A Nacional 2 de trás para a frente
De autocaravana, partimos de Faro, ao quilómetro 737, e um país inteiro depois chegámos a Chaves, ao quilómetro zero. Pelo caminho, conhecemos as histórias de quem vive nas margens da maior estrada do país. Fizemos uma travessia num Portugal pequeno que se quer assim, genuíno. Para resumir a viagem somos obrigados a usar uma frase batida: «Mais do que o destino, importa o caminho.»
Texto de Petra Alves
Fotografias de Constantino Leite
Faro até Aljustrel
Esta será a única parte da viagem com um pedaço de vista mar. A partir de Faro, a EN 2 volta as costas ao Atlântico rumo a serras, planícies, rios e barragens, aldeias e cidades. Como São Brás de Alportel. O troço que percorre esta vila tem início no barrocal e termina em pleno Caldeirão, uma das mais belas serras do país.
Vale a pena cruzá‑la ao entardecer para testemunhar o momento em que os montes conquistam um tom avermelhado, os habitantes saem à rua para dois dedos de conversa e os pastores conduzem as ovelhas. Até lá, é obrigatório o almoço em Barranco do Velho. Colado à N2, o restaurante Tia Bia é gerido, desde 2015, pelo casal Cátia Graça e Nuno Pires. Ele, filho da terra e chefe de cozinha, ela responsável pela sala. Juntos, reergueram uma casa que em tempos foi tasca e paragem obrigatória para os muitos camionistas que faziam esta estrada, numa altura em que Barranco do Velho tinha comércio e vários ofícios. Nuno teve um restaurante da Quinta do Lago, mas as voltas da vida trouxeram‑no novamente à terra natal, desta vez para cozinhar sabores serranos como bochechas de porco preto assadas no forno, a largar o osso, acompanhadas por migas.
Também à face da estrada, outra preciosidade da serra é produzida sem ninguém dar por ela: a aguardente de medronho Mourinha. Diz‑se, pelo Caldeirão, que a destilaria de Marília Ramos é das mais bonitas e artesanais. A caldeira é de cobre, assim como a cabeça, a manga e a serpentina, tudo partes da geringonça tradicional usada para produzir esta aguardente macia que se bebe de um trago. Nos meses de inverno a «senhora do medronho», como é conhecida em Barranco do Velho, colhe o fruto vermelho e produz a aguardente num espaço antigo e bem cuidado, que trata com esmero e mostra com orgulho. Vale a pena a visita.
O almoço no Tia Bia, em Barranco do Velho, é obrigatório: bochechas de porco preto no forno com migas.
De volta à estrada, avistam‑se montes de cortiça, produtores de enchidos e de mel, palcos improvisados, famílias ciganas que fazem o caminho a cavalo, nas suas vidas itinerantes.
A chegar ao Ameixial, uma placa em homenagem aos camionistas da EN 2 lembra a importância que esta via já teve. Quase à saída (para quem vem do Algarve) há uma pequena pérola à espera de quem traz o corpo moído da viagem. Não se vê da estrada e há que procurar por Fonte da Seiceira para dar com um espelho de água pequeno, mas muito bem arranjado, resultado da vontade daquela população que assim o decidiu no Orçamento Participativo de 2014.
Já perto de Almodôvar, a paisagem muda. Os montes serranos dão lugar a planícies douradas e a estrada faz‑se agora mais plana, como a terra que a circunda.
Aljustrel até Mora
«Como se aguenta este calor? Olhe menina, atiramo‑nos lá para dentro», diz a septuagenária que da, soleira da porta de casa, aponta para a Piscina Municipal de Aljustrel, que se estende, à sombra, lá em baixo. Da Ermida, uma
vista de 360 graus sobre a vila: de todos os ângulos, sobressai o casario branco a preencher o declive acentuado das ruas. O município é bem conhecido pelo património mineiro e o centro histórico de Aljustrel tem algum movimento a contrariar outras localidades do Baixo Alentejo, dourado pelas altas temperaturas do verão.
