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Começou a ser publicado há 18 anos e desde então são já 40 os livros editados nos mais diferentes géneros literários, traduzidos em mais de 50 países. Obras que depois ganharam vida própria em peças de teatro, dança, rádio, curtas-metragens, projetos de arquitetura e até teses académicas. Livros com geografias próprias, com palavras pesadas e leves que já receberam vários prémios em Portugal e no estrangeiro. Nasceu em Angola, veio ainda pequeno para Portugal.

Entrevista de Cláudia Arsénio e Ricardo Santos

Boa tarde, Gonçalo M. Tavares.
Boa tarde.

Tem memórias de Luanda?
Não, eu vim com quatro anos. Tenho uma espécie de memórias instintivas ou memórias, digamos, de cheiros, mas já não sei o que é que pertence à minha memória orgânica ou às imagens que me me mostraram os meus pais, por exemplo.

Ainda não regressou?
Não regressei, não.

Porquê?
Fui muitas vezes convidado, mas tinha uma espécie de instinto orgânico-político que me dizia: não me sinto entusiasmado em voltar para um espaço onde há pessoas muito, muito ricas – no top-ten dos mais ricos – e há milhões de pessoas a morrer de fome. Sinto que agora, espero eu, haja um movimento um bocado diferente, sinto que o país está a mudar, portanto tenho sentido mais vontade de voltar

Estas viagens mais especiais têm um caráter mais de descoberta interior do que propriamente de uma contemplação da paisagem e do exterior?
É raro viajar ou é raro ter um dia que não seja introduzido no meu instinto literário, ou seja, tudo é para mim – eu não diria trabalho, mas tudo é parte de um olhar que é automático, de olhar para pessoas, para acontecimentos e de alguma maneira extrair determinadas experiências que me interessam. A ideia de viagem turística é algo que não me agrada nada, não me lembro de fazer. Alguns livros, como o Viagem à Índia, por exemplo, são livros de viagens imaginárias. Outros, como o Canções Mexicanas, partiram precisamente de uma viagem ao México, concreta. É um livro ficcional mas partiu dessas experiências, mas eu nunca vejo a viagem como uma paisagem que vou visitar. Para já, a questão da paisagem interessa-me muito menos do que a questão humana, interessa-me muito mais o comportamento humano e, portanto, eu não sou um turista de máquina fotográfica, nunca o fui. Gosto muito de encontrar espaços que por vezes são espaços escondidos das próprias cidades. Para dar um exemplo muito rapidamente: fui a Trieste há vários anos e o que eu procurei lá foi um pequeno campo de morte que existia em Trieste, muito próximo de um campo de futebol do Triestina. A distância entre o antigo campo de futebol e o campo de extermínio era de 200 metros e eu fui precisamente a esse campo de extermínio perceber como é que é possível em 200 metros estar a jogar-se o Trieste-Inter de Milão, por exemplo, e a 200 metros alguns corpos estarem a ser mortos de uma forma, por um lado silenciosa, mas que tinha uma certa visibilidade quase terrível e maligna. Era uma visibilidade de fumo e de cheiro. Interessa-me muito estas questões de perceber o comportamento humano e não tanto as ruas que têm as Zaras e essas coisas todas. Interessam-me precisamente as ruas escondidas. Fui algumas vezes a Veneza e é absolutamente incrível, não o circuito turístico. Há uma Veneza gigantesca, sombria, macabra, terrível, assustadora que basta dar um pequeno desvio e é muito interessante isso. Como é que há milhares de pessoas, ou milhões de pessoas, a dar uma volta ao carrossel em Veneza e estão a ver uma Veneza, digamos, colorida, industrial, perfeitamente falsa, quando bastava 100 metros, é mesmo um desvio de 100 metros, e depois continuar a avançar pelo escuro? Claro que as pessoas querem avançar pela luz e não pelo escuro e fazem viagens muito luminosas e eu não faço tanto.

Também viaja muito em trabalho – feiras do livro, encontros literários. Aproveita essas viagens para conhecer mais os países?
Sim, tento sempre. Às vezes não é possível, mas tento sempre realmente encontrar. Quando consigo, dias antes, tento perceber se há ali algum ponto, uma pessoa, um local, um espaço ou às vezes um cantinho que me interessa historicamente e tento ir lá.

