Cresci a odiar aquela estrada. A vê-la como mera obrigação familiar. Páscoa, Natal e verão eram altura de ir ver o avô Arnaldo e a avó Tina, o que implicava fazer aquelas cinco horas de caminho duas vezes num fim de semana. Cinco horas debaixo de calor alentejano numa altura em que não havia ar condicionado. Cinco horas por estradas de paralelos ou de alcatrão maltratado quando as suspensões dos carros nada disfarçavam, e por paisagens secas, tristes, monótonas, que tinham por única alternativa o embalo do walkman – enquanto as pilhas durassem ou até a comichão causada pela esponja dos auscultadores se tornar insuportável.

Cresci a odiar aquela estrada. Mas a chegada era sempre um regalo. Pelo cheiro a terra e a estevas que entrava carro adentro mal se abria a porta. Pela liberdade de explorar à vontade, os passeios de burro, os mergulhos na ribeira. E o queijo fresco caseiro do lanche, as migas e o gaspacho do jantar. O fascínio de ver o avô a tosquiar ovelhas, a esculpir canas com a navalha, a enrolar cigarros com os dedos grossos. Um regalo. Até que voltava a hora de partir. Só o destino justificava a viagem. Como eu odiava aquela estrada.

Um dia, deixei de ter de percorrê-la. A velhice trouxe os avós para perto de nós, o monte ficou vazio de motivos para visitá-lo. Os anos passaram, alguns vinte, até eu ter de lá voltar. Uma vez mais, obrigações, agora era o trabalho. Uma reportagem lá perto pôs-me no local certo, no momento certo da vida – o momento em que já sabemos saborear o caminho, independentemente do destino. E com a companhia certa, eu apenas.

A paisagem que sempre vi a duas dimensões e sem cor, de repente, assomou-se-me cheia de textura, de nuances de luz, de uma serenidade que antes nada me dizia.

Portanto, final de tarde, três horas de luz pela frente e o caminho de regresso para fazer. Impunha-se uma escolha: a pressa da autoestrada ou a monotonia das curvas, do chão irregular, das paisagens tristes. Optei pelo caminho mais lento. O mais feliz, afinal.

Talvez a música tenha ajudado. Rodava Meddle, de Pink Floyd, um álbum que só precisa de estrada e silêncio para nos fazer voar. A paisagem que sempre vi a duas dimensões e sem cor, de repente, assomou-se-me cheia de textura, de nuances de luz, de uma serenidade que antes nada me dizia. Agora, comovia-me. Não por saudosismo nem nada do género, antes pela beleza que sempre ali esteve, debaixo dos meus olhos enfadados, e eu incapaz de a ver.

Tive de encostar à berma. Abri a porta, aquele cheiro tornou a entrar carro adentro. Fiquei ali um bom bocado, só eu e os Pink Floyd, primeiro, depois calei-os e fiquei sozinho. Aquele calor seco que em puto me indispunha sabia agora a bálsamo. Por vezes, temos de regressar aos caminhos onde já fomos infelizes. Ao olhá-los de novo quando somos já outras pessoas, damos-lhes a oportunidade de reconciliação. E, reconciliados, aprendemos a desfrutá-los como viagem que são, independentemente do destino.

Pus-me de novo ao volante, segui estrada fora. Sem pressas, a saborear as curvas, as lombas, os povoados que estavam exatamente como me lembrava deles e as memórias que se iam desfiando pelo caminho, com o pôr do Sol a pintar de laranja a planície que antes me entediava de morte. Como eu adoro esta estrada.


Veja também:
Mariana Monteiro: «Para sermos felizes precisamos de muito menos do que pensamos»
Lições de simplicidade: uma crónica de José Luís Peixoto

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.