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Move-se em várias áreas: na música, onde começou cedo a estudar piano e jazz com uma formação que passou pelo Hot Clube de Portugal e pelo Berklee College of Music, em Boston, nos EUA; no cinema e televisão, onde escreveu, produziu e realizou vários projetos, entre eles I’ll See You in My Dreams, vencedor do Fantasporto 2004, e Um Mundo Catita, a primeira série de ficção da RTP2; e na Banda Desenhada, onde já co-assinou vários livros: das aventuras de Dog Mendonça e PizzaBoy a Comer/Beber, passando pelos Vampiros. É professor na Escola Superior de Música de Lisboa e colabora com vários músicos, nacionais e estrangeiros.

Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha

Olá Filipe Melo. Foi justamente uma dessas colaborações, com António Zambujo, que o levourecentemente à América Latina. Correspondeu às expectativas que tinha?
Eu tenho estado a fazer esta tournée com o António Zambujo e estive envolvido na produção do disco dele. Então, tenho viajado por uma série de países. Estive no Chile, na Argentina, na Colômbia e no Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro). Ora, eu sou músico de jazz. E os músicos de jazz não sabem rejeitar trabalho. Às vezes há workshops de como rejeitar trabalho e os músicos de jazz não aprendem na mesma. Eu faço parte desse clube. Portanto, enquanto estava nesta tournée do António Zambujo, estava fechado no hotel escrever orquestrações para o espetáculo de encerramento das festas de Lisboa, um tributo ao António Variações. Então, posso falar sobre hotéis no Chile, na Argentina, no Brasil e na Colômbia. Olhem, a qualidade da Internet na Colômbia foi a melhor, curiosamente.

Ou seja, acaba por ver muito pouco dos países que visita em trabalho.
Verdade. Mas houve um dia que saí, na Colômbia. Posso contar? Espero não aborrecer os nossos estimados ouvinte. Eu fiz mais ou menos uma média de quanto tempo tinha que trabalhar por dia nas orquestrações – que tinha de entregar pouco tempo depois de regressar a Portugal. Tinha quatro horas e meia por dia para cumprir. Então, certo dia ligo o meu computador, pronto para trabalhar, e aparece num sinal de proibido. Depois de estar agarrado ao telefone a ver como é que eu arranjava aquilo, percebo que tenho de ir a uma loja da MAC. Então lá vou eu com o contrabaixista à procura de uma loja da Macintosh na Colômbia. Onde me dizem que não conseguem arranjar o meu computador porque ele é muito velho. Recambiaram-nos para uma loja de um colombiano que arranjava coisas. Eu chego a uma loja onde está basicamente uma pessoa que podia ser figurante no Narcos [série de TV]. Entrego o computador e digo ao contrabaixista: “este tipo tem ar de quem percebe do assunto, vai-me safar e eu vou conseguir trabalhar hoje”. Ele está duas horas e meia à volta do meu computador e no fim chega, entrega-me o computador e diz: “nada feito, morreu”. Conclusão da história: eu vejo um sinal na parede que diz: “não nos responsabilizamos por computadores abandonados mais do que dois meses”. Eu perguntei se ele não tinha um daqueles para me vender. Ele disse que não mas que me vendia o computador dele. E eu pensei: “ok, estou prestes a ser roubado”. “Isto vai custar quatro milhões de pesos.” Fiz as contas e eram 150 euros. Portanto, comprei um computador na Colômbia por 150 euros e consegui acabar os meus arranjos com um Macintosh de 2009 comprado a um colombiano.

E foi nesse passeio à procura de uma loja de computadores que passeou um bocadinho…
Sim. Vi ali um quarteirão. Mas era uma quarteirão bastante bonito.

