Chambord, Blois e Chaumont são viagens no tempo que piscam o olho aos artistas e à arquitetura contemporânea.

Texto de Lina Santos

A princesa Amedée de Broglie era tão excêntrica que tinha um elefante como animal doméstico. Hoje, o seu antigo castelo, onde recebeu o rei D. Carlos, acolhe artistas contemporâneos de todo o mundo. Fica nas margens do Loire, vizinho de Chambord e Blois, e a caminho de Tours, onde acaba de inaugurar o Centro de Criação Cultural, projeto do ateliê dos arquitetos portugueses Aires Mateus.

Três dias intensos levam-nos até à região do Loire, começando no que de mais imponente aqui existe, Chambord. «Depois de Versalhes e de Avignon, este», diz o guia de turno, sem ponta de modéstia, com a razão que lhe assistem os números. O castelo em causa tem 128 metros de fachadas e 800 colunas. É preciso caminhar uns bons metros para conseguir uma fotografia completa do edifício que o rei Francisco I mandou construir numa reserva de quase 53 quilómetros quadrados.

A dimensão explica-se com a ambição do rei. Queria construir a capital do império aqui. Carlos V, de Espanha, passou por Chambord. O rei francês falhou o propósito, mas artilhou a casa de fosso, quatro torres assinalando os pontos cardeais e vista desafogada. Mais a maior atração arquitetónica do lugar: as suas escadas em dupla hélice. A partir delas, o rei via e era visto.

Diz-se que são de Leonardo Da Vinci, uma informação que é preciso usar com cuidado. Sim, são conhecidos exemplares do artista italiano e é certo que estava em França à época em que Francisco I lança a empreitada, na primeira metade do século XVI, mas (até ao momento) não se conhecem documentos que comprovem a tese. Fique-se pelo oficial: o arquiteto é Domenico de Cortona. E foi aqui que estiveram as peças do Louvre em 1939, quando foi preciso evacuar o Museu do Louvre. Mona Lisa, incluída.

O Vale do Loire é visto como o Jardim de França. Desde 2000 é Património da Humanidade.

Chambord, a duas horas de carro de Paris, entre as cidades de Orleães e Tours, recebe cerca de 800 mil visitantes por ano e passou por sucessivas mãos reais e abandono até ser comprado pelo Estado francês, em 1930. Luís XV, outro rei que por aqui passou, entregou o castelo ao marechal Maurice de Saxe. Este, por sua vez, obteve autorização para ir às reservas de Versalhes procurar mobiliário para guarnecer o castelo. É ele que fecha a parte pública da zona dos aposentos privados, que, atualmente, estão a receber algum mobiliário real, reconstituindo a época de Saxe, ou seja, antes da revolução francesa. Sobrou uma das maiores coleções de tapeçarias de França, dos séculos XVI ao XIX.

Quem também passou por Chambord foi Molière (1622-1673). Num dos átrios, estava montado um palco e não é preciso olho de lince para encontrar os buracos que seguravam os espigões dos cenários. Também foi desmontado com a revolução francesa. De mão em mão pelos herdeiros do duque de Chambord, o castelo chega aos duques de Parma, italianos, já no século XX. E, por volta de 1910, já se podia entrar e conhecer a propriedade. A entrada custava, então, um franco.

Chambord faz parte do maior parque florestal murado da Europa.

Blois, o castelo e a dúvida
É preciso percorrer quase todas as salas e corredores do Castelo de Blois para chegar à mais picante das divisões, o studiolo de Catarina de Médicis, a princesa italiana que veio de Florença para se casar com o rei Henrique II. Ambos deixaram marcas fortes. Ele porque, conta-se, terá matado aqui um dos seus inimigos; ela, porque, dizia a sabedoria popular, guardava aqui os seus venenos.

O studiolo foi, na verdade, um dos primeiros gabinetes de curiosidades que se conheceram na Europa. Catarina guardava aqui as suas coleções de naturalia, exotica, artificialia e antiquitats. E, adensando o mistério, numa sala forrada de 180 painéis de madeira, com relevos e vários compartimentos secretos.

Rainha de França entre 1547 e 1559, Catarina de Médicis foi casada durante dez anos, antes de ter o primeiro filho. Enquanto isso, o rei teve uma filha ilegítima com Diana de Poitiers, que reconheceu mostrando que não tinha problemas de saúde. Depois de o marido subir ao trono teve oito crianças. Seis sobreviveram à infância e três subiram ao trono. Chegou a ser regente, porque um dos filhos era demasiado pequeno para reinar e viveu até aos 70 anos.