Usa depois como referência para livros, ensaios, para as suas crónicas, estes locais secretos? Ou esconde-os, prefere guardar?
Não, normalmente uso. Muitas vezes não diretamente, ou seja, não é uma coisa de… eu não sou jornalista, portanto um jornalista faria isso muito melhor do que eu. O que eu faço muitas vezes é, a partir de pequenos indícios, fazer ficção. Canções Mexicanasé um bom exemplo, é um livro de pura ficção, mas que apanha o instinto surrealista do México e da Cidade do México. Tem, por exemplo lá uma história – que já contei muitas vezes -, que é puramente real e parece ficcional, mas que depois se mistura com invenções minhas. Uma história que é no Zócalo, a praça central do México DF [Distrito Federal], em que está um homem com um altifalante a dizer: «Arrependam-se, arrependam-se, sexta-feira vai acabar o mundo, portanto arrependam-se pecadores», etc. E depois ele fez uma pequena pausa e começou a dizer: «Frigoríficos Virgilo, comprem frigoríficos Virgilio», o nome não me lembro exatamente, mas era uma coisa assim. Ou seja, ele estava a dizer que ia acabar o Mundo, fazia uma pequena pausa e depois vendia frigoríficos. Eu fui lá falar com ele e basicamente era um louco – os chamados Loucos de Deus. Ele achava mesmo que o Mundo ia acabar sexta-feira, tinha a certeza absoluta, mas o trabalho dele era vender frigoríficos. Ele fazia uma pequena pausa e era um mau vendedor porque estava a anunciar o fim do Mundo e a vender frigoríficos. Isso é um caso exemplar de uma realidade que ultrapassa a maior ficção, o maior surrealismo que se possa imaginar ou inventar.

Já esteve em todos os países onde os seus livros estão à venda?
Não, em alguns não estive. Nunca fui à China, por exemplo, nunca fui a Israel. Por vezes tento, quando consigo tento, quando sai um livro traduzido num desses países, tento conhecê-lo. Acho que é um princípio básico, mas muitos não tenho conseguido.

Cidade do México é uma das suas viagens de eleição. Outra é a Índia. Porquê?
O México é absolutamente surpreendente. Entramos numa gelataria e, de repente, no mesmo espaço da gelataria estão duas senhoras de 80 anos a rezar numa mini-igreja. O mesmo espaço é gelataria e estamos a ouvir… eu estava a pedir um gelado de baunilha e a ouvir «Padre nuestro que estás en…». Isso, por exemplo, não existe na Europa, os espaços estão muito divididos, muito organizados. A Índia, fui há pouco tempo numa viagem grande. Já tinha escrito Viagem à Índia, que é um livro imaginário de uma viagem imaginária, mas esse livro já parte de um fascínio pelo Oriente, claro. E recentemente fiz uma viagem à Índia, passei por alguns sítios como o Taj Mahal, por exemplo, que é um sítio quase mítico e que é talvez dos poucos sítios que eu não senti que fosse defraudado. O que é incrível é que, chega-se lá e já se viu milhares de imagens, e é um impacto incrível. Mas o que mais me fascinou na Índia é precisamente a questão do hinduísmo e de como as pessoas estão tranquilas dentro de uma grande pobreza. Para um ocidental isso pode parecer que é falta de ambição, que é falta de espírito de revolta, que é acomodação, coisas negativas. Mas o que eu senti ali, não senti nenhuma causa negativa, senti uma aceitação – não uma resignação –, uma aceitação do que acontece, de uma forma muito interessante que, para nós que somos uns eternamente insatisfeitos porque nos falta o IP5 ou o Iphone não-sei-quantos, aquilo é uma lição de pessoas absolutamente felizes, tranquilas, portanto não-raivosas, com uma pobreza muito simples. Portanto foi uma lição nesse aspeto. Claro que em poucos minutos é difícil explicar isto, e para um europeu isto pode parecer estranho. Aliás, a primeira sensação quando chego à Índia é: «Por que é que vocês não se revoltam?» Há ali uma outra forma de entender o mundo que nós teríamos alguma coisa a aprender, eventualmente.

Que viagem é que lhe falta fazer?
Talvez brincando um pouco, ou provocando, seria a viagem a Aveiro. Toda a minha infância e juventude foi em Aveiro, é uma cidade muito marcante para mim. Não é muito marcante eventualmente em termos planetários, mas para mim é essencial. É uma cidade que agora começa a ter também muito turismo, mas o que me interessa mais ali, quando eu volto, é realmente perceber como é que a infância é real ou imaginada, ou sonhada. A infância é realmente o momento em que não estamos totalmente conscientes do que é que está a acontecer, não estamos totalmente conscientes de nós próprios e, portanto, quando volto a Aveiro volto a uma espécie de sonho, de momentos de sonho que eu não sei exatamente se aconteceram assim, se foram inventados, enfim… E portanto eu diria que gostaria muito de voltar, de ter a possibilidade de voltar a Aveiro com um olhar quase de novo infantil. Diria que é uma espécie de utopia que ainda guardo.

Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF.

Imagem de destaque: Filipe Amorim/Global Imagens

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