Além dos clássicos da capital francesa há outros lugares para descobrir no norte da cidade, em zonas como Barbès/Goutte d’Or e Belleville. No bairro que está na moda, SoPi (ou Sul de Pigalle), há novos espaços culturais para conhecer e bons restaurantes a experimentar. Estão reunidos os ingredientes para uma escapadinha parisiense alternativa e saborosa.
Texto de Teresa Frederico
O que passou passou. Há que pensar no futuro», diz em francês o dono do pequeno bar à jovem parisiense que veio beber café e pôr, demoradamente, a conversa em dia. Meia hora antes tinha conversado em árabe com outro cliente e também amigo, a avaliar pelo forte abraço.
Faz-se vida de bairro nesta perpendicular do Boulevard Barbès e nas várias línguas que integram a sua multiculturalidade, desde logo evidente pelas lojas de produtos de vários cantos de África. Só não se ouve inglês, alemão ou outros idiomas falados por turistas, nem mesmo português, como é comum acontecer em qualquer visita a Paris.
O dono do café terá a sua razão, há que pensar no futuro e o desta área do arrondissement 18 (uma das vinte áreas administrativas em que se divide a capital francesa), antes mal-afamada, passará certamente por acolher mais espaços como a Brasserie Barbès, lugar na moda frequentado por qualquer bobo que se preze – ou bourgeois-bohème, quase traduzível por «esquerda caviar». Inaugurou-se em 2015 e é considerada um pré-anúncio da gentrificação que há de impor-se.
Para já veem-se pouquíssimos turistas pelas ruas, alguns a caminho do quatro estrelas The Playce Hotel, uma novidade no Boulevard Barbès (abriu a meio de 2018). «Menos é mais» é o mote da meia centena de quartos, práticos e coloridos, enquanto fotografias nos corredores dos vários andares recordam filmes a preto e branco protagonizados por Alain Delon, um dos mais reconhecidos atores europeus (e cobiçado sex symbol) nos anos 1960, entre outros. No piso térreo, um par de máquinas arcade e matraquilhos, por aqui bastante comuns, estão à disposição no bar, que serve cocktails e bebidas de marcas locais, como o gin Lord of Barbès e a cerveja Goutte d’Or.
A emergente Goutte d’Or
Uma das vantagens de ficar alojado nesta zona é que basta caminhar um par de ruas para viajar entre mundos completamente distintos: o charmoso bairro de Montmartre, há muito turístico, fica ao virar da esquina (de alguns quartos do hotel consegue mesmo espreitar-se a cúpula da Basílica de Sacré Coeur); o ainda pouco conhecido bairro Goutte d’Or também. Com um nome que remete para o vinho branco aqui produzido até ao século XIX, em tempos habitado pelos operários que construíram a vizinha Gare du Nord e com um historial recente de pobreza e delinquência, o bairro tem vindo a mudar (embora ainda seja preferível visitá-lo durante o dia) graças a entidades como Les Gouttes d’Or de la Mode et du Design.
Trata-se de uma cooperativa e associação que apoia artesãos que não falam francês e promove criadores estabelecidos na zona. Encomendas de fatos para espetáculos da Ópera de Paris e participação na Paris Design Week são provas do sucesso do projeto, tão abrangente que envolve desde ateliês onde um vestido feito por medida ronda os 30 euros a uma marca de malas que podem custar mais de um milhar; do vestuário respeitador da Beard & Fringe, que só usa materiais naturais vegan e sem pesticidas, entre outros requisitos amigos do ambiente e dos trabalhadores, à bijutaria totalmente feita à mão, em edições limitadas, pela tunisina Amira Sliman, ex-designer industrial radicada em França há décadas.
