Sweet home, Chicago

O refrão de um blues de Robert Johnson colou-se à cidade como um hino. E é o pretexto para descobrir Chicago de ouvidos bem atentos.

Texto de João Mestre

Dois homens, fato azul, óculos escuros e chapéu na cabeça, entram no Soul Food Cafe. Um pede quatro frangos fritos, o outro apenas torradas. Em menos de nada, a situação descamba num número musical: a empregada de balcão canta com a voz de uma deusa, o cozinheiro salta para o balcão de saxofone em punho e o dono, vem-se a descobrir, é um mestre da guitarra blues. O ritmo contagia a clientela. Os intervenientes são nada menos do que Aretha Franklin, Lou Marini e Matt Murphy. E os «irmãos» Blues, Jake e Elwood. Isto é, Dan Aykroyd e John Belushi, dois dos nomes grandes da comédia americana dos anos 1980, um canadiano que se deixou adotar pela cidade, o outro nascido e criado em Chicago.

Quem viu o filme The Blues Brothers (1980) decerto reconheceu já a cena. Quem não viu deve parar já de ler e ver este clássico de John Landis. Não só se trata de uma grande comédia musical como é, palavras de Aykroyd numa entrevista à Vanity Fair, «algo saído do amor por Chicago». A cidade é, ela própria, uma das protagonistas deste delírio ao ritmo de rhythm’n’blues. Chegou a haver um tour cinematográfico em redor dos locais do filme, até que a Universal Studios tratou de intimar a empresa responsável e a coisa terminou por aí. Toda a gente ficou a perder, mas a cidade não perdeu a sua musicalidade. Até porque as raízes são profundas.

O movimento começou no início do século XX, com a grande migração negra dos estados segregacionistas do Sul, Mississippi à cabeça, para as cidades industrializadas do Norte, onde as perspetivas de emprego eram melhores. Com este êxodo, viajaram também os géneros musicais negros – o jazz, o soul e principalmente o blues, que ganhou escola própria em Chicago. As letras já não falavam do trabalho no campo, mas de assuntos urbanos, e o próprio som eletrificou-se. Na vaga migratória vieram nomes que se tornariam gigantes, como Buddy Guy, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Bo Diddley e muitos outros. A dada altura, Chicago tornava-se um ponto quase obrigatório de passagem para artistas destes géneros, incluindo Robert Johnson, o bluesman viajante que popularizou e aperfeiçoou o saudosista Sweet Home, Chicago, tema que se colou à cidade como um hino, presença regular em eventos públicos, no repertório das bandas de covers que atuam no Kingston Mines e no lugar de banda sonora de filmes (Blues Brothers incluído).

Este manancial de blues, jazz e soul viria a originar o rock’n’roll, o rhythm’n’blues, o funk e, mais tarde, o hip hop, o rock industrial, o rn’b. O contributo da cidade para o mundo da música é vasto: de Patti Smith a Kanye West, passando por Smashing Pumpkins, Ministry, Wilco, R. Kelly, Earth, Wind & Fire ou Lupe Fiasco, a lista é longa e bem frequentada.

Hoje, passeia-se pela cidade e encontra-se musicalidade, em murais e nomes de avenida que homenageiam artistas de vulto, lojas de discos «à antiga» (principalmente no Upper West Side) onde se vai com sentido de descoberta, ruas e vielas que parecem cenário de número musical. O blues, esse continua bem vivo, quer nas casas que ainda o servem ao vivo dia sim, dia sim quer nos músicos que as povoam. Pessoas como Toronzo Cannon, uma improvável estrela ascendente que reflete o espírito da cidade – quando não está a conduzir os autocarros da Chicago Transit Authority, Cannon está a deliciar audiências de ambos os lados do Atlântico com a sua versão do blues com que cresceu. «Sinto que é o meu dever», contou à Chicago Magazine: «Dizer ao mundo que o Chicago blues continua vivo.» E recomenda-se.

1. Reckless Records
1379 N Milwaukee Ave
(Wicker Park)
reckless.com
Com o fim da era das grandes lojas de discos, restam refúgios como a Reckless Records, que mantém várias moradas na cidade (além desta: 26 E Madison St., no Loop, e 3126 N Broadway St, em Lakeview), porém sem perder o espírito independente. Country, soul, garage e punk são géneros fortes, a par do pop, do rock, do metal, disponíveis quer em CD e vinil quer em formatos que já se tornaram curiosidade, como cassetes de áudio, VHS e cartuchos. Para os caçadores de pechinchas, há uma grande (e aleatória) seleção de oldies quase dados.

