Hong Kong, a cidade-máquina
Texto de José Luís Peixoto
Agora, parece-me que organizar Hong Kong seria uma ilusão. Estruturar a experiência de Hong Kong num texto que vá de um a outro ponto, sem mistura, sem parageens em recantos aleatórios, seria falta de fidelidade ao que significa estar lá, onde tudo se cruza com tudo. Ao longo dessas ruas, o Ocidente, completo, e o Oriente, também completo, atravessam-se, sobrepõem-se ou seguem lado a lado, paralelos, em harmonia urbana. Na memória, as imagens de Hong Kong são indómitas. Há muitos letreiros luminosos de carateres cantoneses, mas também há muitos rostos, infinitos, há arranha-céus e há alguém que passa a puxar um carro de mão enferrujado, há táxis a alta velocidade, a circularem pela esquerda, e há incenso a queimar muito lentamente, fios imperturbáveis de fumo que se dirigem aos céus. Hong Kong é tudo e o seu contrário, ao mesmo tempo, sempre.
Com poucos dólares, compra-se um bilhete para atravessar o Victoria Harbour. Mesmo que os motivos para essa travessia sejam práticos, convém que não se tenha perdido a capacidade de desfrutar da paisagem. As linhas de edifícios que compõem uma e outra margem são das imagens mais impressionantes de Hong Kong, pela imponência dos arranha-céus de diversas formas, pelo impacto futurista.
Num dos lados, fica a península de Kowloon, os barcos partem e chegam de Tsim Sha Tsui. No outro lado, fica a ilha que, como o próprio território, se chama Hong Kong. Desde os finais do século XIX que a empresa Star Ferries faz esta ligação. É por esta história que se tornou uma das instituições mais simbólicas da região, como se ligasse muito mais do que apenas as duas margens.
No lado da ilha, os barcos recebem passageiros em plena Central, nome que é dado ao distrito financeiro, sede de multinacionais, andares sobrepostos de escritórios, homens de fato e gravata nos passeios. Enquanto que aí se reconhece uma predominância de elementos ocidentais, herança e personalidade que se demonstra na arquitetura e nas mais diversas áreas, no outro lado, quando descemos do barco em Tsim Sha Tsui, chegamos a ruas onde se sente um ambiente muito mais oriental, mais chinês. No entanto, essa é apenas uma impressão geral. Ocidente e oriente formam um contraste permanente, não chegam a estar em margens distintas.
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Na zona da Central, a pouca distância dos tais escritórios de engravatados, o templo Man Mo, com espirais de incenso a arderem no teto. Algumas, explicam-me, demoram semanas a arder completamente. Quem mo diz é um homem que lê o futuro, que responde a perguntas, atirando palitos de madeira sobre um degrau. Diz-me também que os deuses se alimentam daquele fumo de incenso. Se é assim, o fumo deste templo alimenta Man, deus da literatura, e Mo, deus da guerra.
Há diferenças culturais entre Kowloon e o lado ocidentalizado de Hong Kong. Em ambas as margens, um encanto especial.
No papel vermelho de uma lanterna, leio em inglês: «Por favor, ajuda-a a ser feliz e a libertar-se das suas dores e mágoas.» Cá fora, olhando para o templo, sobressai o vermelho e o dourado, cores nobres. Subindo o olhar, depois do telhado tradicional, logo atrás, está um prédio com dezenas de andares, apartamentos ao lado uns dos outros, sobrepostos uns aos outros. Quantos milhares de pessoas viverão ali?
Em Tsim Sha Tui, abrindo caminho pelas multidões que enchem os passeios a qualquer hora, entre os letreiros luminosos mais garridos e gente que nos faz as mais diversas ofertas de negócio, chegamos à Nathan Road, uma longa avenida que, de certa forma, estrutura esta área. Também aí os passeios estão cheios. Essa é uma das caraterísticas de Hong Kong que salta a vista: há sempre gente nas ruas, em todas as ruas, como se o centro da cidade fosse em toda a parte.
À noite, avançando pela Nathan Road, virando à esquerda lá à frente, atravessando o passeio ao lado de mil, chegamos ao Temple Market. Através de corredores estreitos, entre produtos pendurados em todas as direções, podem encontrar-se as peças mais improváveis, uma boa parte delas feitas na China onde, como se sabe, se produz todo o tipo de objetos.
Após centenas de metros de bancas, no final do mercado, há várias ruas seguidas apenas com videntes: uns fazem contas em folhas de papel, outros leem significados em baralhos de cartas invulgares, outros usam métodos próprios, que não consegui identificar.
A partir de Tsim Sha Tui, não se consegue chegar ao hipódromo de Sha Tin a pé ou de ferry. O melhor para essa viagem será um dos muitos táxis de Hong Kong. Ao domingo de manhã, não foi preciso esperar muito, bastou sair de um restaurante macaense, com o pequeno-almoço tomado, e levantar o braço.
Esta é uma das cidades onde mais se sente a convivência entre tradições ancestrais e modernidade.
