Esta é uma reportagem publicada na Volta ao Mundo em 2005. É um murro no estômago ler e perceber como um país que era tão apaixonante mudou tanto. Damasco já não é o que era, Alepo desmoronou-se, o património histórico desapareceu, milhares de vidas perderam-se ao longo destes sete anos de guerra – que se arrastam sem fim à vista. Recorde ou descubra como já foi um dos países mais surpreendentes.

Os sete pilares da sabedoria

Inspirado no título da obra autobiográfica de T.E. Lawrence, também conhecido por Lawrence da Arábia, onde o oficial do exército britânico relata a história da luta que dirigiu pela independência de alguns países do Médio Oriente, fica o percurso por um deles, a República Árabe da Síria, em sete etapas monumentais. Um território imenso, entre o mar Mediterrâneo e o deserto, surpreendente e apaixonante. Quase todos passaram por aqui. E quase tudo começou aqui.

Texto de Sérgio H. Coimbra
Fotografias de Constantino Leite

Para trás ficavam o controlo de passaportes e a alfândega e as formalidades que sempre acompanham uma visita avalizada pelas autoridades turísticas. Já na auto-estrada que liga o aeroporto a Damasco, ouvíamos Adeb Thabet, um libanês que optou por viver entre os sírios, quebrar o silêncio da madrugada: «Não é verdade que seja a cidade mais antiga do mundo como se escreve em alguns guias, mas é de facto a mais antiga capital do mundo.» O guia que nos vai acompanhar por terras sírias pronunciou-se com sabedoria.

Damasco arrasta-se numa história com muito mais de dois mil anos como capital de uma nação. Embora, bem entendido, essa nação visse a sua designação e o seu território alterado ao longo dessa mesma história: cananeus e filisteus, assírios e babilónios, egípcios e fenícios, gregos e romanos, persas e otomanos, franceses e ingleses, testaram a elasticidade das linhas fronteiriças neste lugar encravado entre a Ásia e o Mediterrâneo. Mas isso pouco importava na madrugada deste primeiro de 15 dias na actual República Árabe da Síria – tudo o que víamos da mítica Damasco era um mar de pontos de luz amarelados denunciando o labirinto urbano, um mar aqui e ali retocado pelo verde fosforescente exalado pelos minaretes na sua inacabada subida ao firmamento.

A capital da Síria teria mesmo de ficar para mais tarde; nós seguimos para norte afastando-nos noite adentro para o desconhecido. Mas o destino final desta etapa tinha um nome: Maalula. Literalmente – literalmente em aramaico para ser mais preciso – maalula significa «entrada», o que denuncia bons auspícios para esta aventura pela grande Síria. Não há nada como começar pelo princípio. Muito antes de Jesus ter nascido, este lugar era um paraíso, um oásis, a entrada para um rio que escorria por muitos quilómetros levando prosperidade e frescura.

Hoje sobra apenas a nascente e um fio de água que serpenteia, raquítico, num canal de pedras, desenhado num desfiladeiro com dois metros de largura e 50 de altura. Ravinas acima erguem-se as casas aterraçadas, escalando as falésias como gigantes e cúbicos ninhos humanos. No passado, o sítio era habitado por quem preferia viver no acolhimento de grutas escavadas nestes penhascos. Tudo o que sobra dessa civilização aqui em Maalula são esses buracos desenhados com a precisão de um cinzel de bronze, e a língua que ainda se fala como no tempo de Cristo: o aramaico. E já não é pouco.

