É natural de Angola, esteve exilado em França, escreveu um livro com reportagens dos EUA, esteve em trabalho em muitos países – não sabe quantos porque prefere não quantificar o que é para qualificar. Passou pelo Diário Popular, O Jornal, Tal e Qual, Público, Sábado, Visão, Focus. Foi redator, redator principal, grande repórter e atualmente é diretor do Diário de Notícias. Assina crónicas de atualidade – e de costumes – onde consegue juntar como poucos a cultura, a história, a informação e a atualidade. O texto e o contexto. Venceu prémios de jornalismo, escreveu livros, correu mundo. Mas, sempre que pode, Ferreira Fernandes regressa à Luanda onde nasceu há 71 anos.
Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha
Quando foi a última vez que esteve em Luanda?
Estive no princípio do ano. Estive também o ano passado, estive antes. E antes disso… E nasci lá.
Quanto tempo, no máximo, consegue passar sem regressar à sua Luanda natal?
Às vezes isso não é de minha decisão. Já estive em Luanda sem poder estar em Luanda porque não podia lá ir – nomeadamente quando desertei do exército português. Nessa altura estive cinco anos sem ir a Luanda. Mas consigo conhecer bem a cidade porque andei a tirar um curso desde pequenino. Desde os 6, 7 anos, durante as férias, no cacimbo, quando não se podia ir à praia, eu passeava por Luanda, a tirar esse tal curso de viajar. Comecei por conhecer a cidade onde nasci e descobri que é olhando para as pessoas, para aquilo que elas constroem, para o passado que têm, que se aprende. E ganha-se muito com isso.
Quando não está em Luanda, de que é que sente mais saudades?
Da minha infância. Foi muito peculiar a minha infância. Eu sou branco – é uma coisa que se nota – e aquela minha procura da cidade era, no fundo, uma procura de raízes. Sabia que estava numa cidade onde era minoritário. Não saberia expressar isto do ponto de vista sociológico, histórico e político, mas já sabia isso. Aos 8 anos entrava no cemitério velho para ir ver o que estava escrito nas campas. Ver como brancos, mestiços e negros constituíam família e tinham um passado que eu sabia que iria também ter da mesma maneira. Eu procurava isso. E depois, fora do cemitério, procurava os velhos sobrados, a fortaleza, as igrejas (eu que não sou, de todo, religioso). E olhava para as pessoas. No outro dia ouvi uma entrevista do Dr. Sobrinho Simões em que ele dizia que a principal preocupação que tem com as crianças portuguesas – além da obesidade, que é comum agora às crianças modernas – é a falta de empatia. No fundo, olhar para as pessoas e ignorá-las. E isso eu consegui resolver por mim próprio, não por bondade ou coração. Soube depois apostar bem e ganhar completamente com isso.
É isso que mais gosta quando viaja? Conhecer pessoas, saber-lhes as histórias, contar as histórias delas?
Não sei. A minha primeira grande viagem foi há exatamente cinquenta anos. Os meus pais tinham-me trazido a Portugal e viemos de barco. No ano seguinte regressei de avião. Foi a minha primeira viagem de avião, faz agora, neste verão, 50 anos. A primeira vez que aterrei foi numa cidade mítica, a cidade de Kano, na Nigéria, e vi pela primeira vez um camelo e um deserto. E se calhar aprendi, sem ter aprendido, sem ter a noção de que tinha aprendido, que ir andando e ir olhando é uma sorte grande de cada vez.
Ao longo da vida viajou mais em trabalho ou em lazer?