O hipódromo de Sha Tin é irmão mais novo de Happy Valley, o hipódromo mais antigo do território. As corridas deste acontecem nas noites de quarta. Ao longo daquele domingo, iria assistir à final da época. Ainda faltava bastante para os cavalos chegarem à pista e já havia milhares de pessoas a chegar. Enquanto alguns se instalavam diante de ecrãs, analisando dados em letras miúdas nas páginas enormes de jornais, havia outros que se passeavam nos longos corredores de lojas e ainda outros que almoçavam já em algum dos muitos restaurantes.
Muito maior do que a pista onde correm os cavalos, há um espaço coberto imenso, onde existem as áreas de apostas e, também, muito mais opções. Quanto às corridas propriamente ditas, há um primeiro momento em que os jockeys desfilam numa pista, bastante próximos do público, exibindo os protagonistas que, daí a minutos entrarão nas cabines da partida. Aí, após o sinal, inicia-se uma emoção coletiva que leva milhares de pessoas nas bancadas a gritar desordenadamente, cada espetador a apoiar o seu cavalo. Esse rumor intensifica-se ainda mais quando os cavalos chegam à meta final, intensifica-se ainda mais se a vitória for disputada até ao último metro.
O Hong Kong Jockey Club é a instituição que faz a gestão dos hipódromos e das apostas em cavalos no território desde 1884. Trata-se de uma instituição social sem fins lucrativos que, por ano, tem apoiado mais de 170 projetos e associações em favor da comunidade, com milhares de milhões de dólares de Hong Kong. Enquanto isso, a essa mesma hora, na zona da Central, há ruas cheias de empregadas domésticas filipinas. Estão sentadas no chão, sobre mantas ou caixotes de papelão espalmado, abrigam-se do sol com guarda-chuvas ou aproveitam sombras. Fazem piqueniques em frente às lojas das marcas mais caras. As pessoas que passam têm de contorná-las.
Hong Kong tem 7,5 milhões de habitantes. Está entre as cinco zonas mais densamente povoadas do mundo.
As empregadas domésticas filipinas chegam do seu país para viver na casa dos patrões, onde trabalham todos os dias, exceto ao domingo. Na sua única folga, juntam-se em várias ruas da Central: Des Voeux Road, Chater Street, Statue Square, entre outras. Juntam-se também nos túneis, nos viadutos, dentro e fora dos passeios.
Não tendo outro espaço para além daquele onde dormem na casa dos patrões, desenvolvem todo o tipo de atividades na rua aos domingos. Passo por um beco onde ensaiam um desfile de moda, tudo muito a sério, modelos a serem empregadas domésticas filipinas, mas a parecerem profissionais. É um cenário incrível que, creio, não se repete em muitos lugares do mundo. Também estas mulheres são Hong Kong.
Também a essa hora de domingo, como em todos os fins de semana, a ilha de Cheung Chau está cheia de gente. Nas esplanadas, comem peixe e mariscos. No Ocidente, conhece-se pouco acerca das mil maneiras como os chineses cozinham peixe e marisco. Há também levas serenas de multidões que deambulam pelas ruas caraterísticas. Há também muita gente que enche a praia do outro lado da ilha. Durante os dias de semana, a ilha de Cheung Chau é uma possibilidade de repouso da agitação de Hong Kong. O ferry parte da Central e demora cerca de trinta minutos.
Depois de quilómetros no teleférico, sobrevoando águas e floresta, avistamos a estátua do Tian Tan Buda, também conhecido como o Grande Buda. Para se chegar lá, é preciso subir uma enorme escadaria. A recompensa é ficar frente a frente com uma estátua de bronze de 34 metros e, em todas as direções, ter uma paisagem até à linha do horizonte.
A estátua é recente, foi colocada no topo daquela colina da ilha de Lantau em 1993. Pertence ao mosteiro de Po Lin, que tem uma história mais longa, data do início do século xx. Para além dos visitantes que atrai, este é também um dos mais importantes centros religiosos de Hong Kong. Seja qual for o motivo da visita, é certo que se passará pelo restaurante vegetariano do mosteiro e, por um preço económico, há a possibilidade de experimentar uma refeição. Da mesma maneira, depois, vale a pena passar pela venda de sobremesas do templo.
Todos os dias, às 20h, decorre o espetáculo Sinfonia das Luzes. Os edifícios mais importantes iluminam-se ao som da música.
Há também uma vista deslumbrante para contemplar no topo do monte a que, localmente, se chama The Peak. Também chamado Pico Victória ou Monte Austin, essa varanda sobre Hong Kong mostra a península de Kowloon, do outro lado, a sua frente marítima e muitos dos edifícios subsequentes. Aos nossos pés, toda a área da Central.
Sabe bem essa oportunidade de olhar a cidade de cima, com uma mistura de melancolia e de ternura por toda a gente que, lá em baixo, parece tão pequenina, ínfima, fechada nas suas ilusões.