A vila tem dois outros encantos para os mais crentes: o Mosteiro de São Sérgio e São Baco e o túmulo de Santa Tecla. O primeiro, encavalitado numa escarpa das redondezas, atrai sobremaneira – e uma visita revela que a clausura é apenas aparente; dentro da igreja bizantina, obviamente de rito ortodoxo, a vista liberta-se para darmos conta de belos retábulos orientais, altares trabalhados com requinte e um baldaquino de madeira do século XIX que deixa boquiabertos aqueles que, como eu, acreditavam que as mais belas coisas caem do céu. Numa porta ao lado, um pequeno museu mostra como se trabalhava a terra e a vinha em tempos remotos como os dos Dez Mandamentos. À volta do mosteiro podemos passear entre as grutas que protegeram os primeiros habitantes da região e, sobretudo, observar a paisagem dramática de vales férteis que na distância se vão perdendo nas areias do deserto.

Tartus, pouco a norte do Líbano, onde o mar Mediterrâneo nos toca pela primeira vez. A cidade acaba por ser mais bonita à noite, quando os minaretes tomam conta do céu.

Quanto a Santa Tecla (princesa de Damasco convertida, atirada a leões e serpentes pelos romanos, acabaria por se ir de morte natural, o que não impede de ser considerada a primeira mártir da cristandade), jaz aqui numa gruta emparedada por três arcos de pedra. Após o sacrifício de 140 degraus subidos sob o sol escaldante, lá dentro descobre-se um pequeno largo sombrio onde despontam um damasqueiro e duas fontes – uma para nos benzermos, outra para dar de beber à sede. Logo depois uma outra entrada mais apertada, que se faz descalço de sapatos, desemboca um minúsculo compartimento onde ardem velas e se penduram oferendas. Cruzes e terços, pernas e mãos de prata, pedaços de roupa e muletas, Fátima revisitada mas no espaço da Betesga. Diz Adeb Thabet, o guia que desconfio cristão, se católico ou maronita não sei, abanando a cabeça em sinal de respeito: «Muita gente, muita gente acredita nos milagres de Santa Tecla, e vem aqui pedir coisas ao longo do ano.» Antes de me retirar acendi uma vela. Cá fora, neste deserto de areia e rochas, começou a pingar chuva.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se; a maneira de esta gente conduzir (entre buzinadelas constantes e carros que seguem em contramão em plena auto-estrada) mantém-nos alerta mesmo na mais sonolenta paisagem de montanhas despidas de árvores e de casas incolores como a própria areia. Mas passada meia hora, sabendo, sem surpresa alguma, que o número de acidentes per capita é menor na Síria do que na terra pátria, começamos a olhar o panorama. E a caminho do Mediterrâneo passamos por alguns lugares interessantes, entre os quais não se deve deixar de nomear a vila de Yabrud; não tanto pelas suas grutas milenares ou pelas centenas de graciosos pomares de damasqueiros, antes pelas casas apalaçadas que a família Menem construiu na rua principal com elaborados requintes kitsch – sei que sou o único na ignorância de o famoso ex-presidente da digníssima República Argentina ter origem neste berço de civilizações, e por isso deixo esta pérola do sightseeing como reparação dos meus desconhecimentos. Quanto aos prédios, é melhor não dizer mais nada – gostos não se discutem.

História e simpatia: eis o resumo da viagem. Cidades medievais, mesquitas seculares e uma gente capaz de receber os estrangeiros com um sorriso juntam-se Tartus.

Um pouco mais à frente entramos no vale de Orontes – o rio que viaja ao contrário, nascendo nas montanhas do Líbano, a sul, para a turca Antioquia, a norte. Este vale, onde por momentos esquecemos a aridez que tudo aqui condiciona, mostra-se cheio de vida: hortas, vinhas, campos de trigo, corredores de oliveiras, caminhos ladeados de cedros… uma festa para os olhos e para a alma. E andando mais um bocadinho, até um cume numa etapa de montanha de primeira categoria, atingimos a segunda meta desta jornada: Krak des Chevaliers, uma das jóias da arqueologia da Síria.