Nem sei se não escolhi esta profissão exatamente porque me permite viajar. Tive a sorte de ser jornalista, pelo menos naqueles períodos que pude viver o jornalismo com dinheiro e em que era possível ir fazer reportagens de trinta dias, Já não estamos nesse tempo, mas isso permitiu-me andar pelo mundo. Julgo ter escolhido a profissão um bocado para isso. Mas a verdade é que as minhas viagens começaram antes. Não só essa da primeira viagem e da primeira chegada a Kano, mas o que se seguiu depois. A segunda grande viagem que fiz foi chegar a Leopoldville (atual Kinshasa, capital da República Democrática do Congo), e isso foi fundamental para um país do centro de África. A minha viagem mais forte, a seguir, entre várias, entre Lisboa e Luanda, foi dez anos depois, em 1969: atravessar o Rio Minho sem documentos e com pouquíssimo dinheiro no bolso. Já era ilegal no país de onde partia, porque era desertor do exército, atravessei depois uma outra fronteira, a dos Pirenéus, e continuei sem papéis, naturalmente, e com um bocadinho menos dinheiro para chegar a Paris. No dia seguinte entrei no Louvre e, sem saber que existia aquela estátua, vi a Vitória de Samotrácia ao fundo de uma ampla escadaria. Valeu a pena!
Chegou a Paris em 1969, um ano depois do maio de ’68. Algum dia esteve nalgum sítio onde, tal como em Paris nessa altura, se respirasse tanta necessidade de mudança?
Bem, um pouco por trabalho, normalmente vai-se para sítios onde acontecem algumas coisas. Mas por vezes não é bem assim: uma vez o Mário Bettencourt Resendes, meu diretor do Diário de Notícias, mandou-me a Los Angeles por causa dos levantamentos negros. Eu aterrei lá e aquilo acabou no dia seguinte. Depois fui para a Tailândia, por proposta minha, porque tinha havido, num país super-pacífico um golpe de estado militar. E no dia seguinte tinha acabado. Normalmente as pessoas não vivem em sítios quentes por revoluções, por aquilo que é muito negativo, porque é horrível, mas as pessoas têm sempre uma maneira muito forte de viver. Temos é de estar atentos para verificar.
Lembra-se de alguma dessas histórias?
Ainda agora escrevi um pequeno texto para a 1864, a pequena revista do Diário de Notícias, sobre as cidades vazias. E foquei duas: o meu pai falou-me no levantamento nacionalista de 1961 em Angola, quando ele atravessou uma cidade de um seu conterrâneo, amigo e compadre, que estava completamente abandonada. Ele falou-me disso e fui encontrar cidades assim, mais tarde, como adulto. Cidades como Peć, no Kosovo, onde entrei com o repórter fotográfico Luís Vasconcelos, e vimo-nos como naqueles filmes de terror, onde não há ninguém. Apenas umas janelas a bater, nada mais. Este silêncio é só cortado por estes factos que não são humanos, e constatei que, por vezes, a ausência, o vazio das cidades, corresponde a alguma coisa que é a multidão que não se pode dispersar. Meia hora depois de termos estado nesta praça completamente vazia entramos no mosteiro medieval, ortodoxo, que estava cheio de refugiados. Neste caso eram kosovares que estavam a atacar os sérvios (o mosteiro era de sérvios) e havia pessoas naquelas situações completamente radicais. Era um lugar vazio a 15 minutos de outro lugar completamente cheio – cheio de histórias, cheio de dramas. O mundo é feito assim. Mas conto outra história: fiz a guerra civil de Angola como jornalista, dos dois lados. Estive em variadíssimos sítios e numa delas acompanhei os soldados da UNITA em Munhango, uma cidadezinha de que provavelmente nunca ouviram falar. Tinha uma das principais oficinas durante os tempos áureos do caminho-de-ferro de Benguela, e estava completamente isolada, abandonada e cercada por um punhado de sentinelas que me levaram lá dentro. Estes soldados eram da UNITA, nunca lá entravam e estavam à espera da próxima mudança, porque a cidade ora era do MPLA ora era da UNITA. Estas alternâncias de poder existiam porque o Jonas Savimbi tinha nascido em Munhango e esta situação de símbolo fez com que ela mudasse constantemente de poder. O que Munhango me ensinou foi a ver uma coisa que eu nunca tinha visto em sítio nenhum: os limoeiros, os abacateiros, as laranjeiras, tinham frutos de vários anos e continuavam a tê-los nos ramos e tinham frutos novos porque as pessoas não se aproximavam das árvores com medo das minas. A cidade estava completamente minada. Olho para isto e vejo o mundo e marca-me. Dá-me histórias para contar, fico muito grato por isto e ensina-me. Tudo porque o miúdo, um dia, andou por Luanda passeando e olhando onde é que se vivia e como eram as pessoas.