Entre tantos projetos que tem em mãos, presumo que algumas ideias possam surgir em viagem. Costuma andar com um bloco de notas, com um gravador…? Onde anota as ideias que surgem se estiver no cimo de uma montanha ou num clube de jazz em Nova Orleães? Onde calha…?
Isso é tudo muito romântico. Eu diria que normalmente, quando estou a viajar, tenho um prazo de qualquer coisa para entregar aqui. E passo pelo hotel para arranjar uma solução rápida para desenrascar qualquer coisa. Mas sim, aparecem boas ideias assim. Viajar é sempre importante. E conhecer pessoas e lidar com situações faz-nos querer transmitir depois isso de alguma forma artística. Conhecer pessoas, para mim, é sempre a parte mais importante. E acho que as boas ideias não surgem assim no momento. Acabam por ser o reflexo das memórias das viagens e das pessoas que vamos conhecendo. Eu acredito que é a memória que fica que depois vai contribuir mais para essa riqueza artística que surge.

E depois no resultado final desse trabalho – uma orquestração, uma banda desenhada, seja o que for – acaba por sentir que “isto nasceu de uma viagem que fiz ali, aquilo nasceu de uma coisa que vi acolá”?
É uma boa questão. Eu nunca tinha pensado nas coisas assim, mas é verdade que há determinadas coisas não me lembro onde surgiram mas sei que não foram em casa. É importante estar atento a música dos outros países, investigar, ter curiosidade. A curiosidade é capaz de ser a característica que eu mais valorizo. E andar a viajar de um lado para o outro, tocar com músicos de outros países e ouvir as coisas atentamente acaba sempre por se refletir naquilo que fazemos, seja qual for a área.

Uma das suas últimas bandas desenhadas, ComerBeber (que deu depois origem a uma curta metragem premiada nos prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema) levou-o à América, uma América mais profunda, aquela que vemos um bocadinho no cinema. Isso inspira-o?
Claro que sim. Eu vivi quatro anos nos EUA, com tudo de bom e de mau que isso acarreta. É um país muito preconceituoso nalgumas coisas, mas depois tem uma riqueza imensa no cinema. O que se passou foi isto: nós fizemos uma banda desenhada, eu e o meu colega argentino que faz os desenhos [Juan Cavia], com quem trabalho sempre. Fizemos uma banda desenhada que, por uma razão que não posso dizer porque estraga a história, se passa na América. Ele, para se inspirar para os desenhos, viu uma série de imagens e desenhou um diner que viu num filme. Ora, esse livro depois viaja até aos Estados Unidos por um amigo dele que é diretor de fotografia, que ao ver os desenhos identificou o diner onde aquilo se passava. E pensou: “Este diner é a uma hora e meia daqui, portanto vamos filmar uma curta-metragem que vai sair muito barata”. E assim foi. Com uma equipa reduzidíssima e muito pouco tempo de rodagem. Mas quando estamos ali mesmo, no deserto, aponta-se a câmara para qualquer lado e o nosso imaginário faz logo clique.

E já visitou sítios só por esse imaginário cinéfilo de que tanto gosta?
Nunca. É uma tristeza. Tenho esta ilusão de ir a um sítio onde possa estar a conviver com bichos. Eu quero conviver com animais porque estou farto de humanos. Os humanos estão a estragar esta porcaria toda. Eu recupero alguma esperança neste planeta quando vejo animais em liberdade. E se forem bebés, ainda melhor. Se falássemos de um destino de sonho, seria alguma coisa assim. Mas normalmente isto é substituído por uma ida para Tondela – que é onde eu passo férias normalmente porque tenho lá uma cada de família. E recomendo a toda a gente que vá lá e que vá a um restaurante chamado Os Três Pipos e que recupera a energia. Eu não diria que isto substituiu a viagem a um destino paradisíaco…

Não substitui o Serengeti nem Ngorongoro nem sítios desses com bicharada com fartura…
Não. Mas posso receber sugestões dessas [risos].

Há quanto tempo é que não tem férias ou viaja por prazer?
Deixem cá ver.. Acho que a última vez foi para aí em 1975… [risos]. Eu estou sempre a adiar isso e é um erro.

Quantas viagens faz por ano?
Varia um bocadinho, mas eu diria que viajo bastante. Sei lá, umas dez, quinze.