A fortaleza ergue-se no mais alto topo da província com imponência e distinção: duas filas de paredes grossas como cinco metros, unidas por um fosso profundo e largo, guardadas por 13 torres de dimensões assustadoras dão ideia de como se levavam a sério as batalhas neste lugar. Em contraste com esta brutalidade guerreira, a harmonia do seu interior: a Torre da Filha do Rei, os arcos da igreja transformada em mesquita, as rosáceas da sala dos cavaleiros. Tudo trabalho dos cruzados cristãos que há mais de mil anos demandaram estas terras, mais tarde retocado pelos artífices árabes que reconquistaram o sítio, e a que, mais tarde ainda, os ocupantes turcos também dariam a sua «pincelada», como se pode perceber pela existência dos banhos e outros edifícios administrativos tão característicos da cultura otomana.

Os cavaleiros levaram cerca de cem anos a construir este forte, considerado do ano de 1150, que podia ter uma guarnição de quatro mil mercenários vindos oficialmente em defesa da cristandade. E o forte sempre resistiu, até 1270, quando um sultão ao serviço de Saladino e dos seus fiéis muçulmanos conseguiu quebrar a resistência com uma manobra pouco militar mas sempre eficaz e indiferente aos credos: subornando os guardas de modo a que baixassem a ponte levadiça. Para os cruzados, na maioria francos, era o princípio do fim – mas também, que faziam eles aqui, a mais de mil quilómetros da cidade sagrada de Jerusalém, que tinham vindo para libertar? «O Castelo dos Cavaleiros domina um panorama que se estende da Turquia ao Líbano, e a respectiva rota comercial», rica em seda e brocados, ouro, incenso e mirra. Adeb Thabet deixa-nos com esta pérola e afasta-se para ir fumar o seu Gitanes light, sinal de que os francos ainda não deixaram a Síria por completo.

Pouco menos de uma hora depois chegamos ao Mediterrâneo, concretamente à cidade de Tartus. Não vamos perder aqui muito tempo, dá logo para perceber enquanto seguimos pela marginal. À nossa esquerda, o mar, azul e ondulante, chega porém a uma praia tão imunda que só dá vontade de virar a cara. Mas do outro lado os olhos não vêem melhor: prédios esventrados, ruas a desmoronar, não fora a sinalização e até parecia estarmos em Beirute ao tempo da última guerra civil. Na verdade, a pobre Tartus sofre apenas uma dor de crescimento e modernidade; dentro de cinco anos, quando for erguida a nova marina, levantados os envidraçados hotéis de cinco estrelas, aplainada a avenida ao correr das palmeiras, a urbe será irreconhecível. Hoje, bem, hoje vamo-nos recolher no hotel.

Em boa verdade há dois passeios que pode aproveitar para fazer se chegou aqui. O primeiro levá-lo-á à cidade velha, onde as pessoas de hoje habitam uma labiríntica vila medieval em decadência. O segundo faz-se navegando, em barco a motor que se apanha no pequeno porto de pesca logo ali na marginal. Meia hora depois de deixar terra, eis-nos em Arwad, a única ilha da costa síria. Nas estreitas ruas do que foi em tempos outra fortaleza e vila medieval – o último reduto dos cristãos antes da sua irremediável fuga da Terra Santa – cruzamo-nos com demasiadas pessoas e lojas. Na verdade, a ilha tem menos de um quilómetro quadrado e é habitada por quatro mil gentios.

Continuamos a nossa fuga para norte, seguindo sempre a costa mediterrânea, e chegamos a Latakia, a antiga Laodiceia (não sem antes passarmos por outra fortaleza, Qala’at al-Marqab, fundada por árabes mas usada pelos cruzados, de onde se tem uma vista impressionante sobre o mar – será que se consegue ver Chipre em dias mais limpos?). Latakia, em árabe Al Ladhiqiyan, é a Riviera da Síria. Em boa verdade, as praias continuam por agradar, mas é aqui que se erguem o Meridien e o Cham Côte d’Azur, hotéis que exibem as suas estrelas para atrair comerciantes ricos da Síria, outros do Líbano, da Jordânia e mesmo dos estados do golfo Pérsico. Talvez reflectindo esta atmosfera de prosperidade, é nas ruas desta cidade que encontramos a mais ocidentalizada juventude, que se concentra nas avenidas principais para comer gelados e dançar ao som de walkmen. E hijabs, o lenço que algumas mulheres usam a cobrir a cabeça? Não, não nestas paragens.