Uma das propostas mais curiosas é a de Márcia de Carvalho, brasileira de São Paulo estabelecida no bairro há 16 anos: perante as peúgas sem par dos seus filhos, que não queria deitar fora para não poluir, decidiu desfazê-las e usar a lã/linha para criar novas peças usando a sua experiência como designer de moda em malha. Nasceu então a Chaussettes Orphelines, pela qual até já foi distinguida com a Ordem Nacional de Mérito. Hoje recebe doações de peúgas de todo o país que são transformadas em fio cinzento ou cru e acrescenta-lhe a sua criatividade para fazer novas meias mas também gorros, sacos, casacos, à venda na loja da Rue des Gardes e online. Paralelamente promove workshops de croché e tricô para mulheres num centro de acolhimento temporário e ações pedagógicas com as crianças do bairro, num projeto de moda ética e solidária que dá mesmo gosto conhecer.
Outra experiência reconfortante é almoçar no Chien de la Lune, pequenino e muito acolhedor restaurante, pelo atendimento e pela decoração, com peças únicas criadas pela designer Catherine Mégevand que podem ser adquiridas por encomenda. O chef é o marido, Christian, que se estreou nestas lides há apenas dois anos e tem conquistado a clientela – local e um turista ou outro que fica em Airbnb da zona – com os seus pratos que recriam os tradicionais. Tudo aqui tem um toque pessoal, a começar pelo nome do restaurante, o título de um livro infantil que lia à filha, hoje adulta.
SoPi, o bairro fashion
Colado ao dix-huitième, o arrondissement 9 inclui Pigalle, onde fica situado um dos mais conhecidos cabarés do mundo, o Moulin Rouge. Em tempos uma zona repleta de sex shops, espetáculos para adultos e bares com prostituição, a área a sul da Place Pigalle começou a mudar vai para uma década e foi ganhando fama como lugar na moda há meia dúzia de anos. Passou a ser conhecida como SoPi, ou South Pigalle, num acrónimo que remete para o SoHo, certamente criado por jornalistas anglo-saxónicos, e tornou-se mais um destino bobo de Paris. Sempre atraiu turistas e agora atrai mais ainda, com a diferença que os novos visitantes, em geral, procuram os prazeres da carne numa perspetiva gastronómica.
Nem tudo mudou, ainda existem por aqui bars à filles, ou bares de meninas, numa definição ligeira do que possa passar-se entre aquelas paredes. Também a Rue de Douai continua a ser uma espécie de paraíso para os músicos graças às suas muitas lojas de instrumentos – e isso faz lembrar que esta zona era outrora frequentada por muitos artistas.
O compositor húngaro Franz Lizt foi um dos que por aqui passaram mas também o pintor Eugène Delacroix, ou os escritores Victor Hugo ou Alexandre Dumas. Este último residiria (e daria festas de arromba) na Square d’Orléans, condomínio com vários edifícios e pequenos jardins, uma das mais belas construções deste bairro conhecido como Nouvelle Athènes pela sua arquitetura neoclássica. Também acolheu Frédéric Chopin, George Sand e outras personalidades que marcaram a história das artes.
Descobrir a zona passa por ir ao Musée de la Vie Romantique, e beber um chá no relaxante jardim, e à Pousada de Juventude na Rue de la Tour des Dames, igualmente instalada num edifício histórico e com uma receção tão espantosa que vale a pena inventar um pedido de informações só para a espreitar.
Muitas outras fachadas escondem segredos antigos, como a do número 9 da Rue de Navarin, em tempos um bordel especializado em sadomasoquismo. Ao lado fica o reputado hotel-boutique Amour, outro espaço bobo que, apesar de já existir há mais de uma década, continua a ser uma referência quer como unidade hoteleira quer pelo restaurante, com um jardinzinho exótico. Hoje tem a concorrência de hotéis recentes como o Grand Pigalle, cujas varandas dão para a Villa Frochot, onde viveu o pintor Toulouse-Lautrec, e outros hão de certamente inaugurar-se nos próximos tempos neste bairro cada vez mais famoso.
Não faltam também restaurantes concorridos, com fila à porta, como é o caso da trattoria Pink Mamma, inaugurada há dois anos. Os preços são acessíveis, a decoração é diferente em cada um dos quatro pisos, e alguns são especialmente bonitos, assim como o bar No Entry, na cave. Proibida está a entrada a quem não vê na carne um prazer pois ir beber um copo implica passar por arcas frigoríficas com costeletas expostas.
