Uma viagem ao domínio de Les Trois Vallées, nos Alpes franceses, para descobrir como tudo muda do verão para o inverno. E tanto para fazer, mesmo para quem não vai para as pistas.

Texto de Nuno Mota Gomes
Fotografia de Adelino Meireles, Global Imagens

Olivier Mainaz é guia e já explorou praticamente tudo o que nos rodeia. É a primeira vez que experimentamos a caminhada com raquetes e estamos a mais de 2300 metros de altitude. Tentamos acompanhar o seu ritmo. Vamos em fila, seguindo as pegadas uns dos outros e apoiando-nos com os batons. À nossa volta, a paisagem está coberta de branco. «Nasci e cresci aqui na região, os meus pais são de cá», conta-nos Olivier, 34 anos. Este é o seu ambiente. Apanha um plástico perdido e guarda-o no bolso. Enquanto subimos explica-nos onde estamos: «Val Thorens é o ski resort mais alto da Europa e, por isso, tem neve durante mais tempo, tem a época mais longa de todas as estâncias.» Assume como adora viver aqui, onde não falta nada: animação durante o inverno e tranquilidade no verão. Assim que chegamos ao ponto mais alto, tira a mochila das costas e serve-nos um chá – «cuidado, está a ferver». E ali ficamos, a ver as montanhas que nos rodeiam e os entusiastas a descerem pistas aos ziguezagues. Não é todos os dias.

Apesar de a caminhada com raquetes ser considerado desporto, a adaptação é fácil. Passamos a não enterrar os pés e a conseguir deslocar-nos sem escorregar. Permite sair das pistas e explorar zonas selvagens. Sim, não somos só nós que por ali andamos. Olivier aponta para umas pegadas de raposa. «Não é fácil avistá-las, mas se prestarmos atenção ao rasto… pode ser que tenhamos sorte», diz em tom de riso, acrescentando que é sobretudo durante a noite que se movimentam. Voltamos ao ponto de partida, com a sensação de que não podíamos ter começado melhor o dia.

DA VIDA RURAL AOS SKI RESORTS

Val Thorens não é qualquer lugar com neve, é diferente. Ninguém melhor para confirmá-lo do que Paul Maucheraud, ski manager do Club Med e instrutor da escola de esqui francesa desde 2001. «Não nasci aqui, mas vim muito pequeno. Como já cá estou há 30 anos, posso dizer que este é o meu resort», conta-nos sorridente. Quem não quer ter um resort? Revelamos-lhe como estamos ansiosos por explorar a área e por descer as pistas. E que também já não o fazemos há uns bons anos. «Isso não é um problema, em Val Thorens toda a gente pode aprender, desde o escalão iniciante até ao profissional.» Convida-nos para uma aula de snowboard, deixando claro um dos aspetos fundamentais para quem vem à neve – «a condição física é muito importante».

Quem já veio à neve sabe bem a vantagem de sair do hotel diretamente para as pistas. Essa é uma das mais-valias de quem fica no Club Med: desce-se do quarto para o ski room, onde todo o equipamento fica guardado num cacifo. Equipa-se a rigor, sem se esquecer do capacete – não é obrigatório, mas praticamente toda a gente passou a usá-lo depois do acidente do antigo campeão de Fórmula 1 Michael Schumacher, em 2013. É também ali à porta o ponto de encontro das aulas. Em Val Thorens os instrutores são todos certificados pela ESF, a maior escola de esqui francesa. «Para obtermos a licença, diria que são precisos uns cinco anos de formação», conta-nos Paul Maucheraud.

Está então na hora de experimentar snowboard pela primeira vez. Começamos por nos pôr em cima da prancha, mas sem prender as botas. Para sentir a dinâmica e aprender algumas regras de segurança. Depois apertamos um pé e deixamos o outro somente em cima da prancha, solto, pronto para se apoiar na neve sempre que for preciso parar. O próximo passo é deslizar num curto espaço, mas os instrutores vão aumentando a dificuldade. «Agora quero que deslizem e a seguir deem um salto», diz um deles. Vamos descendo, devagarinho, em direção à base das pistas, onde todas terminam e se encontram. Ainda não conseguimos travar sem recorrer ao pé de apoio e a tentação de arriscar vai aumentando. E as quedas também. Faz parte da aprendizagem.

Paul não deixou de se gabar de que vive «no melhor ski resort do mundo». Afinal, é o quinto ano consecutivo que a distinção é atribuída pelos World Travel Awards. A estância de Val Thorens integra um dos três vales que formam o maior domínio esquiável do mundo: Les Trois Valées, onde há cerca de 600 quilómetros de pistas, juntamente com as estâncias de Les Menuires e Saint Martin de Belleville. No inverno, os resorts enchem-se sobretudo com praticantes de esqui e snowboard. Depois vem o verão, quando há certas zonas das montanhas que parecem lunares, assim como outras em que tudo está verde. E há umas almas que por ali vivem.