Mas não é por isso que Latakia foge ao destino histórico que se agarra à Síria como a areia ao deserto. A 500 metros das praias, encontramos Ugarit, uma cidade fundada por ainda desconhecidos para os arqueólogos que permanentemente esburacam o lugar, mas que recolhe unanimidade na sua importância – a mais próspera cidade costeira no séc. XIII antes de Cristo. «Quando olhamos para estas civilizações, até parece que Atenas e Roma eram impérios de ontem», comenta do alto da sua filosofia o nosso guia Adeb Thabet.

Pode apreciar alguma dessa história no Museu de Latakia, com uma colecção impressionante de artefactos e até um raríssimo sarcófago cilíndrico (um conjunto mais apreciável que o visível no Museu de Tartus, embora este último tenha o seu charme por se mostrar dentro de uma antiga catedral). Hoje, sob o duro sol do meio-dia, o lugar pode parecer um amontoado de pedras, mas também podemos ali imaginar facilmente palácios e templos, piscinas e águas correntes, um mundo maravilhoso ainda por decifrar. Certo, certo é que foi aqui, entre as rochas da biblioteca de Ugarit, que foi encontrada a pedra com o primeiro alfabeto da história do mundo, mais tarde adaptado por gregos e romanos.

Os otomanos passaram por aqui. Não é difícil encontrar banhos turcos pelos lugares sírios; difícil é descrever o prazer de os frequentar.

Ainda com o alfabeto de Ugarit na cabeça, cruzamos a cadeia montanhosa que separa a costa mediterrânea do interior da Síria. Durante duas horas vamos subir, e subir por cima dos quase dois mil metros das montanhas conhecidas por Jabal al Alawiyin, enquanto a paisagem e o clima mudam à nossa volta: há cada vez mais vegetação e árvores, faz cada vez mais frio. Uma paragem leva-nos ao castelo do herói árabe Saladino, ou melhor, Salah ad-Din, isto é, «Rectitude da Fé»: a fortaleza já não é grande coisa, mas a vista vale a pena. E umas milhas adiante, no cume dos cumes, a vista é ainda melhor: a dos campos agrícolas desenhados a régua e esquadro e pintados com uma paleta de verdes e ocres. Restava-nos descer para o encontro com Alepo, e ninguém queria esperar.

A segunda cidade da Síria é dominada pela cidadela, erguida no topo de uma colina como uma coroa com as suas muralhas e torrietas, a partir de onde descem as casas, como um manto de terraços, as imensas casas que abrigam mais de três milhões de pessoas. Alepo é cidade Património Mundial, e esta cidadela mandada levantar por príncipes árabes no século XII mostra, nas suas salas do trono, portões e janelas, pátios e ruelas, razões para tal classificação. Mais recentemente, um arqueólogo alemão veio a descobrir que antes da construção muçulmana, uma outra, do século X a.C., teria existido no mesmo lugar. A história não tem fim. Adeb Thabet, sem contemplações: «Começo a pensar que é melhor deixar de abrir buracos aqui na Síria.»

Alepo, a norte, perto da Turquia é Património Mundial. Mas não é a sua antiguidade que mais impressiona; antes as pessoas lá vivem numa paz de espírito invulgar.