À face da EN 2, Ervidel tem das escolas mais bonitas do território. Tem água por perto – a albufeira da barragem do Roxo. Tem vinha a perder de vista. Mas um bom punhado de gente só tem lá para novembro, pela altura do vinho da talha, festa que atrai muitos curiosos para a abertura das talhas de barro e prova do vinho novo. Quem o diz é a dona Sara, proprietária de um dos cafés do centro, o Coffee Time, que «estes nomes não há só em Lisboa», brinca a própria. De Ervidel para norte, os campos lavrados ganham tons avermelhados. Há um troço da EN 2 coberto pela copa das árvores, outro que é ladeado por sobreiros descascados e ainda outro que deixa antever a proximidade a Torrão, quando os terrenos junto à estrada se fazem de terra fina como a areia.
Em novembro, Ervidel enche‑se para a festa do vinho da talha. São muitos os
que vêm provar o vinho novo.
Casa de Bernardim Ribeiro e Maria Rosa Colaço, esta vila trespassada pela Nacional 2 é também terra de Mário José Fagulha que, nos últimos trinta anos, se dedicou a recolher informação sobre Torrão para a editar em livro. Uma homenagem à terra onde D. Afonso Henriques acampou o exército na véspera da reconquista de Beja. No centro da vila, tem um restaurante de comida honesta e preços a condizer, onde serve uns imperdíveis pezinhos de coentrada e açorda de bacalhau com ovo bem aromatizada com hortelã da ribeira, numa dose que parece excessiva… mas não é. Chama‑se Restaurante Belo Horizonte, mas quem se perder nas ruas estreitas de Torrão que pergunte pelo «café do Marinho». São as pessoas com histórias para contar, o princípio ativo que torna esta viagem pela EN 2 o melhor remédio contra a hegemonia – ou o chamado «mais do mesmo».
Pouco mais de vinte quilómetros para norte, a pitoresca Alcáçovas também guarda personagens que insistem em perpetuar manifestações culturais que são legendas de um país tão genuíno. É o que faz Gregório Sim Sim, de 83 anos, ao manter a sua oficina de chocalhos aberta ao público, mesmo que hoje já só troque badalos e coleiras. A arte chocalheira, entretanto considerada Património Imaterial da Humanidade é, desde o século XVIII, parte do ADN desta vila de Viana do Alentejo. «Antes, não havia cercas. Os chocalhos que se penduravam ao pescoço de alguns animais eram muito importantes para avisar o movimento do gado», explica o senhor Sim Sim, deixando, por fim, o convite: «Quando cá passarem, venham cumprimentar‑me.»
Mora até Sertã
Neste troço, a EN 2 liga o Alto Alentejo e a região centro. Liga paisagens de montanha e praias fluviais integradas em contextos tão bonitos que ninguém mais se lembra da água salgada. Contas feitas, este curto percurso une os distritos de Évora (Mora), Portalegre (Montargil), Santarém (Sardoal) e Castelo Branco (Sertã) e dá a conhecer uma rica diversidade paisagística e cultural de uma parte do país que merece mais visitantes.
Em menos de trinta minutos, a partir de Mora, encontra‑se a barragem de Montargil que faz parte da bacia hidrográfica do Tejo e tem 14 quilómetros de extensão. Vale a pena pernoitar junto à água só para acordar de manhã cedo e ter o gosto de a ver fumegar, libertar o vapor que parece ali ficar suspenso só para nosso deleite. A vida que acontece nestas margens, em pleno agosto, é tranquila, sem multidões: um pescador, uma família a brincar dentro de água, e a equipa da Evasões a registar toda a beleza e calma do lugar.
Quase em linha reta se chega a Abrantes, onde, à vista de quem passa na estrada, permanecem uma série de edifícios ao abandono. Este cenário, não menos comum noutras cidades portuguesas, não tem eco na pacata vila do Sardoal, mesmo ali ao lado. Bem cuidado, o centro histórico merece visita sobretudo a de quem é fã de património religioso: é que nuns escassos 1500 metros há três igrejas e seis capelas. Antes de deixar a vila, há que saber que o chouriço picante e a moura assada do restaurante Quatro Talhas abrem as hostilidades de uma refeição que pode passar por pratos típicos – como a cozinha fervida ou a couve de Valhascos – mas também por um bacalhau confitado com farinheira da região e maranhos de porco. Os maranhos são ainda muito apreciados na vizinha Vila de Rei, onde se encontra o centro geodésico de Portugal. Fica no Picoto da Melriça e daqui consegue ter‑se uma visão de 360 graus sobre um horizonte em que se destaca a serra da Lousã e, com tempo limpo, a da Estrela, quase a cem quilómetros de distância. Nesta área, impõe‑se um desvio da Nacional 2 para conhecer as várias zonas balneares como a praia fluvial do Bostelim, da Zaboeira ou do Penedo Furado. Outra boa opção é a de Fernandaires, não só pelo lugar magnífico rodeado de altas montanhas arborizadas, mas também pelo passeio até lá chegar, que oferece aquele tipo de vistas que leva a pensar, «Como é que nunca tinha cá vindo antes?».
