Katy Deodato e Ricardo Santos tinham bilhete de ida e volta, com cinco meses contados para fazer voluntariado e viajar. Mas faltou-lhes a vontade de voltar. E foram ficando.
Texto de Bárbara Cruz
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Artigo publicado originalmente na edição de dezembro de 2016 da revista Volta ao Mundo, número 266.
Durante dois anos, Katy Deodato «massacrou» o marido. Queria fazer uma viagem, andar pelo mundo. Sabia que ele a acompanhava no desejo, mas o problema de Ricardo Santos era o «lado responsável» que não o deixava pôr a hipótese de largar tudo e deixar Leiria para trás. Os dois na casa dos 30, estavam empregados e tinham o apartamento onde viviam como única despesa fixa. Uma vida normal, sem percalços nem grandes aventuras.
Quando ela já se despedia do sonho de parar seis meses a um ano com o único propósito de viajar, ele tomou uma decisão e informou-a: dali a três meses iam partir. Estávamos em junho de 2015. Katy demitiu-se e Ricardo pediu licença sem vencimento. Foi aceite, mas pouco depois soube que não seria possível darem-lhe o benefício, pois a empresa saíra há pouco tempo de um processo de insolvência. Sem dramatizarem o contratempo, puseram a casa a arrendar e seguiram com o plano traçado de deixar Portugal por cinco meses, mas apenas dois para viajar sem compromissos. Porque havia uma condição: era preciso cumprir um projeto de voluntariado e para isso reservaram três meses do tempo que tinham disponível para a aventura – calculado a régua e esquadro perante o orçamento.
«Mais do que usufruir do lazer da viagem, queríamos sobretudo sentir a vida de um país, conhecer-lhe a essência, a cultura, a política, a educação, a religião, as mentalidades e personalidades. Era difícil ter acesso a tudo isso se estivéssemos só de passagem. Queríamos absolutamente integrar-nos e misturar-nos com as pessoas e o seu quotidiano, viver as suas dificuldades e alegrias. Tudo isso, só foi possível com o voluntariado», esclarecem numa entrevista por e-mail a partir de Timor-Leste. A verdade é que os cinco meses esticaram: tinham regresso marcado para fevereiro de 2016 mas continuam do outro lado do mundo. Já lá iremos.
Foi em Timor-Leste que encontraram o projeto de voluntariado que se lhes adequou, de uma ONG que ensinava inglês a jovens carenciados timorenses, em regime de internato, e procurava então introduzir o estudo do português. Colaborando com uma escola no bairro de Becora, em Díli, a capital timorense, construíram um manual de português e estruturaram as aulas. Viviam tal como os alunos que ensinavam: tinham direito a alojamento e a três refeições por dia. O orçamento, não mentem, foi uma preocupação. Não querem fazer tabu e detalham os números: tinham cerca de cinco mil euros, com hipótese de esticar até aos sete mil, para sobreviverem durante toda a viagem, já com bilhetes de avião, vistos e alojamentos incluídos neste bolo.
«Era o nosso orçamento. Nem muito nem pouco. Era o que podíamos gastar e a partir daí tivemos de encontrar soluções para não fugirmos dele. E não houve derrapagens», garantem. «O dinheiro é um assunto que levanta tanta comichão em Portugal que me deixa incomodada, com tantos comentários e rótulos», escreve Katy. «Já cansa ouvir sempre a mesma coisa, ‘devem ser ricos de certeza’. Há uma infinidade de soluções que vão ao encontro dos orçamentos mais baixos e até dos mais altos. É tudo uma questão de prioridades», sublinha.
«Viver plenamente a cultura de um país é chorar e rir ao mesmo tempo.» Katy Deodato
Em Timor, sentiram-se em casa e foram ficando. «Nunca imaginámos sentirmo-nos tão acarinhados, tão importantes e venerados.» Até ali, nunca tinham feito voluntariado e admitem que só aquela experiência lhes permitiu ver o país pelos olhos do povo e não com o olhar de quem passa. «Viver plenamente a cultura de um país é chorar e rir ao mesmo tempo. Se formos com espírito e abertos à experiência, saímos do voluntariado rendidos à sua dureza e ao seu encanto.»
Com a data da partida a aproximar-se, decidiram que ainda não estava na hora e puseram «mais uns meses na bagagem». Souberam que na Austrália era possível viver em casa de famílias, que os receberiam como amigos dando alojamento e alimentação. Bastaria para isso que as ajudassem naquilo que fosse preciso. Assim viveram por mais três meses, entre descanso e tarefas. «Fizemos um pouco de tudo, desde lavar a piscina, aspirar a casa, a tratar de animais numa quinta.»
No fim dos três meses, tinham de sair do país para renovar o visto e lembraram-se de continuar pela Nova Zelândia no mesmo formato. «Mas um e-mail vindo de Timor-Leste mudou o rumo da nossa rota», confessam. Ricardo foi convidado para trabalhar em Timor durante um ano e foi para lá que seguiram de coração cheio. Preveem ficar pelo menos até maio de 2017, também para repor o orçamento que entretanto foram gastando.
«Estar isolado do mundo dito desenvolvido ajuda muito a mudar a perspetiva das nossas necessidades.»
Acreditam que a viagem já lhes mudou a maneira de ser: «Estar isolado do mundo dito desenvolvido ajuda muito a mudar a perspetiva das nossas necessidades.» Em Timor, têm vivido bons momentos, mas também sentiram arrepios nas horas mais difíceis. «É um país muito intenso, com experiências duras de enfrentar, mas com outras que nos arrebatam.» Das peripécias memoráveis, põem no topo a vitória da seleção portuguesa na final do Europeu de futebol, e a forma como os timorenses festejavam a cada jogo, apesar dos quilómetros que os separam de Portugal. «Foi mágico.»
Voltar a Portugal «é ponto assente», mas ainda não sabem exatamente quando. Imaginam que, quando o dia chegar, um deles vai dizer ao outro que é preciso regressar, tal como Ricardo decidiu partir para viajar mesmo sem qualquer destino escolhido. Katy foi entretanto convidada para ser líder de viagem nas Filipinas em 2017 e, para já, o plano é deixarem-se andar «ao sabor do tempo e das oportunidades».
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