Há também uma atmosfera cosmopolita que se cheira pelo caminho, e isto deve-se às várias culturas que vieram aqui encontrar-se. Neste Noroeste, aos sírios juntaram-se turcos, curdos e até mesmo arménios. Aliás, o bairro arménio é um daqueles que não pode deixar de conhecer – um conjunto de ruas fechadas com portas altas, trabalhadas, dão casa a prédios cuja graciosidade sobresssai em cada esquina: nas fachadas, nas varandas e nos arcos que os ligam entre si. Se não teve a sorte de ficar num dos hotéis da zona, tente pelo menos os restaurantes, cujos pátios interiores e salas em vários níveis convidam a umas horas bem passadas, sobretudo as mais abafadas. Foi aqui, a ouvir o alaúde e uma canção parecida ao nosso fado, que adormeci a sonhar que a Ibéria árabe ainda não teve fim.

Por fim deixo-lhe o souk. Alepo era (é?) o centro das rotas comerciais que ligam o Médio Oriente, a Ásia e a Europa, e isso é uma das razões para ter sido tantas vezes destruída para a seguir ser imediatamente reconstruída ao longo das suas centenas de anos de história. Mas o souk nunca foi tocado e ainda hoje por lá cheiramos cravinho e pimenta, sentimos o algodão e a seda, somos ofuscados pelo ouro e prata. O souk divide-se em vários souks: o da mercearia, dos sapateiros, da ourivesaria, da latoaria, etc. Se for com quem conhece o lugar, peça para ser levado a um dos rais, as estalagens para as caravanas, onde se descansava e se comercializava; se for com quem realmente conhece esta terra, peça para ir ver precisamente aquela onde Marco Polo assentou antes da demanda do Extremo Oriente.

Mas o lugar é muito mais do que isso, claro, e nestes vários hectares de labirintos cobertos da luz solar encontra mesquitas, madrassas e banhos dignos de uma visita mais prolongada. Aliás, procure aceitar o convite de alguns comerciantes, que aqui estão longe de serem maçadores nas suas insistências como noutros lugares do Norte de África. Por fim – isto é, depois de seguramente mais de três horas a palmilhar estes corredores comerciais – desemboque a norte, junto à cidadela, refresque-se numa das esplanadas e entre no edifício dos banhos árabes logo a seguir, junto ao comando da polícia. Por pouco mais de 400 liras sírias experimentei o banho, seguido de esfoliação e massagem e, para terminar este desejo de Aladino, um shai (chá) quente e açucarado. Aqui, debaixo destas abóbadas do século XV, tentando imitar a doce vida de sultões e califas, percebi como seria difícil deixar Alepo e partir para leste.

Olhando o mapa, parece que o carro nos leva ao encontro de um grande vazio onde apenas existe o tracejado dos rios e lagoas temporárias por cima das cores do deserto. Mas o que vemos à nossa esquerda é completamente diferente: pequenos agricultores combatem a natureza em campos verdes estendidos muito para lá do que podemos ver com os olhos. O guia Adeb Thabet não tem por hábito mentir: «Este é o lugar mais rico da Síria.» Ver para crer. Legumes, trigo e, sobretudo, o «ouro branco», ou algodão, são maciçamente produzidos neste Norte do país, tudo graças ao grande rio Eufrates. Na verdade, ele só nos cruzará mais adiante, mas uma barragem mandada construir pelo anterior presidente – uma relíquia nacional, mostrada com tanto orgulho como o palácio dos califas ou as inscrições dos profetas – serve a lavoura deste lugar com abundância.

A paisagem vai manter-se ao longo dos próximos 400 km: à esquerda, agricultura, à direita, o semideserto. Mas, pelo caminho, algumas surpresas históricas nos esperam. Em Rasafeh, junto à cidadezeca de Ar Raqqah, temos Sergiópolis, ou aquilo que resta da pequena metrópole muralhada destruída por um terramoto e por algumas vagas de invasores, nomeadamente mongóis. O lugar passou a ser respeitado pelo culto a São Sérgio, cristão e soldado romano mandado executar, diz a lenda, por se ter recusado a entrar no Templo de Júpiter. Isto foi há dois mil anos, mas o desvio na estrada principal vale a pena, pois ainda hoje restam pedaços de três igrejas, incluindo a grandiosa basílica, e o sistema de cisternas onde se pode apreciar a diferença de conceitos entre a arquitectura imperial romana e a dos califados muçulmanos.