Sertã até Tondela
O que faz da EN 2 uma rota tão sui generis é o facto de ter sido convidada a entrar nas localidades. Em muitas vilas, cidades, povoações, a estrada não vai à volta, pela periferia – estende‑se pelo meio. Assim acontece na Sertã, ponto de partida de mais um pedaço de estrada, de mais um pedaço de país.
Sertã é banhada por duas ribeiras e o município é delimitado a oeste pelo Zêzere. Seguindo o curso do rio para norte, chega‑se a Pedrógão Grande. O percurso mostra o efeito do fogo, mas que não seja motivo para afastar os visitantes, Aliás, os vários rios, albufeiras e barragens são argumentos indiscutíveis para atrair à região centro quem procura fugir dos lugares do costume.
Fugir dos lugares do costume é a deixa que nos leva a Góis. Também atravessada pela EN 2, à entrada tem um armazém que é o ateliê de Latifa Sayadi, o Ferro Quente. A artesã nascida na Tunísia e que viveu em Roma e em Berlim, agora reside e trabalha em Góis e só fala em português. Faz esculturas em ferro forjado, mas também peças utilitárias como corrimãos e portões para as casas da região. O pilão, o martelo, a bigorna, a guilhotina e o forno a gás são as suas ferramentas para dar forma a peças que depois expõe pelo mundo.
Por estas paragens, há um restaurante que passa despercebido e guarda sabores locais preparados com mestria. No Alvaro’s come‑se truta frita, uma boa tibornada e uma chanfana deliciosa feita pela mãe de Álvaro.
Percorrer a EN 2 é fazer uma espécie de raio‑X ao país e testemunhar a evolução de projetos dignos de referência – é o caso da New Terracota, no município de Mortágua. 85 por cento dos azulejos que aqui se produzem, ainda de forma artesanal, são exportados. A marca casou conhecimento e inovação para conseguir uma presença cada vez mais forte no mercado internacional. E se os azulejos industriais são feitos numa hora, os da New Terracota levam uma semana a ficar prontos, são pintados à mão e não há duas peças iguais.
Percorrer a Nacional 2 de lés a lés é também um exercício de história. Ainda antes de chegar a Tondela, a estrada passa pela terra natal de Salazar: Santa Comba Dão (Vimieiro).
Tondela até Santa Marta de Penaguião e até Chaves
A partir de Tondela, a EN 2 espraia‑se em pleno Dão‑Lafões e segue em direção ao Douro. Mostra vinha inserida numa paisagem completamente diferente da que se exibia há menos de 200 quilómetros. Mas ainda antes do vinho, é obrigatório um desvio até Molelos, onde, porta sim porta não, há uma olaria de barro negro. Aliás, nesta zona envolvida pelas lindas vistas da serra do Caramulo, o cabrito faz‑se em forno a lenha e em barro negro de Molelos, nunca outro. Mas, ao contrário da olaria negra de Bisalhães – em Vila Real, que também vê a EN 2 passar –, a de Molelos não está incluída na lista do Património Imaterial da Humanidade.
Em Canas de Santa Maria, a EN 2 apresenta um restaurante de beira de estrada cheio de carros à porta. A dificuldade em estacionar indicia que a comida é boa. E é: arroz de costela de vinha de alhos e chanfana com batata cozida são alguns dos pratos da Casa Maçaroco.
