Começou na rádio – e até passou pela TSF – mas foi a televisão que lhe trouxe a notoriedade. Seja em reportagem, quando vai para o terreno, ou em estúdio, quando nos ajuda a perceber as voltas e reviravoltas do mundo. Cândida Pinto fez reportagens de guerra em Angola, na Guiné, no Kosovo, em Timor, no Afeganistão ou na Líbia. Cobriu eleições e movimentos independentistas, catástrofes naturais, revoluções. Recebeu vários prémios de jornalismo ao longo de uma carreira que já leva mais de trinta anos. E tanto entrevista líderes mundiais que jogam as peças do xadrez geopolítico como fala com as vítimas desses jogos de poder. No ano passado mudou-se da SIC, onde foi repórter, editora de internacional e diretora da SIC-Notícias, para a RTP, onde é agora subdiretora de informação. Em julho regressou por uns momentos à TSF (e passou pela Volta ao Mundo) para esta entrevista.
Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha
Quanto tempo consegue estar em Portugal sem se meter num avião e partir para reportagem?
Isso é muito ilusório. Eu passo mais tempo aqui do que fora daqui. Mas as viagens são a minha grande paixão, claramente, seja em trabalho ou não. Eu tenho uma curiosidade enorme pelo mundo e pelo desconhecido, portanto é-me relativamente fácil sair da minha zona de conforto porque fascina-me totalmente conhecer comportamentos diferentes, culturas diferentes, formas de estar na vida diferentes. Nós, seres humanos, somos todos exatamente iguais, moldados depois de formas diferentes consoante o local onde nascemos e onde vivemos.
E quando viaja, consegue abstrair-se do seu lado repórter?
Isso é difícil, obviamente. Mas às vezes consigo. Sobretudo se estou muito cansada e preciso mesmo de descansar, consigo abstrair-me dessa parte. E, sobretudo, viajar quando não estou em trabalho é muito mais descansado. Não tenho obrigações e, portanto, essa parte é mais confortável. Mas, por outro lado, a curiosidade que me puxa para conhecer os sítios, os lugares, as pessoas e os comportamentos, isso está lá. É trabalhado ou não se estou a trabalhar ou não.
Traz muitas ideias de reportagem das férias que faz no estrangeiro?
É inevitável. Há sempre coisas que se atravessam no nosso caminho e às quais temos acesso. Ou coisas que se cruzam connosco e fica sempre aquela ideia a pairar. Isso já me aconteceu muitas vezes, é verdade.
Costuma andar com um bloco de notas cheio de apontamentos e ideias?
Tenho sempre. Bom, eu tenho sempre trinta mil projetos na cabeça – consigo concretizar um ou dois –, mas isso também é uma grande motivação para mim, porque eu acho sempre que há coisas que estão por fazer e que eu gostava de fazer ou dar condições a outras pessoas para fazerem, porque considero que é importante. Eu sempre tive um bocadinho esta postura de achar que este país precisa de janelas mais abertas, precisa de mais informação sobre o que se passa fora daqui, porque apesar de sermos um país europeu, estamos muito entalados entre Espanha e o Atlântico. É sempre importante abrir janelas e mostrar outras coisas.
Costuma regressar a sítios onde esteve primeiro como jornalista?
Já me aconteceu várias vezes em trabalho. Voltar aos mesmos locais por necessidades da atualidade, ou para continuar o trabalho que estava a fazer, ou para acompanhamento das circunstâncias da vida de um determinado país. Em férias também já fiz isso – fui passar férias ao Líbano, por exemplo, onde tinha estado em trabalho. Mas normalmente não acontece muito. Eu tento diversificar os meus destinos porque o mundo é muito vasto.
Quando vai de férias a países onde já esteve em trabalho, presumo que inevitavelmente faça também essa atualização – ou mesmo comparações entre condições que tinha antes e que tem agora –, ainda que não seja por motivos profissionais.
Sim, é inevitável. Mas também tento alargar as zonas que conhecia. Há sítios que se revisitam e depois alarga-se um pouco o perímetro para tentar perceber melhor como é aquele país. O Egipto, por exemplo: já lá estive em trabalho e já lá fui de férias depois e fui a sítios onde não tinha estado. Eu tinha atravessado o Egipto de carro para entrar na Líbia, do Cairo para Sul, e quando fui de férias fui para o norte, para Alexandria. Enfim, tento perceber outros locais e conhecer outras coisas.
Entre todas as viagens que já fez, de trabalho ou lazer, há uma que foi particularmente importante para si: a Rota da Seda. Porquê?