Belleville e a sua street art
No noroeste da cidade, Belleville é um bairro popular do vingtième que começou por receber franceses de zonas rurais em busca de melhores condições de vida, depois população proveniente de ex-colónias no norte de África e da Ásia. Hoje continua a ser baratinho e isso explica que muitos artistas aqui residam e tenham os seus ateliês – por sinal visitáveis no final de maio, na iniciativa Portes Ouvertes da associação Ateliers d’Artistes de Belleville, que reúne mais de 250 artistas e coletivos dedicados às artes visuais.
É também um dos polos da street art parisiense, que convém descobrir numa visita guiada para melhor compreender as obras e as histórias por detrás delas, e saber de como são roubadas, acabando à venda no mercado negro, o que faz que os artistas usem cada vez mais materiais mais frágeis.
Algumas são do tamanho de um prédio inteiro e da autoria de um artista multifacetado como Ben (melhor dizendo, o Senhor Benjamin Vautier, nascido em 1935), que desde 1993 alerta «il faut se méfier des mots» (é preciso desconfiar das palavras) na Place Fréhel. Outras ilustram proteções de lojas, como os trabalhos de Ernesto Novo, por exemplo, que homenageia a etnóloga Gemaine Tillion, mas a maioria surpreende num recanto inesperado, como o lobo colorido de Selor, pintado com pincel porque é alérgico à bomba de spray; as «invasões» de Invaders, recentemente com uma exposição em nome próprio em Los Angeles; ou as faces em relevo de Gregos, moldadas na sua própria cara, que expressam emoções um pouco por todo o lado, desde a fachada de uma loja Cartier às colunas no topo do amplo Parque de Belleville, com vista desafogada sobre Paris, Torre Eiffel incluída. E, finalmente, nesta visita alternativa, vislumbra-se o principal ícone da cidade.
Outro ícone continua a ser mimado por fãs vindos de todo o mundo no Cimetière du Père-Lachaise, não muito distante. Há flores ainda frescas e velas sobre a campa, sinais de que há quem trepe a vedação para chegar ao lugar onde o músico Jim Morrisson, falecido com 27 anos, repousa desde 1971. O cemitério é enorme, convém ter o mapa para encontrar o túmulo – tal como os de Balzac, Chopin, La Fontaine, Molière, Edith Piaf, Oscar Wilde e outros vultos aqui sepultados – mas há sempre visitantes que o procuram por isso quase basta segui-los. Carinho semelhante, com flores e mensagens, só tem Susan Garrigues, vítima aos 21 anos do atentado no Bataclan numa fatídica noite de 2015.
Comedores de batatas – e outros pratos
Tal como a mostra anterior, dedicada a Klimt, a exposição imersiva Noite Estrelada promete ser um sucesso: as telas do génio Vincent van Gogh surgem projetadas em paredes com dez metros de altura, as de uma fundição do século XIX que, há um ano, deu lugar ao Atelier des Lumières, no 11ème, relativamente perto do Père-Lachaise.
Reproduzindo a pintura que lhe dá nome, o mais célebre Autorretrato e Comedores de Batatas, entre muitas outras, as imagens agigantam-se, movem-se, numa espécie de bailado vertical, ao som de uma banda sonora criada à medida, enquanto os visitantes deambulam pelo amplo espaço. É uma boa experiência, esta, muito mais do que apenas (re)ver a obra de grandes artistas mundiais, e a do mestre holandês continuará em exibição até ao final do ano.
Bem mais curtas são as exposições no novo espaço da Fondation Henri Cartier-Bresson, há uns meses transferida para o 3ème, não longe do Atelier e a dois passos da Place de la Republique. É lugar de romaria para amantes de fotografia, especialmente agora que apresenta uma exposição do próprio Cartier-Bresson, ainda considerado um dos melhores fotógrafos de sempre. En France 1926-1938 – portanto com imagens captadas antes de ter cofundado a famosa agência Magnum – decorre só até ao início de junho de 2019.
