O que há de novo numa cidade com mais de três mil anos? Moda, gastronomia, hotelaria, indústrias criativas. Sempre com o toque indiano de cor e sabor.

Texto e fotografias de Rafael Estefania

Em Deli, a cidade que nunca para, só o tempo se detém. Uma fotografia noturna feita a baixa velocidade desde as alturas registaria milhares de pontos de luz movendo-se sem tréguas em todas as direções, o sangue de uma cidade circulando por veias imaginárias. E no entanto, apesar da sua atividade constante, no coração histórico da velha Deli os ponteiros do relógio deixaram de girar há séculos. Resguardados pelas impressionantes muralhas escarlates do Forte Vermelho, desfilam enxames de homens carregando na cabeça cargas impossíveis, mulheres com coloridos saris vindas de aldeias próximas, caminhando com uma expressão perdida, mendigos de outros tempos, cabras transportadas em riquexós, carros empurrados por grupos de esfarrapados, vacas com o lombo pintado ruminando no meio do lixo, lojas ambulantes, trocas incessantes e vida de rua com o sol e a intempérie como companhias.

O ruído constante das buzinas dos riquexós, similar ao som dos carrosséis, é a sua banda sonora. O odor forte, mistura de milhares de outros cheiros, de especiarias, de suor, de fumos de veículos vetustos, é o seu perfume. O ar pegajoso e carregado de pó, a sua embalagem. Aqui, o tempo parou. Demasiados séculos ancorada no passado para que agora tudo mude. Os seus três mil anos de antiguidade, segundo o texto sagrado Mahabharata, convertem Shahjahanabad, nome pelo qual se conhece a velha Deli, numa das cidades mais antigas do mundo. Só saindo dos limites medievais emerge outra cidade vibrante que, com as limitações de uma urbe de quase vinte milhões de habitantes – dos quais quatro milhões vivem abaixo do limiar da pobreza –, abraçou a modernidade com a mesma teimosia com que a velha Deli se agarra ao seu passado.

Ao fim de semana, os mais jovens de Nova Deli escolhem o críquete e piqueniques junto aos monumentos da cidade, nos tempos livres.

A nova Nova Deli

Nenhum outro lugar como a Hauz Khas Village representa o tal olhar para o futuro. Esta antiga aldeia no Sul da cidade transformou-se nos últimos anos no epicentro da modernidade de Deli, com as suas boutiques coquettes, os seus restaurantes cool e os seus bares com terraços. HKV, tal como é conhecida, é motivo de orgulho num setor ainda muito minoritário da sociedade, que adotou a modernidade chegada do Ocidente como modelo. Felizmente, nem sequer a globalização conseguiu impor em Deli o padrão de estilo quadriculado presente hoje em muitas capitais mundiais. Isto é a Índia e aqui o desenrascanço é parte do ADN do país. Bares com terraços, sim, mas com vista para uma rede elétrica formada por emaranhados de cabos piratas que iluminam centenas de casas. Boutiques coquettes também, mas escondidas em passagens iluminadas por uma solitária lâmpada, paredes meias com modestas casas que vendem caril. Marcada por este contraste, uma pessoa surpreende-se ainda mais quando entra numa destas lojas de design minimalista e com roupa que não estaria fora de sítio nas passarelles de Londres ou Nova Iorque. Hoje, são mais de cinquenta espaços que se mantêm abertos, uns por cima dos outros nas reduzidas dimensões da HKV.

Durante as noites de fim de semana, dão-se engarrafamentos de táxis e de riquexós carregados de jovens turistas, que aqui chegam em busca de música ao vivo, restaurantes de cozinha internacional e clubes com DJ para dançar até de madrugada. A barreira que marca a entrada na rua pedonal, espinha dorsal da Village, não é apenas física mas também mental, uma espécie de fronteira que separa este bairro do século XXI do resto da cidade. Mas a marca da modernidade não é o único atrativo da HKV.