A Ásia é claramente a zona do mundo que eu conheço pior e é a que mais me atrai atualmente. E eu, de vez em quando, crio cenários quase míticos na minha cabeça. Há uns anos comecei-me a interessar pela Rota da Seda. Não só pela sua parte histórica, de há milhares de anos, que é fascinante, mas também pela parte da atualidade e do projeto da nova Rota da Seda, do governo chinês do Presidente Xi Jinping. No ano passado tive a oportunidade de fazer essa viagem, que cruza duas áreas muito interessantes. Por um lado o interior da China. Não a que estamos habituados a ver, de Pequim e Xangai, essa China desenvolvida, mas o interior do país. O Trás-os-Montes da China, digamos assim, a zona perto da Mongólia, que faz a China entrar pela Ásia Central. Por outro lado, a zona que atravessa o Quirguistão e o Uzbequistão, que são países já na Ásia Central, onde há uma mistura incrível da própria fisionomia das pessoas. Nós estamos acostumados a identificar o chinês com olhos em bico, cara muito redondinha e não muito alto. Mas quando se chega a essa zona da China já de fronteira com o Quirguistão, uma área que fica já perto do Paquistão e do Tadjiquistão, a fisionomia dos chineses é totalmente diferente. É muito mais caucasiana, tem outros contornos e influências da Mongólia. A fisionomia da pessoa já é diferente e o os hábitos também. Toda esta zona da Rota da Seda está carregada de História e com sítios míticos. Para mim, Samarcanda [Uzbequistão] é daqueles sítios…É o livro do Amin Maalouf… enfim, tem uma carga enorme. E eu fui a Samarcanda e isso para mim foi uma emoção muito grande, porque faz parte da Rota da Seda, era um ponto de contacto entre a China e o Mediterrâneo. Eu gosto deste exercício de estar num oásis no meio do deserto e de imaginar que aquilo já esteve cheio de camelos e cavalos que atravessavam aquelas zonas e traziam seda da China para o Mediterrâneo e levavam vidros de Veneza para a China. E as religiões e os conflitos, os confrontos, os conhecimentos, as ciências, as doenças… tudo aquilo atravessou aquelas zonas durante muitos anos e isso para mim é fascinante. Adoro.
Uma mitologia um bocadinho diferente foi a que encontrou na Antártida. O que a levou lá?
Eu já fui ao Polo Norte e à Antártida. E isso é um grande privilégio. Em 1994 fui ao Polo Norte, que é uma placa de gelo em cima do Ártico e dez anos depois fui à Antártida, que é um é um pedaço de terra, um continente rodeado de oceanos. São duas situações completamente diferentes. O Polo Norte é completamente inóspito e a pessoa pode ter claustrofobia, porque não há nada, é só gelo. A Antártida é lindíssima. Eu ficava num navio canadiano e andávamos muito pelos fiordes. As construções da natureza, no que diz respeito ao gelo, as cores, o sol a entrar no gelo, umas colunas geladas que faziam lembrar as colunas gregas da Antiguidade, é tudo fascinante. E os pinguins e as baleias. E depois era aquela coisa de pensar: «isto está a perder-se, isto está a derreter». E isso é aflitivo. Perceber que estamos a perder estes pedaços de natureza e de planeta absolutamente extraordinários. E quer a Antártida quer o Polo Norte são daquelas zonas do mundo em que nos sentimos do tamanho de um grão de gelo. E tudo é relativo. A relatividade da nossa vida fica exposta numa dimensão absoluta. Nós somos muito vulneráveis e somos muito pequeninos no meio de tudo isto que é o planeta e o universo. E esses locais dão-te muito essa carga.
Foram viagens que fez que uma certa «urgência», por saber que aquilo pode desaparecer realmente?
Não. Eu fiz a primeira viagem em 1994 e a segunda em 2005. Na segunda já havia um pouco esta consciência, mas em 94 ainda não havia bem a noção disso. Havia um bocadinho mas não com a carga que existe atualmente. Atualmente essa carga é muito mais forte e é muito mais urgentes olhamos para estas zonas do mundo e perceber por que é que eles são importantes. Todos os dias temos notícias de mais um mar que subiu, mais um glaciar que caiu. E quando se olha para estas zonas e se percebe por que é que elas fazem sentido no planeta, é muito angustiante perceber que podem desaparecer.
E essa é uma dimensão de destruição – dos elementos naturais – que já viu e a que vamos assistindo. Outra dimensão da destruição é aquela com que, por força da sua profissão, tem contrato: catástrofes naturais, cenários de guerra, etc. Já viu muito. Quando regressa consegue desligar e ao fim de uns dias apagar todo aquele rasto de morte e destruição que os seus olhos veem e que nos traz?
Nunca se apaga as coisas fortes com que somos confrontados. Quando se volta há ali uma fase em que é preciso arrumar o nosso interior. Arrumarmos aquilo que vimos. Identificarmos, entendermos, interpretarmos. E pacificarmo-nos a nós próprios com aquilo com que fomos confrontados. Ninguém passa por algumas dessas situações incólume, obviamente. Por muito que a nossa profissão nos dê uma espécie de autodefesa perante estas circunstâncias. A profissão de jornalista leva-nos a sermos sempre impelidos a avançar e embora, no momento, exista um impacto grande, nós não podemos ser tomados por isso e deixar de fazer o que estamos a fazer. Isso é uma defesa. Agora, quando voltamos, as defesas caem. E essas emoções e essas situações maiores sobrepõem-se. Portanto, é preciso digeri-las e é preciso arrumá-las e é preciso perceber como é que vamos viver com isso, porque vai acompanhar-nos a vida toda. Eu relativizo muita coisa. As nossas grandes dificuldades do dia a dia ficam um bocadinho menores. Mas há coisas que jamais deixarão de estar dentro de mim, porque são situações por que passo e são demasiado fortes. Mas eu também não faço disso um drama nem as carrego com um peso. Eu passei por lá e isso está imprimido na minha pele, mas o meu caminho continua.
E esses caminhos, por onde é que a levam agora? Que viagem é que sonha ainda fazer e ainda não conseguiu?
Eu nunca fui ao Japão e é uma prioridade atualmente. É uma cultura muito diferente da nossa e muito diferente do resto da China. É claramente um país que eu gostava muito de descobrir e, portanto, estou à procura de uma oportunidade para lá ir.
Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF.