós não fôssemos nós.
As lâminas foram usadas apenas no dia seguinte. Fui eu que lhe espalhei a espuma nas faces. Com 7 anos, o meu filho mais novo ria-se de tudo. Às vezes, saía da casa de banho porque não aguentava a euforia. No quarto, a arrumar alguma coisa na mala, a organizar-se, a minha mãe fazia uma pergunta de vez em quando – como é que vai isso? Mas não esperava resposta.
Antes, durante o dia, vi a minha mãe em Las Vegas, a passar à frente de casinos, do Bellagio, do Flamingo, do Venetian. Vi a minha mãe a avançar pelos longos corredores do Caesars Palace.
O mais pequeno apontava para o irmão e tirava fotografias desfocadas. Em anos que virão, talvez a memória que guarde desses momentos seja comparável, justamente, a fotografias desfocadas. Talvez todas as memórias sejam assim. Em Las Vegas, no 25º andar de um quarto de hotel com janela para a avenida e para a distância, o meu filho mais velho fez a barba pela primeira vez.
Leia aqui todas as crónicas de viagem de José Luís Peixoto.
Crónica publicada na edição de agosto de 2017 da revista Volta ao Mundo (número 274).
Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.