Justifica um saltinho ao centro, tal como uma refeição no Les Résistants, projeto gastronómico criado por três amigos de infância, dos quais o chef Clément, e alimentado por cerca de 250 produtores de toda a França. São estes os resistentes, gente que começou a praticar agricultura biológica há décadas, que respeita o bem-estar animal e os ciclos naturais, que cria os bichos ao ar livre e durante, pelo menos, três vezes mais tempo do que a indústria agroalimentar. Por isso surgem em destaque no menu, são as estrelas por detrás do que chega à mesa, simples, esteticamente atraente, saboroso e a preços acessíveis.
É um facto, come-se bastante bem e gastando pouco na segunda cidade com mais estrelas Michelin no mundo. Até no centenário e famosíssimo Bouillon Chartier que, apesar de quase parecer uma fábrica de comida, tal é o ritmo de parisienses e estrangeiros sempre a chegar e a partir da belíssima sala, tem afinal um serviço impecável e pratos tradicionais gostosos, a uma média de apenas dez euros.
Os preços são outros no restaurante do Terrass Hotel, em Montmartre, mas não excessivos e justificados pela refeição em si, com elegantes reinterpretações da gastronomia francesa assinadas por Eric Lurthy, quer pelo espaço, no topo de um edifício de 1911 por onde passaram Dalí, Matisse, Renoir e a eterna Edith Piaf. Hão de ter apreciado a vista e, lá ao fundo, a Torre Eiffel, que agora se ilumina de hora a hora num pequeno espetáculo colorido. Vê-se melhor do bar no terraço.
Ainda em Montmartre mas a poucos passos do Boulevard Barbès, o bistrot Atelier Ramey é uma última descoberta de fazer crescer a água na boca. Pequenino, pacato, com uma apetitosa ementa à base de produtos frescos da estação, é ainda pouco frequentado por estrangeiros mas não deve faltar muito para fazer parte dos roteiros.
Por enquanto, encerra na perfeição esta escapadinha a uma Paris que se rejuvenesce na multiculturalidade, na gastronomia e na arte, mantendo a alma boémia, chique e decadente que inspirou e continua a inspirar as mentes inquietas e as veias criativas.
Guia de viagem
Como chegar
A Transavia voa de Lisboa, Porto, Faro e Funchal para Paris Orly. A ida e volta pode custar cerca de 100 €, dependendo da antecedência da reserva.
Ir e passear
Para chegar a Barbès o melhor é usar o Orlybus (8,30 €) e depois a linha 4 do Metro até Château Rouge (1,90 €). Para as deslocações é conveniente comprar o passe Paris Visite, que custa desde 13,20 € (um dia).
Onde comer
Atelier Ramey
23 Rue Ramey
atelier-ramey.com
Bouillon Chartier
7 rue du Faubourg Montmartre
bouillon-chartier.com
Le Chien de la Lune
22 Rue de Jessaint
restaurantlechiendelalune.fr
Les Résistants
16-18 rue du Château d’Eau
lesresistants.fr
Pink Mamma
20 bis rue de Douai
bigmammagroup.com
Restaurant Terrass Hotel
12-14 Rue Joseph de Maistre
terrass-hotel.com
Pastelaria Sébastien Gaudard
22, rue des Martyrs
sebastiengaudard.com
Onde ficar
The Playce
Diárias em quarto duplo rondam 110 € mas podem custar cerca de 80 € em época baixa.
66 Boulevard Barbès
playce-hotel.com
Comprar
A lista de aderentes da associação Les Gouttes d’Or de la Mode et du Design está disponível em madeingouttedor.paris
Visitar
Le Vrai Paris
levraiparis.com
My Urban Experience
myurbanexperience.com
Atelier des Lumières
38 rue Saint-Maur
atelier-lumieres.com
Fondation Henri Cartier-Bresson
79 rue des Archives
henricartierbresson.org
Chez les Libraires Associés
3 rue Pierre l’Ermite
chezleslibrairesassocies.blogspot.com
>> Mais informações em parisinfo.com
Agradecimentos
A Volta ao Mundo viajou a convite do Office de Turisme et des Congrès de Paris e com o apoio da Transavia.
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