Em menos de trinta minutos, chega‑se a Viseu e a oferta é outra: a cidade está cada vez mais entusiasmante. Na Casa do Adro, consegueter‑se uma visão generalizada sobre o que a região tem para oferecer. De Viseu a Santa Marta de Penaguião é um pulo. E aqui a EN 2 é coprotagonista de um espetáculo imperdível ao pôr do Sol. A estrada volta a ficar sinuosa para acompanhar o declive das encostas. Se nada mais houvesse para conhecer, o cenário seria motivo suficiente para parar. Mas há mais. Há, por exemplo, uma visita à Adega Alves de Sousa que bem se vê da EN 2. Ou, bem mais prosaicas, mas igualmente valiosas, as trouxas e as moiras do artesão Leonel Coutinho, que ajudam a transportar os cestos das vindimas há décadas.
Chegados a Chaves, o quilómetro zero indica o fim da viagem. Ou o início.
Guia
FARO ‑ ALJUSTREL
COMER
TIA BIA
Encerra segunda ao jantar.
PREÇO MÉDIO: 17 EUROS
ESTRADA NACIONAL 2, BARRANCO DO VELHO, SALIR (LOULÉ)
TEL.: 289846425
atiabia.com
COMPRAR
MEDRONHO MOURINHA
Marília Ramos
BARRANCO DO VELHO, SALIR (LOULÉ)
facebook.com/mourinhamedronho
VISITAR
FONTE DA SEICEIRA
AMEIXIAL (LOULÉ)
GPS: 37.3685, ‑7.9687
ALJUSTREL – MORA
COMER
BELO HORIZONTE
Encerra à terça.
Preço médio: 8 euros
RUA NOSSA SENHORA DA ALBERGARIA, 21, TORRÃO (ALCÁCER DO SAL)
TEL.: 265669275
COMPRAR
GREGÓRIO SIM SIM
BAIRRO FRAGOSO, RUA A, 1, ALCÁÇOVAS (VIANA DO ALENTEJO)
TEL.: 966570994
VISITAR
BARRAGEM DE MONTARGIL
MONTARGIL (PONTE DE SOR)
GPS: 39.0714, ‑8.1653
MORA‑SERTÃ
COMER
QUATRO TALHAS
Praça da República 1, Sardoal
Tel.: 241855860
Encerra à segunda.
Preço médio: 15 euros
VISITAR
PRAIA FLUVIAL DE FERNANDAIRES
VILA DE REI
GPS: 39.7342, ‑8.2087
PRAIA FLUVIAL DO BOSTELIM
VILA DE REI
GPS: 39.7237, ‑8.1082
SERTÃ‑TONDELA
COMER
ÁLVARO’S CAFE
AVENIDA COMBATENTES DE ULTRAMAR, 30, GÓIS
TEL.: 235772271
Das 08h00 às 00h00.
Encerra à segunda.
Preço médio: 10 euros
COMPRAR
ATELIER FERRO QUENTE
BAIRRO S. PAULO, 3, GÓIS
TEL.: 924230326
[email protected]
VISITAR
LAGAR‑MUSEU
LUGAR DA MATA, EN2, VILA NOVA DO CEIRA (GÓIS)
TEL.: 235770170
TONDELA ‑ SANTA MARTA DE PENAGUIÃO ‑ CHAVES
COMER
CASA MAÇAROCO
Das 09h00 às 22h00. Não encerra.
Preço médio: 8 euros
AVENIDA DOS EMIGRANTES,
299, CANAS DE SANTA
MARIA (TONDELA)
TEL.: 232841668
COMPRAR
OLARIA TRADICIONAL DE MOLELOS
Maria Fernanda Marques
RAPOSEIRA, RUA DA MACIEIRA,
MOLELOS (TONDELA)
TEL.: 965418352
VISITAR
CASA DO ADRO
Das 09h00 às 18h00; fim de semana e feriados, das 09h30 às 13h00 e das 14h00 às 17h30.
ADRO DA SÉ, VISEU
TEL.: 232420950
ALVES DE SOUSA
Visita: 15 euros (adega e prova de 5 vinhos)
QUINTA DA GAIVOSA, POUSADA DA CUMIEIRA, 2214 (SANTA MARTA DE PENAGUIÃO)
TEL.: 254822111
alvesdesousa.com
PRAIA FLUVIAL DE LOUREDO
SANTA MARTA DE PENAGUIÃO
GPS: 41.2493, ‑7.8122
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