E são sobretudo viagens de trabalho?
Sim, sim. Por causa da banda ou dos filmes ou da música. É uma estupidez porque parece que quando chega a altura de tirar férias, a nossa educação faz-nos sentir culpados. E isso tem de ser combatido. E eu tenho estado a aprender a fazer isso.

Quando regressa de viagem tem de comprar mais malas para trazer os livros de banda desenhada que comprou? Ou os CD, se é que ainda compra CD.
Por acaso é verdade. Ainda agora estive no Brasil, por causa da música. E um dos nossos livros de BD, Os Vampiros, está editado lá. E então fizemos assim uma tertúlia de gente da Banda Desenhada e obviamente que saí de lá com um saco gigante de livros. E depois pesa.

Mas quando finalmente viaja por prazer – ou pelo menos da última vez que o fez – é um viajante que planeia muito ou compra o bilhete e logo se vê?
Eu não me lembro da última vez que planeei alguma coisa na minha vida. Férias incluídas. Aqui há tempos tinha esta ideia de ir com a minha mulher à EuroDisney. Apetecia-me ir andar em montanhas russas. E acabou por nunca acontecer. Foi-se adiando, adiando, adiando. Se eu pudesse voltar atrás no tempo começaria a dar mais prioridade a estas coisas.

Mas ainda vai a tempo…
Sim. Vou tentar. Se calhar é este o ano.

Se tiver oportunidade, vai assistir a espetáculos, quando está a viajar?
No meu caso é muito misturado. Vou falar, por exemplo, do privilégio que foi agora viajar com o António Zambujo. O António tem uma ligação muito forte à música brasileira. E, obviamente, quando chega a altura de nos encontrarmos para um jantar, ou o que quer que seja, de repente estamos com o Ney Matogrosso, a Bebel Gilberto, a Marisa Monte… Ora, obviamente, uma pessoa acaba por estar exposta ou melhor que este planeta tem para oferecer em termos artísticos. Essencialmente é isso: conhecermos músicos, seja a colaborar, porque vêm tocar connosco, ou porque vamos ver espetáculos a seguir.

E por falar espetáculo: tenho de fazer esta pergunta porque sempre quis dizer esta palavra em antena, numa entrevista. Já viu espetáculos no estrangeiro mais originais ou com nomes mais sugestivos do que o seu Uma Nêspera no Cu? Seu, com o Nuno Markl e o Bruno Nogueira.
Sim, sim, com esses dois bons amigos. Na verdade esse podcast nasceu na TSF. Foram três pessoas sem nenhum interesse ou ambição financeira que decidiram colocar o antigo dilema “preferes isto ou aquilo”. Esse nome surgiu porque o Bruno Nogueira queria um nome que inviabilizasse à partida qualquer reunião com patrocinadores. E a coisa assumiu proporções que nenhum de nós imaginava. E damos por nós e estamos durante nove noites no Coliseu [dos Recreios de Lisboa] a dançar e a cantar e a dizer barbaridades.

E espetáculos no estrangeiro com esse formato e com nomes tão ou mais sugestivos do esse? Gosta de ver? É atraído por isso?
Outra daquelas viagens que eu quero fazer é ir até Londres para ver o The Book of Mormon, por exemplo. Quero ir ver aquilo, quero ver o Hamilton, quero ver essas coisas. Nunca vi. Raios!

E gosta de regressar a casa? Essa parte da viagem é importante?
Eu acho que possivelmente é o mais importante. E é o que eu gosto mais. Isto assim soa amargo, parece que eu não gosto da viagem. Mas eu passo muito muito tempo sozinho. Então, quando tenho esse tempo e sinto a calma e a quietude do lar, é quando eu posso desfrutar das memórias que adquiri. Portanto não há nada melhor para mim do que regressar a casa.

E qual é aquela viagem de sonho que ainda não fez?
Vou dar uma resposta extremamente original: Japão.

Porquê?
Porque não?

Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF, a 23 de julho de 2019


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