Táxis e riquexós carregados de jovens turistas chegam em busca de música ao vivo, restaurantes de cozinha internacional e clubes para dançar até de madrugada. Os tempos são de mudança

O complexo histórico de Hauz Khas, com a mesquita medieval, a madrassa, os túmulos e o lago de água esverdeada, é um dos recantos favoritos dos habitantes de Deli para escapar ao turbilhão da cidade, passear, jogar críquete ou tirar selfies entre estas impressionantes construções semiabandonadas.

Deli colonial

Na Porta da Índia, o espetáculo diário de Deli é encenado todos os dias. Um grupo de alunas da escola secundária, vestidas com uniforme escolar de sari azul e branco, formam duas ordenadas filas junto ao monumento. Frente a elas, um polícia com uniforme de gala vigia com trejeitos de seriedade o Túmulo do Soldado Desconhecido, que recorda os noventa mil hindus mortos na guerra. O ar severo contrasta com o seu chapéu vermelho-vivo engalanado com uma pena de pavão. No tanque que rodeia o monumento, três crianças de calções brincam com a água dando cambalhotas sem se importar que a água lhes chegue apenas aos joelhos. Um pouco mais distante, um homem tira uma pequena cesta da mochila. Coloca-a no chão olhando à sua volta. Ao levantar a tampa, uma cobra ergue-se de forma preguiçosa como se tivesse terminado a sesta. A recente proibição do governo indiano de ter cobras como animais domésticos condenou os encantadores de serpentes à ilegalidade. A tradicional fotografia do turista com a rainha dos répteis e os monumentos da cidade ao fundo, é hoje um instantâneo clandestino.

A capital indiana e a sua zona metropolitana acolhem mais de 21 milhões de pessoas.

A Porta da Índia é o coração da Nova Deli imperial forjada pelos britânicos em 1911. Daqui, a Avenida de Rajpath, a artéria do império e avenida cerimonial, desemboca na Rashtrapati Bhawan, a antiga residência dos vice-reis. Esta grandiosa ode arquitetónica ao imperialismo, concebida pelo arquiteto Edwin Lutyens, tem mais de 1200 hectares de espaços verdes, edifícios do governo e residências dos oficiais que durante os tempos do império governaram milhões de indianos. Parte desse legado é também a Connaught Place, uma praça circular com 335 metros de diâmetro e três anéis. Está convertida hoje no centro comercial e financeiro por excelência da cidade. A sua espetacular estrutura de estilo vitoriano está praticamente coberta de publicidades da Sony, Starbucks, Burger King e centenas de outras marcas.

O antigo branco dos seus edifícios, hoje de cor acinzentada devido ao fumo de centenas de milhares de veículos que circulam em seu redor, é um lembrete dos efeitos do progresso.

Pelos oásis de Deli

Numa cidade como Deli, os oásis são necessários para recuperar a paz interior que o ritmo incessante da cidade rouba. Aqui, os sentidos trabalham sem descanso para registar as imagens, os odores e os sons de uma cidade que se move a mil à hora. Oásis físicos e mentais em forma de parques onde se possa respirar ar que não saia diretamente de um tubo de escape, lojas de antiguidades onde uma pessoa se perde em contemplação, restaurantes internacionais para dar descanso ao paladar depois de uma dieta de picante e especiarias. Um destes lugares é o Agrasen Ki Baoly, uma estrutura de bancadas de pedra em redor de um poço que desce 103 degraus pelo subsolo. Construído no século XIV, este antigo depósito de água é um dos monumentos mais desconhecidos da cidade. Nas ruas adjacentes, filas de roupa lavada, provenientes das lavandarias ao ar livre, decoram as calçadas, secando ao sol. Passeios inteiros praticamente ocultos sob os lençóis estendidos.

No mercado de Mehar Chand encontramos um oásis de negócios reconvertidos com sensibilidade estética. Lá, estão jovens designers indianos de roupa e móveis, lojas de antiguidades, livrarias e locais cosmopolitas onde ver uma exposição ou almoçar num bistrot francês. Refúgio de artistas e de profissionais criativos, Mehar mantém ainda a frescura e recorda os primeiros anos da HKV, antes de se converter no local oficial da modernidade em Deli.