No inverno, a região enche-se de turistas.
No verão, a paisagem é lunar e há umas
almas que ali vivem.

A história mostra-nos como a vida aqui nem sempre foi assim, com duas épocas a ritmos bem diferentes. Se recuarmos uns dois séculos, a commune de Saint Martin de Belleville era habitada por pouco mais de três mil pessoas. «Viviam com os animais, dependentes do que a terra dava, isolados do resto do país», explica-nos Marina Bouvard, guia do pequeno museu no centro desta vila. Acrescenta como as condições eram muito difíceis, assistindo-se ao longo das décadas a uma queda populacional: pela guerra que espalhava o medo e por quem partiu para cidades em busca de uma vida melhor. A eletricidade só surgiu nos anos 1950 – bastante mais tarde quando comparado com outras regiões – e o número de habitantes já tinha caído para pouco mais de mil.

Marina conta-nos como, nessa altura, o prefeito da commune avançou com a ideia de atrair o turismo. Precisavam de uma solução. E tudo começou com Les Menuires, a primeira estância de esqui a abrir, em 1964. Aos poucos, começaram a surgir oportunidades de trabalho e turistas em busca de experiências na neve. Seguiu-se Val Thorens, em 1973, e Saint Martin de Belleville, em 1983. No entanto, o momento mais impulsionador do sucesso da região da Saboia deve-se aos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992, com a cidade de Albertville – ali perto – a ser o centro do evento. «Para nós, em Les Trois Vallées, foi muito bom, porque em Les Menuires decorreram as provas de slalom masculino», acrescenta Marina, enquanto nos mostra fotografias das provas.

As excelentes condições, o espetáculo, os atletas profissionais e os jornalistas deram a visibilidade mundial que a região merecia. Tanto que, hoje, nas três estâncias de Les Trois Vallées contam-se mais de 50 mil camas de hotel e a maioria das pessoas trabalha no turismo durante o inverno. Na época baixa, o verão, quem ali permanece tem outra ocupação. E até outro trabalho.

Numa curta caminhada pelo centro da vila de Saint Martin, descobrimos uma loja com produtos regionais. Entramos curiosos com a quantidade de oferta nas prateleiras e nas vitrines. Quem nos atende é uma rapariga jovem. «Querem provar algum queijo?», pergunta-nos. Não tivemos tempo de responder. Começa a cortar umas lâminas de Beaufort. Diz que é tradicional da região da Saboia, proveniente do leite de vaca. Provamos, gostamos e dizemos que «sim» com a cabeça. Corta um pedaço maior, embrulha e oferece-nos. «É para dividirem», diz a sorrir. Tentamos pagar pelo queijo, mas não conseguimos. Há um rapaz na loja, a repor produtos, a achar piada à situação. São a cara um do outro. «Somos irmãos. A loja é da nossa família há mais de 30 anos.» Começou por ser dos pais e agora são Caroline e Jerôme que estão à frente da Au Coin des Producteurs (No Canto dos Produtores). «Já deram uma volta pela vila?», pergunta Caroline. Visitámos o museu. «A sério? O museu era a casa dos nossos avós. Se lerem a placa com o nome da rua, Rue de Margot, é o nome da minha avó.»

Val thorens é o ski resort mais alto da Europa.
E, por isso, tem a época mais longa de todas.

À medida que conduzimos para fora de Val Thorens, em busca da vida para além das estâncias, vamos sendo surpreendidos: a paisagem com tons diferentes, a simpatia de quem nos recebe e o conforto do que vem para a mesa. Uma das paragens foi no restaurante Chez Pépé Nicolas, também acessível pelas pistas. Quem está do outro lado da porta é Margot, com o mesmo nome da avó de Caroline e também muito sorridente. Põe-nos à vontade, escolhe uma mesa na sala envidraçada e de frente para a montanha. Nos vários cantos há fotografias antigas de família, utensílios que remetem para uma vida rural, cadeiras forradas com lã de ovelha. É um autêntico abrigo para fugir ao frio e o sítio ideal para provar comida tradicional das montanhas.