A estrada que conduz à fronteira com o Iraque está vazia. Os comerciantes nada têm para fazer agora senão fumar cigarros e esperar que a guerra acabe para voltar às transacções.

Mais à frente, muito mais à frente, chega-se à urbe mais importante do rio Eufrates – Dayr az Zawor – que já era importante mas que cresce agora ainda mais desde que descobriram petróleo nos arredores. (Adeb Thabet: «Ouro branco e ouro negro, esta terra tem demasiado ouro.») Mas esqueçamos a cidade por momentos, aliás porque não traz grande significado, à parte a sua grandeza territorial e por ser banhada pelo principal rio do Médio Oriente. O Eufrates, aliás Al- -Furat, é que não podemos esquecê-lo: nasce na Turquia, concretamente nas montanhas da Anatólia, entra na Síria por Jarabulus (antiga capital do reino hitita), cruza o país de norte a sul deixando atrás de si um rasto de prosperidade, para entrar no Iraque mais adiante, onde se irá juntar ao Tigre, e finalmente desaguar no golfo Pérsico após 2400 km de viagem.

Claro que ao seguirmos a estrada paralela ao rio nesta viagem até à fronteira com o Iraque – e nos momentos em que podemos ignorar esta aproximação a um lugar incómodo, digamos assim – muito há para entreter a alma histórica. Mas de entre as várias ruínas, vale a pena destacar as de Mari, complexo urbano da Mesopotâmia que foi paragem obrigatória para as caravanas da rota da seda. Quase nada chegou aos nossos dias – a maioria dos achados está espalhada por museus do mundo, os mais notáveis no Louvre de Paris. No entanto, passeando entre as esfaceladas paredes de barro com seis metros de altura, dá para compreender que o lugar ficou para a História, e imaginar o zigurate em actividades alucinantes com os seus sacerdotes e sacrifícios, ou o rei e respectivos acólitos a passearem as grandes barbas pelos mais de 300 quartos do palácio.

Não muito longe fica Dura Europos. Onde o deserto abruptamente acaba sobre o Eufrates, foi mandada erguer esta fortaleza greco-romana como sentinela de olho posto no império persa, que acabava exactamente na outra margem. Magnífico, este achado grandioso por onde passou Alexandre Magno, e que retém o nome da cidade natal do seu pai na longínqua Macedónia, merece visita demorada. Enquanto se deleita com os traços clássicos das construções, pense também que existiu aqui um dia uma cidade multicultural e multirreligiosa, onde lado a lado se erguiam templos aos deuses gregos e romanos e mesopotâmicos, e, mais tarde, mesquitas, igrejas e até uma sinagoga (agora no Museu de Damasco, bem reconstituída nos seus impressionantes frescos do Antigo Testamento).

Chega infelizmente a altura de deixar as terras do Crescente Fértil e partir numa aventura pelo deserto. Este deserto daqui não é sahara (areias e dunas) mas badia (terra e pedras), o que não nos impede de ficarmos impressionados. E com toda a razão: aquele que os cartógrafos conhecem como deserto Sírio estende-se daqui, onde passamos agora, pela Jordânia e Iraque, indo terminar apenas em terras da Arábia Saudita, muitos hectares a sul. Umas vezes plano, outras atravessado por montanhas; ora vazio de vegetação, ora pintalgado por ervas espinhosas que as cabras devoram: umas vezes apenas marcado pelos fumos das torres de petróleo que escurecem o horizonte, outras atravessado por pastores beduínos e seus rebanhos de carneiros.