Outros oásis surgem onde menos se espera. No meio da voragem que é o mercado de especiarias da antiga Deli, os carregadores que todos os dias levam nas suas cabeças sacas com toneladas de pimenta, açafrão e pimentões, entre um potente aroma picante que seca a garganta e humedece os olhos, é possível subir ao miradouro do mercado e maravilhar-se com o contraste entre o bulício do comércio e a quietude do pátio da mesquita Fatehpuri Masjid. Dois oásis ainda nos esperam no Sul da cidade.

Há oásis citadinos dentro de Nova Deli. Descobri-los é encontrar os refúgios da jovem população local. Jardins, cafés, parques ou monumentos são alguns dos locais escolhidos para passar o tempo.

O primeiro, as ruínas de Qutub Minar, com o seu impressionante minarete de pedra arenisca vermelha (o mais alto do mundo) de cores ocres e o complexo arqueológico que o rodeia, onde se assiste a um glorioso entardecer; o segundo, o Templo de Lótus, sem dúvida a obra arquitetónica moderna mais importante de Deli, uma espetacular construção de cimento e mármore branco com jeitos da Ópera de Sydney. O minarete decorado com elaborados entalhes e versículos do Corão aponta desafiante ao céu enquanto que o templo se abre como uma flor de lótus, revestido por um conjunto de nove tanques azuis. Credos distintos e diferentes séculos em duas construções que servem para recuperar a paz interior e parar, ao menos por uns instantes, a cidade que nunca para.


Guia de viagem

Documentos: Passaporte e Visto
Moeda: Rupia Indiana (INR). 1 euro equivale a 74,07 INR
Fuso horário: GMT + 5h30
Idiomas: Hindi e Inglês
Quando ir: dezembro a março, é a época alta, com dias quentes e noites amenas.

Ir

Não há voos diretos de Portugal. As melhores opções são com a KLM, via Amesterdão, ou com a British Airways, via Londres.

Dormir

Scarlette Hotel
Hotel boutique de quatro quartos. Fusão indo-francesa e cheio de estilo em cada recanto. Sem dúvida, uma das opções com mais encanto em Deli.
scarlettenewdelhi.com

The Lodhi
Luxo e design no pulmão da cidade.
thelodhi.com

Hotel Bloom Rooms
Hotel barato em plena cidade velha. Moderno e funcional.
bloomrooms.com

Comer

Le Bistro du Parc
Requintada cozinha francesa sem pretensões. Ambiente jovem e jazz ao vivo todas as quintas-feiras.
lebistroduparc.com

Olive Bar and Kitchen
Três restaurantes cheios de estilo em torno de um pátio, com um terraço com vista para Qutub Minar.
olivebarandkitchen.com

Comprar

Lovebirds
Joalharia, roupa e acessórios de designers indianos na HKV.
lovebirds-vintage.tumblr.com

All art
Posters antigos de Bollywood e de campanhas publicitárias vintage neste sótão da HKV.

Artisan de luxe
Souvenirs com estilo nesta loja de vários criadores indianos no mercado de Mehar.
facebook.com/artisanluxe

Ver

– Forte Vermelho
– Mesquita de Jama Mashid
– Chadni Chowk
– Porta da Índia
– Hauz Khas Village
– Mausoléu de Humayun
– Mercado das especiarias
– Jardins de Lodi
– Qutub Minar
– Templo de Lótus


Passado em perigo
Um século depois da sua construção, as antigas residências governamentais dos administradores coloniais poderiam ter os dias contados. Os especuladores, que procuram demoli-las e construir no seu lugar blocos de vivendas, têm-nas em ponto de mira. Numa cidade onde os sem-abrigo se contam aos milhões, este complexo de mais de um milhar de luxuosos bungalows com terreno em volta para cada um é para muitos um luxo difícil de justificar e manter, um resquício do servilismo devido à colónia. Para outros, estas residências neoclássicas são uma parte de um legado arquitetónico da Deli em perigo de extinção. A batalha entre a tradição e o desenvolvimento faz-se através dos despachos oficiais das autoridades locais de Deli.


Reportagem publicada originalmente na edição de março de 2016 na revista Volta ao Mundo, número 257.

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