As possibilidades de sair à noite em Hong Kong são vastas e dependem muito daquilo que cada um procura. Ainda assim, o SoHo pode ser a opção consensual para um grupo heterogéneo. Neste caso, o nome nasce do facto de se tratar de um bairro a sul da Hollywood Road. Com uma enorme escada rolante, lanços consecutivos que parecem não terminar, chegamos a ruas de bares em todas as portas, restaurantes sofisticados com comida de todo o mundo. Há sempre gente mas é nas noites mais animadas da semana que toda esta rede de ruas, estes quarteirões, se enchem, engarrafamentos de homens e mulheres.
No início da Nathan Road, em Tsim Sha Tsui, fica um dos edifícios que, de certa forma, melhor condensa a vitalidade de Hong Kong, a diversidade das suas cores, perfumes, sabores, do seu barulho. Edificado no início dos anos sessenta, o Chungking Mansion conta hoje com um número aproximado de quatro mil residentes. Estes dividem-se pelos pisos de venda a retalho, com uma oferta labiríntica de todo o tipo de produtos, minirrestaurantes, casas de câmbio, surpresas permanentes, e pelos pequenos albergues baratos, onde ficam todo o tipo de viajantes ou de residentes precários.
A vista desde o The Peak é única. Para lá chegar, prepare-se para alguma espera. Mas vale a pena.
Nessa espécie de enorme colmeia humana, há gente de muitas origens, todos comunicam e coexistem. Talvez a organização de Hong Kong seja esta. Talvez exista uma lógica naquilo que parece aleatório e contrastante. Certo é que Hong Kong funciona, como um mecanismo de precisão, como um relógio que nunca se adianta ou atrasa. Todos os dias, a todas as horas, sempre.
Guia de viagem
Moeda: Dólar de Hong Kong – 1 euro equivale a 8,5 HKD
Fuso horário: GMT +7 horas
Idioma: Mandarim e Inglês
Quando ir: julho e agosto são meses de maior calor. De outubro a dezembro as temperaturas são mais convidativas.
Ir
A Emirates voa de Lisboa para Hong Kong com ligação no Dubai a partir de 846 euros por pessoa (ida e volta).
Dormir
Hong Kong é uma cidade de extremos quanto a alojamento. Os hotéis mais afamados podem facilmente ultrapassar as duas centenas de euros por noite. No outro lado do espectro estão os alojamentos de baixo custo, como os hostels de Tsim Sha Tsui, cujos valores rondam os 30 euros por noite. Sendo um dos territórios mais densamente povoados do planeta, as áreas dos quartos são bastante reduzidas. Para a realização desta reportagem optámos por um alojamento particular inserido no site Airbnb. O apartamento de três quartos bem no centro de Kowloon ficou a rondar os 180 euros por noite. Sean Kennedy: [email protected]
Comer
Este é um destino onde a gastronomia tem um papel fundamental. Além de a cozinha asiática estar presente nas mais variadas opções – chinesa, japonesa, coreana ou vietnamita, por exemplo -, também os restaurantes de cozinha internacional existem em grande número. Comer na rua é uma experiência que deve ser levada em consideração. Nas ruas junto ao Temple Street Market, são vários os espaços de peixe e marisco. Preços a rondar os 15 euros por pessoa.
Visitar
Star Ferry
A primeira sugestão é o Star Ferry, que liga Kowloon e Hong Kong Central. A viagem custa cerca de 30 cêntimos e permite apreciar a arquitetura da cidade a partir do mar.
Tsim Sha Tsui
Ou TST, como é conhecido entre os locais. É o bairro dos néons, das grandes marcas, da animação e dos restaurantes. Fica em Kowloon e por aqui também não se deve perder o Passeio das Estrelas, onde a estátua de Bruce Lee é um dos chamarizes. Todas as noites, às 20h00, junto ao cais da Star Ferries, não perca o espetáculo Sinfonia das Luzes.
The Peak
É a melhor vista da cidade e lá se chega de comboio. A melhor hora é ao fim da tarde para se poder apreciar Hong com a luz do dia e da noite.
Cheung Chau
Ilha de pescadores onde só se anda a pé ou de bicicleta. Fica a 35 minutos de viagem de Hong Kong e tem uma oferta variada de restaurantes de peixe e marisco.
Grande Buda
Faz parte do complexo do mosteiro de Po Lin. Fica na Rua de Lantau e para lá chegar há que apanhar o metro e um teleférico com vista impressionante.
Consultar
discoverhongkong.com
O site oficial do Turismo de Hong Kong é uma ferramenta muito útil para descobrir a história do território, bem com os pontos a visitar. Dicas e informações preciosas.
sassyhongkong.com
Este blogue é muito mais do que um projeto apenas para as mulheres de Hong Kong. Está presente em cidades como Singapura, Dubai e Manila, mas o projeto nasceu neste território autónomo da China. Descubra as novidades quanto a restaurantes, bares, lojas, eventos e lifestyle com dicas de quem vive no terreno e sabe do assunto.
Agradecimentos:
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