O deserto não é por aqui tão monótono como parece, mas é com grande alegria que vemos as portas da cidade de Palmira. Adeb Thabet: «A história deste lugar é mais encantadora que a das Mil e Uma Noites». Palmira divide-se entre lugar (yra) e palmeiras (palm), embora os árabes também a conheçam pela designação semítica de Tadmor (lugar das tâmaras), o que vai dar ao mesmo. Adivinharam porquê: um enorme oásis de palmas e oliveiras e romãzeiras dá verde ao deserto nesta paisagem no término de uma cadeia montanhosa, e onde uma nascente sulfurosa reconhecida pelas suas capacidades terapêuticas fazia as delícias de residentes e forasteiros. A 160 km do rio Orontes, a ocidente, e a 220 km do Eufrates, a oriente, este é o único ponto capaz de matar sede e fome no meio do implacável deserto Sírio.

Paisagens de areia e oásis de palmeiras, beduínos com lenços tradicionais e antigos Mercedes como resto da colonização: eis a Síria como terra de contrastes.

Reconhece-se então ser Palmira ponto obrigatório de pernoita para as caravanas, um dos céus da rota da seda, o que a transformou num local rico e cobiçado. Durante muitos anos foi reino autónomo e próspero, que se estendia gloriosamente até ao Mediterrâneo e golfo Pérsico, servindo como zona tampão entre os omnipotentes impérios romano e persa. Nos escassos quatro anos em que Zenóbia foi rainha, depois de mandar para a morte o marido e antes que o filho tivesse idade para governar, deu-se o confronto com os imperadores: a Zenóbia, Cleópatra do Médio Oriente, não lhe bastava o estatuto de rainha-amante para si e de cidade-livre para a sua Palmira; não só mandou cunhar moedas com a bela efígie que Deus lhe concedeu, como queria o título de Augusto para o varão que gerou. Depois de muitas cartas mansas, o imperador Aurélio, o verdadeiro e único Augusto, afrontado e gozado, mandou as legiões tomar Palmira (Zenóbia seria mais tarde exibida nas praças de Roma, cidade onde acabaria por morrer, ao que se diz numa bela vila).

Por causa da sua localização geográfica, e consequente importância estratégica, Palmira tem mesmo um estatuto divino nestas paragens. Nas bermas da simpática cidade árabe, com as suas ruas de mercadores de fruta e de artesanato e pequenos hotéis e restaurantes já em demanda da crescente onda turística, ficam as ruínas de um lugar que começou a ser edificado antes de Cristo mas conheceu o seu apogeu nos primeiros três séculos d.C. Um lugar fantástico, difícil ou impossível de descrever dada a concentração monumental que se abre diante de nós. Por onde começar? Talvez pelo Templo de Bel, incrustado no oásis, sem dúvida a obra maior deste complexo, com 200 m2 de pátio rodeado por uma colunata dupla. Aqui dentro, onde se sacrificavam carneiros e camelos para aplacar deuses e espíritos, subsiste ainda o templo de paredes com belos altos-relevos, abrigando dois altares cujos tectos trabalhados são relíquias sagradas das belas-artes.

Este templo era ligado à cidade antiga por um caminho de colunas – romanas, mas com traços distintos de artistas do Oriente e inscrições em grego. Já lá dentro, a via principal ladeada por mais colunas ainda, em tempos encimadas por estátuas, encaminha o turista de hoje para os diversos edifícios: os templos de Nabo e Bel-Shamin, os banhos, o teatro (completamente recuperado, uma obra dignificante), agora o senado, e, no fim do caminho, o fim de todos os caminhos: o templo funerário. Como disse, o espectáculo não acaba e é indescritível, tão preservado está este lugar. Se tiver tempo, visite ainda as torres com túmulos espalhadas em redor deste lugar. E, já de regresso à urbanização contemporânea, aproveite para visitar o museu local para se deleitar com alguns dos achados arqueológicos.