2. Logan’s Hardware Records
2532 W Fullerton Ave
(Logan Square)
Seleção variada e cuidada de vinil a preços razoáveis, particularmente apetrechada nos domínios de funk, soul, jazz, blues, rock clássico. Por detrás do balcão está Ivan Rivera, a pessoa mais simpática e atenciosa que alguma vez se encontrará a trabalhar numa loja de discos, disponível para conversar, aconselhar e, no final, fazer uma atenção no preço. Para quem gastar mais de cinco dólares há uma surpresa reservada: um museu secreto de videojogos nas traseiras da loja. Uma preciosidade.

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3. River Roast
315 N. LaSalle St. (River North)
riverroastchicago.com
A sala é bonita, convidativa, decorada ao estilo industrial-chique. Mas é na varanda, à beira do Chicago River, que apetece ficar. Na carta, cozinha americana contemporânea em versão petisqueira, com privilégio para as carnes assadas e os vegetais de época (os vegetarianos sentir-se-ão em casa), cocktails e cervejas artesanais, sempre acompanhada por uma cuidada playlist de blues, com mão do chef John Hogan. Aos sábados e domingos, entre as 11h00 e as 14h30, há brews & blues brunch, com as bandas locais preferidas do chef a tocar ao vivo. Preço médio: 40 USD.

4. Bucket Boys
N. Michigan Ave. (Millennium Park)
Quatro miúdos, cada um com um balde de plástico e um par de baquetas nas mãos. E talento, muito talento. As atuações desta trupe de percussão no intervalo dos jogos dos Chicago Bulls fizeram deles um fenómeno global. Mas ainda é costume vê-los a tocar no palco onde foram descobertos: as ruas da baixa de Chicago. Não têm um poiso fixo, mas costumam estar algures ao longo da North Michigan Avenue – basta seguir o som das batucadas.

5. Buddy Guy’s Legends
700 S. Wabash (Loop)
buddyguy.com
Buddy Guy, um dos grandes guitar heroes de Chicago, é o dono e a alma deste clube de blues ao vivo que é também um restaurante dedicado à soul food e a cozinha cajun da sua Louisiana natal. Quando o patrono calha a estar pela cidade, não é incomum vê-lo por lá. Subir ao palco, só em janeiro, com dezena e meia de datas que costumam esgotar rapidamente. Preço médio (restaurante): 30USD

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6. Kingston Mines
2548 N. Halsted St. (Lincoln Park)
kingstonmines.com
«O» sítio para se ver e ouvir blues ao vivo. Está lá desde 1968, é já é uma instituição local. Duas salas contíguas, cada uma seu palco com duas bandas que se revezam noite fora, numa maratona de sete horas. Numa e noutra, músicos que fazem valer cada um dos 12 dólares que se paga de entrada (15 à sexta e sábado). Às segundas e quartas, sobe ao palco Corey Dennison, um bluesman cheio de alma e com uma história curiosa sobre Portugal (é perguntar-lhe, numa das suas pausas para fumar). Está aberto até às 3h30 e tem ribs, asas de frango, hambúrgueres colossais e sanduíches de peixe-gato.

7. Metro
3730 N. Clark St. (Wrigley Field)
metrochicago.com
O rol de veneráveis que já pisaram o palco do Metro é admirável: dos Arctic Monkeys aos White Stripes, de James Brown a Kanye West, a lista é imensa e difícil de imaginar perante o tamanho da sala. Ali cabem 1100 pessoas, e a lotação é respeitada à risca na venda de bilhetes. Significa isto que se pode estar a assistir ao concerto de uma grande banda junto do palco, sem empurrões e, pasme-se!, com serviço de «esplanada». Uma experiência de rock n’roll diferente, em especial para o público português.

Festivais
chicagobluesfestival.us
lollapalooza.com
O Chicago Blues Festival apresentou-se como o maior do género no mundo e teve lugar no Millennium Park, (8) no coração da cidade, entre 9 e 11 de junho. Entre os cabeças de cartaz estiveram Gary Clark, Jr., William Bell e Billy Branch & The Son of Blues. Em antecipação, maio é o Blues Month, com concertos e projeção de filmes e documentários relacionados com o género. Em agosto, é a vez do lendário Lollapalooza, (este ano de 3 a 6), que traz ao Grant Park (9) The Killers, Muse, Arcade Fire, Chance the Rapper e muito outros.

Chicago Detours
chicagodetours.com
«Tours para gente curiosa» é o lema desta empresa que trilha fora dos caminhos óbvios. Fruto de um aturado trabalho de investigação, a Chicago Detours propõe visitas guiadas cheias de histórias e curiosidades, segredos arquitetónicos e outras surpresas que não se encontra na Internet. Um dos programas no cardápio é o Chicago Jazz, Blues, and Beyond Bus Tour, que explora a história e a cultura da cena musical da cidade. À mistura, haverá histórias de gangsters, speakeasies e whisky ilegal, uma atuação de blues ao vivo e uma lição de harmónica. Este tour só costuma estar disponível para grupos. (65USD por pessoa).


Reportagem publicada na edição de maio de 2017 – n.º 271 – e atualizada para o site.

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