Este castelo já o era na Idade Média e até ao século XVII, uma fortaleza que protegia a cidade. O Loire é fronteira natural de acesso e a muralha foi construída a cerca de 40 metros de altura. Resta, dos primeiros tempos, uma torre de menagem. Outras três, idênticas, foram incorporadas nas sucessivas obras que o castelo foi sofrendo. Francisco I, o mesmo de Chambord. A ele se deve a chegada da Renascença – uma construção simétrica e símbolos como a concha, que recorda a Vénus de Boticelli.

Resumindo uma história de sete séculos em quatro fachadas, sempre que um novo senhor chegava a Blois fazia obras. E assim, o castelo é hoje testemunha da história da arquitetura de França. Do renascimento de Francisco I, ao estilo neoclássico que Gastão de Orleães quis impor, mas não teve crédito para concluir até ao regresso do interesse nacionalista que volta ao castelo entre 1844 e 1871, segundo um projeto do arquiteto Félix Duban. Por essa altura, é já monumento de interesse nacional. Tudo o que se vê aqui é uma recriação do ambiente real à maneira do século XIX.

A construção de Blois atravessou quatro séculos do XIII ao XVII.

Dez minutos a pé, e chega-se a essa parede de perguntas que dá as boas vindas à Fondation du Doute. Antes da fundação ter aberto portas, em 2013, a parede da dúvida já cá estava e chama-se assim mesmo: Wall of Doubt. A obra é do artista francês Ben, hoje com 82 anos, e está aqui desde 1995, encomendada por Jack Lang quando era presidente da câmara de Blois e antes de ser ministro da Cultura.

As perguntas de Ben são um resumo da cultura tablóide desde os anos 1960 até aos anos 1990 e lá dentro salvaguarda-se a memória em torno do movimento artístico de que fez parte, o Fluxus, nascido em finais da década de 1950, em Nova Iorque, de assumida dificuldade em caracterizar. «O que é essencial no Fluxus é que ninguém sabe o que é», definiu Robert Watts, uma das suas figuras. O Fluxus não é tanto fazer perguntas sobre arte e a sua definição, mas «uma forma de ver arte», diz uma das colaboradoras da casa, Metade do que aqui se vê, veio da coleção pessoal de Ben, aliás, Ben Vautier, nome do artista enquanto colecionador que também pensou o lugar. Cedeu várias obras suas para a fundação. Ao todo, são 300 de 40 artistas, além de arquivo e documentação. Muita cor, muito jogo, muita interação. É com o Fluxus, e com o artista Allan Kaprow, que aparece o conceito de happening. É com o Fluxus que se começa a falar de uma mail art – arte que se envia pelo correio (é possível fazê-lo durante a visita). «Têm 80 anos e são como crianças».São assim descritos os artistas que têm passado por aqui.

As excentricidades de Chaumont está a 185 quilómetros de Paris
Tudo na história do castelo de Chaumontsur-Loire, exemplar de filme da Disney com torres pontiagudas e ponte levadiça, exige uma visita. Catarina de Médicis passou por aqui, e reservou um aposento especial, próximo do seu quarto, para Nosferatu, visita assídua da rainha. Acabaria por deixar a propriedade para Diana de Poitiers, a amante do marido. Sobreviveu incólume à passagem dos revolucionários no fim do século XVIII e manteve os símbolos da monarquia por estar, então, nas mãos de um americano.

Mobilado ao estilo da última proprietária, do século XIX, a história merece ser contada a partir da chegada da jovem Marie Charlotte de Say, herdeira de uma fortuna colossal após a morte do avô, o industrial açucareiro Louis de Say. Comprou o castelo de Chaumont após o casamento com Henri Amedée de Broglie. Pagou 1,7 milhões de francos pela propriedade, com vista (e acesso) ao Loire. Estamos no final do século XIX e tudo aqui é extravagância.

Os amigos vinham dos quatro cantos do mundo – nobres, milionários, artistas, até reis. Como D. Carlos I, que a visitou em 1895, como documenta a fotografia exposta numa das boxes das cavalariças. É a princesa que as manda construir e estes não são uns estábulos quaisquer. Tinham luz e aquecimento quando muitas pessoas não podiam desfrutar dessas comodidades, vai contando o relações públicas da casa, Dominique Jauzenque. Foi aqui que nasceu a marca Hermés, conta. O fundador produzia as selas dos cavalos dos Broglie. Criava cavalos, mas o seu animal de estimação era um elefante, oferecido por outro amigo da casa, o marajá de Kapurthala.

As histórias da princesa atropelamse, mas é preciso fazer uma pausa. Chaumont, que passou para as mãos do Estado francês nos anos 30 do século passado, é agora gerido pelo município. Ao património histórico juntou-se o festival internacional de jardins, que reúne 150 designers. A edição deste ano, a 26ª, chama-se Flower Power e dura até 5 de novembro.