Uma tábua cheia de queijos chega à mesa. «São todos feitos aqui na quinta», diz Margot enquanto a pousa à nossa frente, com mais um cesto de pão. «Agora não conseguem ver nada por causa da neve, mas no verão temos uma quinta aqui fora, com animais. E fazemos tudo», acrescenta. Percebemos então que este é – também – um negócio de família: a quinta no verão e o restaurante no inverno. «Pépé Nicolas era o meu bisavô. Foi ele quem começou a quinta e o chalé, em 1957. Só mais tarde, em 1987, os meus pais e tios decidiram abrir um restaurante», começa por explicar. Apesar de tudo mudar de uma época do ano para a outra, a rotina das várias gerações desta família é a mesma. «Continuamos a tirar leite às vacas, fazer queijo, plantar batatas, criar galinhas, ovelhas, patos.» São os primos quem tomam conta da quinta. Margot e o pai estão com o restaurante e a loja. Aponta lá para fora e admite como no inverno é tudo muito diferente. «Olhamos à volta e temos este paraíso branco. E aqui estamos mesmo no meio de dois vales: Les Menuires à direita, Val Thorens à esquerda.» É para este que voltamos, com a barriga cheia e a certeza de que uma viagem à neve não são só pistas.

ESQUI, FESTA E LIMPA-NEVES

Regressamos à base, no Club Med, ainda a tempo de terminar o dia em grande. Desta vez com o equipamento de esqui, mas só há um problema:a última vez foi há mais de dez anos. Adelino Meireles, fotógrafo nesta reportagem, não deixa espaço para receios. Vai todos os anos à neve com a família e rapidamente recorda como se curva: «Se fizeres força com a perna direita, curvas para a esquerda; para curvar à direita, fazes força com a esquerda.» Dito assim, parece fácil. A sorte foi ainda saber travar, fazendo a cunha com os esquis. É como tudo, vem com prática e confiança. E assim fomos, ao ritmo do principiante, em direção à base das pistas. Por momentos, acreditei que iríamos ficar por ali na zona verde – a mais fácil. Adelino estava mortinho por apanhar as cadeirinhas e subir.

E foi isso mesmo que aconteceu. Sentados, lá de cima, vemos tudo: os hotéis, os pontinhos escuros a descerem pistas brancas, a paisagem rodeada por montanhas enormes. Quase a chegar ao topo, passamos por cima de um bar em festa. Assim que largamos as cadeiras, descemos até lá. O palco está cheio de gente. São sobretudo jovens e vieram à neve também por isto: dançar, beber, divertirem-se entre amigos. À volta, há outras dezenas de pessoas sentadas na encosta, a admirarem o pôr-do-sol e a ouvir música – dois ingredientes essenciais nas festas de qualquer parte do mundo. Também nós nos juntamos à multidão colorida, de copo na mão, com óculos de sol na cara. São os últimos cartuchos do dia. Arranjamos forma de furar, de chegar mais perto dos artistas. Há um DJ a lançar música eletrónica, um toca saxofone, outro tem o microfone e vai puxando por todos. Assim que o sol desaparece atrás das montanhas, a música é desligada. É tempo de toda a gente descer, uns mais aos ziguezagues do que outros. Apesar de as pistas fecharem, para outros é agora que começa o dia. Ou a noite. São vários os homens que diariamente conduzem máquinas limpa-neves montanha acima, montanha abaixo. Subimos com Guillaume e falamos numa troca de palavras em francês e em inglês. Mostra-se contente por nos ter ali com ele. Não é todas as noites que tem companhia. Aponta para o ecrã do aparelho que tem à sua frente e explica-nos: «Isto é um GPS e em tempo real aponta as zonas onde temos de passar, onde há neve a mais ou a menos.» Passamos duas horas a abrir uma pista, a fazer montes nas laterais, a alisar, a refazer, a alargar. Guillaume volta a deixar-nos na base das máquinas, mas ainda tem umas horas pela frente. Há muito trabalho. Agora sozinho, ao som da rádio. É só mais uma noite. Todos os dias.


À CONVERSA COM O DIRETOR DO CLUB MED

«Este resort abriu em 2013. Antes disso, o Club Med estava noutro edifício ali em frente.» Quem o diz é Francis de Lacoste, o diretor do Club Med de Val Thorens apenas há um mês, vindo diretamente das ilhas Turks e Caicos, nas Caraíbas – «lá estavam 35 ºC, mas eu adoro estar aqui nos Alpes. É como um sonho concretizado». O primeiro resort do Club Med para o qual trabalhou foi no Japão, onde era instrutor de esqui. Conta-nos como a filosofia de quem trabalha nesta cadeia de hotéis é de que «toda a gente faz um pouco de tudo». E não é por isso estranho ver o diretor de manhã a receber os clientes no pequeno-almoço e à noite a participar nos espetáculos de animação. Animação não falta, num resort com capacidade para receber cerca de 750 hóspedes. Francis deixa uma dica: «Para quem não pratica esqui e snowboard, há sempre algo interessante para fazer. A paisagem transmite muita tranquilidade.