No adeus à Grande Síria, fica a sensação de que entre a história e o futuro, entre o antigo e o moderno, entre o islão e a modernidade, há um equilíbrio difícil de manter

Se tiver tempo e quiser saltar da História para a actualidade, aproveite a estada em Palmira para conhecer os beduínos. Atravessando alguns quilómetros de badia de vez em quando escurecido pela sombra das montanhas, e depois de cruzar uma barragem onde é possível pescar (!), chegamos a uma das tradicionais tendas familiares: uma para homens, outra para mulheres. Como se espera desta gente agreste, o acolhimento é solene: sobre tapetes estendem- se pratos de manteiga, tomate e pepino, jarros de leite e chá. Conversa-se tanto quanto possível e, sobretudo, repara-se nos olhos do azul ou verde mais limpo que alguma vez se teve oportunidade de ver.

Quando faltam apenas dois dias para terminar esta viagem, retornamos a Damasco, a capital. De uma penada, aliás acompanhando o ritmo fulgurante da cidade, percorremos os lugares históricos, que obviamente se concentram entre os muros da cidade velha. Mas Damasco é outra história e a ela regressaremos em breve, como uma profecia. «Vocês vão pensar muito, pensar bem e depois decidir que querem voltar», finaliza Adeb Thabet, o guia espiritual, como se adivinhasse. São estas as palavras que ocorrem depois de regressar do terraço onde tomei a última refeição de fatouche de sabor limonado, bebi uns copos de tinto libanês e dei as derradeiras fumaças de tabaco com cereja no cachimbo de água – para lá do meu chão, Damasco esgueirava-se em sombras pela encosta acima, as luzes amareladas acendiam-se de novo para a noite, e dos minaretes chegavam as chamadas para a última oração. Ala Aqbar.


Guia do viajante

Relembramos que esta reportagem foi publicada em 2005 e toda a informação e dados representam o país nessa altura. Muita coisa mudou.

Área
185,180 km² (duas vezes o tamanho de Portugal)

População
17 milhões; 4 milhões em Damasco, 3 milhões em Alepo, a segunda cidade do país.

Língua
Árabe é a língua comum, embora possa encontrar também quem se exprima em curdo, turco, arménio e mesmo aramaico, a língua de Jesus Cristo. Inglês e francês são duas línguas compreendidas apenas nos locais mais turísticos, mesmo assim poucas pessoas. O que vale é a simpatia dos sírios, que facilita a comunicação gestual ou multilinguística.

Moeda
Lira, ou libra síria (SYP); 1€ = 65,00 SYP [Em 2017, o câmbio de 1€ ronda os 241,00 SYP]

Fuso horário
GMT + 2 horas

Usos e costumes
A Síria é um paraíso para os turistas por várias razões. Uma delas é a segurança: não é preciso estar sempre a vigiar as malas, os carros podem ficar de janelas abertas e portas destrancadas, a carteira esquecida num restaurante é devolvida. Outro motivo, talvez o principal, é a genuína simpatia dos sírios. Ao contrário do que acontece em Marrocos ou Tunísia, por exemplo, quando o dono de uma loja o convida para um café a ideia não é vender-lhe um par de chinelos, mas apenas conversar e saber de onde vem e ao que veio. Aceite o convite e fique a saber que a palavra-passe é Luís Figo, já que ninguém faz a mínima ideia onde fica a Lusa pátria. Os sírios também não estão à espera de gorjetas. Há também alguns senãos, como a falta de infra-estruturas turísticas adequadas, nomeadamente junto dos lugares arqueológicos. É também um país degradado, devido em boa parte à capitulaçãos do sistema socialista, agora trocado por uma economia de mercado em velocidade acelerada. Atenção ainda aos horários de abertura das lojas e instituições; geralmente está tudo aberto das 8 às 14 horas, e depois das 17 horas até noite dentro, todos os dias menos à sexta-feira e feriados. Mas os museus fecham às terças e os barbeiros às segundas, por exemplo.

REPORTAGEM PUBLICADA NA REVISTA VOLTA AO MUNDO EM 2005.

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