Um percurso de cerca de 10 minutos leva o visitante por caminhos verdes, ínfima parte dos 32 hectares da propriedade. A cada passo, o visitante é chamado a entrar num novo local e espreitar uma nova obra de arte contemporânea. Fica explicado o «arte» na designação de Chaumont – centro de arte e natureza. Ao todo, são 3 mil metros quadrados de espaço para que os artistas possam apresentar as suas obras ao redor da casa. As encomendas são feitas por períodos de três anos. A próxima, a começar este verão, é a americana a viver em Paris Sheila Hicks. Em outras ocasiões são feitas encomendas em série a vários artistas que vão instalando as suas obras um pouco por toda a propriedade – castelo, cavalariças e jardins. As peças deste ano começaram a mostrar-se em abril. É o caso da inédita escultura-instalação Ninho dos Murmúrios, de Stéphane Guiran e que ocupa por inteiro o picadeiro interior das cavalariças. O escultor recolheu pedras de quartzo em Marrocos, partiu-as em 4 mil pedaços e mostra-as agora, como flores. E há mais: a capela do castelo, dessacralizada, é o white cube da obra As Pedras e a Primavera, de Gerda Steiner e Jörg Lenzlinger; o artista grego Jannis Kounellis, desaparecido este ano, produziu de 2008 a 2010 algumas das suas últimas obras para o castelo de Chaumont e quis fazê-lo (também) na cozinha, onde se preparavam refeições para 40 pessoas.

Retome-se a história da princesa Amedée de Broglie, a partir de uma descoberta recente, durante a reabilitação das cavalariça. No bolso de um casaco de montar de homem foi encontrada cocaína fora do prazo. Como descobriram que era cocaína? «A polícia tomou conta da ocorrência», declara o diretor de marketing do castelo, Lleyton Gough. O fait divers assenta como luva na vida de Marie de Say durante a Belle Époque. Após a morte do marido, em 1917, continua a abrir as portas do palácio para festas e encontros. Em 1930, volta a casar-se. O marido é um reconhecido playboy, Luís Fernando de Orleães, infante de Espanha, envolvido em escândalos de droga e contrabando (um deles na fronteira de Portugal), e 30 anos mais jovem do que a princesa e pouco mais velho do que os seus cinco filhos. Quando se casaram, ele tinha 43 anos. Ela, 73.

Marie Charlotte de Say morreu em 1943, em Paris, aos 86 anos, num pequeno apartamento. «Sem nada», diz Leighton Gough. O castelo tinha sido vendido ao Estado francês por 1,8 milhões de francos cinco anos antes. Parte do recheio está agora a ser recuperado. «Vamos adquirindo peças que encontramos», conta o diretor de marketing do castelo, visitado por 400 mil pessoas por ano.

Tours, cidade medieval e contemporânea
Reabilitação de um edifício dos anos 1960 que albergava a Escola de Belas Artes, por um lado; um novo espaço, por outro. É assim o Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, dos arquitetos portugueses Manuel e Francisco Aires Mateus, a sua primeira obra pública em França. O projeto foi um entre 92 a concurso em 2012, ficou concluído em outubro de 2016 e inaugurado pelo presidente de França, François Hollande, em março, já com uma distinção: ser um dos 40 finalistas do prémio de arquitetura europeia Mies van der Rohe. É uma nota de contemporaneidade numa cidade que está a rever o seu plano urbanístico. Por aqui, até o elétrico tem dedo de artista (desenhado por Daniel Buren) e atravessa a Rue Nationale, a mais importante, um troço da estrada nacional entre Bordéus-Paris.

Tours, onde se chega diretamente de avião do Porto, via Ryanair, ou uma hora, desde Paris, de comboio, até à gare de Tours, frente a frente com o centro de congressos que o Pritzker francês Jean Nouvel desenhou. «Só queriam pessoas, nada de mercadorias, porque não queria confusão», diz a professora Annick Sommer, mostrando a sua cidade. «Não somos stressados em Tours», conta. «Diz-se dos habitantes de Tours que não são muito vivos de espírito, mas são tão felizes que lhes perdoamos».

Foi por aqui, pelo sul, que a cidade, erguida entre os rios Loire e Cher, cresceu no século XIX. Foram-se as muralhas medievais, vieram os boulevards. Os celtas, a quem chamavam tourons/ turões (explicação sumária do nome da cidade), foram os primeiros a chegar. Estamos no século I e os romanos aparecem logo a seguir.

O rio Loire tem mais de mil quilómetros de extensão. É o mais longo de França.

A caminho da catedral, paragem no jardim para admirar a estátua de um dos filhos da cidade, Honoré de Balzac, que aqui viveu até aos 15 anos, voltando sempre que as dívidas apertavam. Pode ver-se a cidade com os seus livros abertos. Alguns passamse aqui. Junto ao Museu de Belas Artes, guardião de obras de Monet e Delacroix, fica antiga casa dos bispos. No jardim o cedro, a árvore mais antiga que se conhece por aqui. Vem de 1804.

As marcas medievais são visíveis. Nomes que evocam essa época, passagens estreitas e casas de ripas de madeira, com escadas construídas no exterior, em equilíbrio periclitante. «Restam umas 80», diz Annick Sommer, caminhando pela quase pedonal rue Colbert, «ideal para tomar um copo». Do outro lado da Rue Nationale, passando ao lado do Centro de Criação Cultural, chega-se ao Cartier Plumereau, cada vez mais perto da basílica em honra de São Martinho. Tours é uma cidade de 100 mil habitantes, 25 mil estudantes. À esquina, Annick chama a atenção para a loja fechada, com pesadas portadas castanhas escuras. É uma gelataria no verão. Era aqui que os monges acolhiam os peregrinos. A partir do século IV, a cidade atrai peregrinos de todas as partes da Europa, movidos pela fé em S. Martinho, o mártir que cortou metade da sua capa para dar ao mendigo e a quem Jesus apareceu em sonhos. Sobre o seu túmulo foi construída uma basílica que «era uma das maiores da Europa», segundo Annick. Pode ser encontrada seguindo o mapa, os guias, o gps ou os círculos prateados com um M que assinalam o caminho de São Martinho.


Guia de viagem

Onde: Vale do Loire
Moeda: euro
Fuso horário: GMT +1 Hora
Idioma: Francês
Quando ir: primavera e verão são os meses a marcar para conhecer esta região, apesar da maior afluência de turistas. As temperaturas são amenas, podendo haver lugar a chuva e alguns dias encobertos.

Ir
A TAP (flytap.pt) voa de Lisboa para Paris e do Porto para Tours, a partir de 28 euros. Da capital francesa pode viajar de comboio ou de automóvel até Tours.

Ficar
La Maison D’Á Côté Montlivault
Serve como base para descobrir a região. Combina o estilo do século XIX com a modernidade.
Restaurante com estrela Michelin
25 rue de Chambord, Montlivault
Quarto duplo a partir de 95 euros por noite com pequeno-almoço.
lamaisondacote.fr

Oceania L’Univers Tours
Charme, qualidade e um spa único para recuperar da viagem.
5 Boulevard Heurteloup
Quarto duplo a partir de 110 euros por noite com pequeno-almoço
oceaniahotels.com

Visitar
Reserva de Chambord: castelo e jardins
Castelo nacional, de dimensão comparável a Versalhes e Avignon. As suas escadas em dupla hélice lembram Leonardo Da Vinci.
Está aberto das 09h às 18h de 1 de abril a 31 de outubro.
Entrada: 13 euros; bilhete reduzido, 11 euros; grupos de mais de 20 pessoas, 11 euros; gratuita até aos 18 anos e para residentes de longa duração na Europa, entre os 18 e os 25 anos.

Castelo Real de Blois
Catarina de Médicis teve aqui o seu gabinete de curiosidades. Os domínios do castelo, que cresceu em distintas épocas, ocupavam parte do que é hoje a cidade de Blois. Aberto todos os dias, das 09h15 às 18h30, até às 19h nos meses de julho e agosto. Entrada: 10,50 euros; 5 euros (dos 6 aos 17 anos).

Fundação do Doute
Ponto de encontro da obra dos artistas como o francês Ben, mas também Yoko Ono, Nam June Paik, entre outros.
Aberta de quarta a domingo, das 14h às 18h30, entre abril e julho, e de terça a domingo, das 14h às 18h30, nos meses de julho a setembro.
Entrada: 7,5 euros; 3,50 euros (dos 6 aos 17 anos). Bilhete combinado com o Castelo de Blois: 14 euros; 6 euros (dos 6 aos 17 anos).

Castelo, parque e cavalariças de Chaumont
Nas cavalariças deste castelo nasceu a marca Hermés. Aqui viveu a extravagante herdeira que viveu com um playboy espanhol. O castelo é também um centro de artes e natureza, onde se mostra arte contemporânea e se faz um festival internacional de jardins – Jardin du siècle à venir.
Aberto das 10h às 19h.
Bilhete: 15 euros; 9,5 euros para estudantes até aos 18 anos; 5 euros (dos 6 aos 11 anos).

Centro de Criação Cultural Olivier Debré
Acolhe exposições temporárias de artistas vivos e também do pintor abstrato francês Olivier Debré.
Horário de verão (de 20 de maio a 15 de setembro): segunda-feira, das 14h às 19h; terça a domingo, das 11h30 às 19h. Até às 21h, à quinta-feira.
Bilhete: 6 euros; tarifa reduzida, 3 euros; gratuito até aos 18 anos.

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