No fim de tudo, a única coisa que fica é um grupo maior ou menor de pessoas a despedirem-se no aeroporto. Depois do fim, afastar-se-ão no carro, voltarão à cidade de onde estou a ponto de partir. Os dias em que estivemos juntos irão dissolver-se como um rio que atravessa a foz e encontra o oceano. Então, terei malas empilhadas num carrinho e, sobre um chão de mármore, contornarei outros carrinhos em movimentos redondos e em pequenas atenções.

Mais tarde, será quase preciso que nos tenhamos amado durante segundos para sermos capazes de trocar dois ou três e-mails. Se apenas conversámos, nos embebedámos juntos e prometemos que iríamos estar a par da vida um do outro, não chegamos a trocar qualquer correspondência. Os papéis onde escrevemos os nossos endereços irão gastar-se nos compartimentos menos usados da carteira.

Acumular-se-ão quadrados rasgados de papel, costas de cartões, pedaços de guardanapo, cantos de páginas de jornal. E, no entanto, queríamos acreditar com a força de estátuas. Enquanto ainda estávamos juntos, acreditávamos que iríamos realmente conhecer-nos e que o resto da vida levaria em conta aqueles três, quatro ou cinco dias. Mas, no aeroporto, obrigam-nos a passar pelo detetor de metais, a tirar o cinto e as botas, a ter as malas radiografadas. Esses seguranças fardados procuram talvez memórias que sejam sólidas como o metal, laços como correntes de aço. Se não tivermos nenhum desses objetos, deixam-nos passar. Quando existem, só podemos seguir viagem depois de abandoná-los numa caixa grande e transparente onde se acumulam corta-unhas, tesouras e outras pequenas lâminas.

«Os papéis onde escrevemos os nossos endereços irão gastar-se nos compartimentos menos usados da carteira.»

Existe também o avião, com os seus procedimentos e com mantas para tapar as pernas. Pode também existir uma janela, é sempre a mesma, com uma planície de nuvens, que talvez consistam em bolas brancas repetidas infinitamente. É sobre essa superfície que se estendem as memórias, que se mostram os rostos de quem nos despedimos. Esses momentos magnéticos atraem tudo o que foi bom e mau, solene e ridículo, o que teve significado.

Talvez seja assim que, perante a morte, as pessoas assistem à sua biografia em retrospetiva. Perante uma despedida maior, o magnetismo que apenas atrai memória também é maior. Do mesmo modo, a ausência de um corpo tem o tamanho desse corpo somado a todas as suas possibilidades e, assim, a imagem dessas memórias contrapõe-se de forma intensa ao absurdo do seu fim. Mas existe o tempo. Existe a viagem, a deslocação de partículas através do espaço.

Quando esperamos pelas malas junto ao tapete rolante, somos já outras pessoas. A luz fez-nos trocar de pele. Distraidamente, estamos como se ouvíssemos ou fôssemos capazes de compreender a voz que diz nomes de lugares no altifalante, ou nomes de pessoas, ou números. As malas sucedem-se. No interior de todas elas haverá um mapa feito de roupas e de objetos mais ou menos ocasionais. A minha mala é diferente de todas as outras. É o lugar selado por fechos-éclair onde está dobrada e guardada a minha existência precária.

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Crónica publicada originalmente na edição de agosto de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 298.

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