GUIA VAL THORENS

Documentos: Cartão de cidadão
Moeda: euro
Fuso horário: GMT +1
Idioma: Francês
Ir: De Portugal o mais fácil é voar para Lyon ou Genebra, na Suíça. A partir daí são duas a três horas a conduzir, a última delas montanha acima.
Quando ir: Por estar a 2300 metros de altitude, Val Thorens tem uma das mais longas temporadas de neve da Europa, geralmente de início de dezembro até maio.

FICAR
Club Med Val Thorens Sensations
Com 268 quartos, o Club Med é quase uma aldeia (um village na terminologia do Club Med) dentro de Val Thorens. Instalado no centro da estância e a poucos metros dos meios mecânicos, o hotel classificado com quatro tridentes (a classificação própria do Club Med) tem tudo para tornar uma estada o mais confortável possível. Regime de tudo incluído, refeições, bebidas e snacks todo o dia, acesso direto às pistas, sala de cacifos para o material, equipamento (esquis ou prancha de snowboard, botas e capacete), passe para os meios mecânicos, aulas com monitores da Escola de Esqui de França e animação quase todo o dia.
Sete noites de alojamento Tudo Incluído desde 1.190 euros por pessoa em quarto duplo.
clubmed.pt

COMER
Chez Pépé Nicolas

A cozinha da região de Saboia está aqui bem representada, em plena montanha, entre Val Thorens e Les Menuires. No verão há vacas, produção de queijo, mas por agora a atenção da família herdeira de Pépé Nicolas está concentrada no restaurante. Da cozinha do chef Martial Vuillemin saem pratos tradicionais com uma apresentação contemporânea. Entre os mais pedidos está o Pot-au-feu acompanhado de osso com tutano e gelado de mostarda. O acesso pode ser feito de esquis ou por carro. Fica na estrada entre Les Menuires e Val Thorens.
St. Martin de Belleville
Tel.: +33 6 09 45 28 35
chezpepenicolas.com

Epicurious
O restaurante gastronómico do hotel Club Med, ao contrário do buffet principal, tem serviço de mesa. A escolha de pratos é bem mais reduzida, mas mais cuidada e varia entre opções de cozinha tradicional de montanha e outras mais internacionais. Tem serviço de almoço e jantar, mas à noite é necessário reserva prévia, uma vez que a lotação é muito menor.

La Folie Douce
As maiores festas de fim de tarde, a partir das três da tarde, acontecem aqui. Cuidado porque no final vai ser preciso manter o equilíbrio para esquiar de regresso. A fama está espalhada pelos Alpes em oito outras doces folias que são ponto central de animação de várias estâncias.
Piste Plein Sud, Val Thorens
Tel.: +33 4 79 00 04 27

Les Aiguilles de Péclet
O acesso é feito pelo teleférico de Péclet e por isso mesmo quem não pratique esqui pode aqui chegar facilmente. O interior é muito acolhedor, mas se estiver sol o melhor é ficar na esplanada e aproveitar a vista da montanha, a três mil metros de altitude. Tem serviço de self-service com boas saladas, hambúrgueres e massas.
Tel.: +33 4 79 00 03 76

COMPRAR
Au Coin des Producteurs
A pequena loja, agora nas mãos dos irmãos Jerôme e Caroline Rey, é uma herança familiar bem preservada. Abre as portas apenas no inverno, quando a pequena vila de St. Martin se enche de esquiadores. Vende uma seleção de vinhos, queijos, enchidos, mel e outros produtos da região e por encomenda pode levar kits de raclette e fondue.
Rue Saint Martin, Saint Martin-de-Belleville

La Belle en Cuisse
A montra de queijos meticulosamente arrumados chama quem passa na principal rua de comércio de Val Thorens. Lá dentro o cheiro é intenso, até porque a maioria dos produtos são cortados e embalados apenas à medida dos pedidos dos clientes, muitos deles frequentes, a avaliar pelo modo como falam com quem os atende.
Rue de Caron, Val Thorens

VISITAR
Museu de Saint Martin

O pequeno museu da vila é uma simpática surpresa. Em três pisos dá a conhecer a dureza da vida nas montanhas e como tudo muda do verão para o inverno. Mas a maior mudança que se fica a conhecer é a que chegou, a partir dos anos 1960, com a abertura das estâncias de ski.
Place de l’Eglise, Saint-Martin-de-Belleville
Aberto: até 22 de abril 2019
Entrada: 3 euros


AGRADECIMENTOS
A Volta ao Mundo agradece ao Clube Med, à Agência Abreu e ao EL Corte Inglés que vestiu a equipa com roupa da marca MOUNTAIN PRO.


Reportagem publicada na edição de fevereiro de 2019 da revista Volta ao Mundo (nº292)

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.