E para aprender a viajar para depois pôr em prática mais tarde. Qual foi o local mais longe da civilização, como a conhecemos, onde já esteve em reportagem?
Mais longe da civilização? Em várias ruas. E normalmente encontrando pessoas completamente apáticas e ordinárias. Aí foi o local mais longe onde eu estive mais longe da civilização.
Toda a gente tem uma história para contar?
Estas julgo que não têm. São tão viradas para dentro, tão negativas, que eu acho que não têm. Uma vez estive muito próximo da pessoa que melhor contou histórias. E da mesma maneira que sou absolutamente incapaz de bater palmas a cantores que me enchem, no início ou no fim – porque não sou digno disso e não os quero interromper – naquele dia também não fui capaz de tirar uma fotografia. Estava em Cartagena das Índias, na Colômbia, a representar o Diário de Notícias. Eram vinte diretores (eu não o era na altura, mas representava o diretor) e fomos apresentados a Gabriel Garcia Marquez. E eu, à pessoa a quem mais perguntas teria para fazer de coisas que li, fui incapaz de me aproximar dele. Eu queria vê-lo, não queria perder um segundo daquele momento. Mas os jornalistas faziam-me perder esse meu tempo porque me pediam para os fotografar com ele. Eu não tenho senão da foto de conjunto…não tenho uma única foto minha com ele. Hoje lamento um bocado isso. Mas gostei muito da minha atitude de olhar. De apenas olhar para o Gabriel Garcia Marquez.
Vamos um bocadinho à América. Em 1990 decidiu viajar pelos EUA e conhecer os nossos que estão lá. O que é o levou a fazer essa viagem?
Publiquei um livro, na sequência dessa viagem.
Os Primos da América.
Sim. Era repórter no Público e, na introdução ao livro, voltei a Luanda. Contei que naquele cemitério que eu disse que visitava, havia outro ao lado, que era de protestantes. E havia a campa de um comandante, de um barco baleeiro americano, que tinha morrido em alto mar. Meteram-no dentro de um barril de aguardente e enterraram-no no cemitério de Luanda. Ele era americano. Isto fez-me a ligação com essa América, a América que no fundo é a América portuguesa, que nasceu em New Bedford, a capital da primeira grande indústria americana, a baleeira. Comecei por aí, e contei aquilo que eu não conhecia. Fui conhecendo o que era a presença, muito escondida mas muito profunda, dos portugueses nos Estados Unidos. Que fizeram aquilo que melhor sabem fazer: integrar-se na sociedade em que estão. Os portugueses são uns traidores à sua terra, quando partem. No sentido melhor do termo, porque integram-se e querem ser os outros. E foi desses portugueses que eu andei à procura, pelos locais onde estavam.
Já correu muitos países do mundo. Onde é que nunca foi e gostava de ir?
Não tenho dúvida nenhuma. Já fui várias vezes ao Rio de Janeiro, mas nunca fui ao Rio de Janeiro da década de 1950 e gostava imenso de lá ter estado. Ouvir cantar a Dolores Duran, ler todos os dias a crónica do Nélson Rodrigues e a crónica do Rubem Braga, poder de vez em quando aproximar-me do Millôr Fernandes e pedir-lhe uma frase, ouvir quase todos os dias chorinho. Era aí que eu queria estar.
Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF.