Yangon, a cidade gentil
Com um regime democrático recém‑nascido, depois de décadas de colonização britânica e ditadura militar, a Birmânia é um caso raro de autenticidade e explosão de modernidade. Impossível fintar o dourado dos pagodes, os cheiros intensos do Oriente, o brilho das pedras preciosas e o verde da natureza que se alimenta da humidade, garantindo espaço no meio de uma urbanidade crescente. Quem lá vai traz da antiga capital, Yangon, a gentileza genuína de um povo ainda fascinado pelo estrangeiro.
Texto de Isabel Nery
Fotografias de João Carvalho Pina
Mais do que uma viagem, Yangon é uma travessia. Podemos começar pelo olhar de primeira vez perante os homens vestidos de longyi (saia tradicional fechada com um nó à cintura) a conduzirem mais com a buzina do que com o volante (à direita) e a cuspirem o suco vermelho‑vivo do betel, que tinge os dentes. Ou trocando os guias de turismo por George Orwell, num dos seus maiores romances, Dias da Birmânia. Com ele, entramos na República da União de Myanmar, oficialmente, pela porta dos sentidos. Da humidade que ensopa tudo, «até que nem as roupas, nem as camas nem mesmo a comida parecia alguma vez secar». Mas mais ainda, dos cheiros: «Isto era o Oriente. Cheira a óleo de coco e a madeira de sândalo, canela e açafrão, a flutuar no ar quente.» E como a literatura gosta de trilogias, atrevemo-nos ainda a um outro começo: o da entrada romântica sempre garantida por um comboio.
Deixamos o ponto de partida ao critério do leitor. Ser viajante, e não apenas turista, significa tomar decisões. Chegados ao aeroporto de Yangon, via Dubai, depois de mais de 16 horas de voos, na melhor das hipóteses, o mínimo que se pode exigir é liberdade de escolha.
Nós partimos pela Circle Line, a linha de comboio que dá a volta à cidade mais populosa do país, bilhete garantido para os verdadeiros cheiros e gentes birmaneses durante as três horas do percurso. Não que seja um longo trajeto, mas a uma velocidade de pouco mais de dez à hora, com paragens constantes em qualquer aglomerado de habitações, não se pode exigir muito mais. Bom para sentir a mescla dos frutos vendidos dentro das próprias carruagens, os fritos, o milho cozido, as espetadas de frango e o arroz em saquinhos, muitas vezes confecionado nas múltiplas estações.
A velocidade risível é um convite a fotografar este Oriente – dentro e fora do comboio. Dentro vão turistas (poucos), trabalhadores, crianças e monges nas suas vestes vermelho-sangue (os homens) ou rosa (as mulheres). Fora passam os prédios galinheiros, as habitações feitas de chapa e de bambu, os pântanos alimentados pela época das monções, que começou em junho e vai até setembro, o lixo que flutua em tudo o que é charco, as famílias a cruzarem a linha do comboio como se fosse uma estrada com ligação direta aos portões dos seus quintais. Em contraste com os prédios novos e luxuosos que começam a povoar a cidade.
O comboio para nos principais pontos da anterior capital, substituída por Neipiedó em 2006. Entrando nele, por apenas seis cêntimos, fazemos uma primeira paragem no mercado de Bogoyoke, ligado por uma ponte pedonal ao novíssimo e luxuoso centro comercial, numa convivência já dificilmente encontrada no Ocidente. É preciso optar. O novo tem marcas, ar condicionado, produtos importados e luz elétrica garantida por geradores. O antigo fica às escuras depois dos apagões, como nos aconteceu.
Escolhemos o mercado da verdade birmanesa. Antes mesmo de entrarmos temos à disposição frutos de ar agressivo, como o durião ou jambutão, cocos, peixe em sal, amendoins fritos e malaguetas. Apetece dizer para fechar os olhos e tentar identificar o tanto que por ali se revela pelo olfato. Mas é arriscado. Os passeios da cidade são uma armadilha, ora pelos buracos capazes de engolir pessoas ora pelo piso escorregadio do musgo atraído pela humidade constante.
A maior parte dos birmaneses não saem de casa sem chapéu-de-chuva. Ora para se protegerem das monções ora do sol.
No interior, vem nos à memória o Grande Bazar turco, ainda que mais organizado. Impera a cor – das sedas, do linho e do algodão –, o brilho – do ouro, do jade, rubis e quase todas as gemas que se desejem. A Birmânia é um dos países mais ricos em pedras preciosas, nomeadamente os rubis encontrados a norte de Mandalay, considerados dos melhores do mundo. Regressaremos às preciosidades minerais. Por agora, quero ainda ficar pelo império dos sentidos.
Este não é um mercado apenas de produtos, é também do povo birmanês. Regatear até baixar 25% o preço inicial é considerado normal. Ao contrário do que pode acontecer com insistentes de outras geografias, os birmaneses desistem rapidamente se o negócio não lhes interessa. Mas até no regateio são gentis. Mesmo abandonando a barganha, despedem se com um sorriso.
Por trás dos balcões há mulheres e homens a costurar as túnicas e longys, raparigas a tagarelar enquanto cosem pedras e brocados aos tecidos coloridos disponíveis a metro, e a preços apetecíveis. Na mala de viagem poderá ter de fazer se espaço para elefantes de madeira maciça, telas pintadas com paisagens de arrozais ou cães de pasta de papel colorida.
Os cães são, aliás, um tema na Birmânia. E não apenas no artesanato. Antes de partir, recebi uma espécie de aviso: não estranhes se os cães te parecerem todos iguais. Será exagero, mas não completamente mentira. De focinho afilado, orelhas bicudas e pelo acastanhado, é fácil termos a sensação de que estamos sempre a cruzar nos com o mesmo animal vadio – e eles são uma constante. Ironicamente, num país onde se vive com um salário mínimo a rondar os cinquenta euros, não é raro cruzarmo-nos com cães de raça (esses sim, diferentes) transportados ao colo – para os proteger do contacto com os animais de rua.
Saímos do mercado, mas o mar de gente continua. Gente e comida. Improvisam se esplanadas em todos os pedaços de passeio com mesas e cadeiras plásticas de tamanho infantil. Acotovelam se – a impressão é a de haver mais vendedores do que consumidores – nas ruas adjacentes às grandes avenidas, onde não será estranho ver um ou outro galo a tentar fintar os carros que entopem a cidade. Qualquer banquinho de plástico serve para albergar uma fritadeira que cozinha chamuças, espetadas de camarão, galinha – ou grilo.
Voltar a apanhar o comboio, em direção à Pansodan St, é demasiado tentador. Antes da subida até à rua que mistura o bulício asiático com lojas modernas e restaurantes trendy, podemos passar pela estação central. Por fora é fácil toma la por abandonada, tal a invasão de musgo das paredes frontais, mas lá dentro é viva e movimentada. Construída no período colonial, no século XIX, foi depois refeita ao estilo birmanês.
Daqui chegamos facilmente a outro símbolo do período colonial, o Strand Hotel, edifício do início do século passado, acabado de renovar. Depois de novo emaranhado de ruas e caóticos vendedores ambulantes, desembocamos numa das praças mais curiosas da cidade, por concentrar nela o edifício da câmara municipal e prédios vermelho vivo, a fazerem face a modernos edifícios espelhados. Tempo e lugar certo para folhear a edição inglesa de Dias na Birmânia, que acabo de comprar, orgulhosamente, numa banca de rua por três euros. Ou de me castigar por não ter feito o mesmo com Matar Um Elefante, vendido por igual pechincha.
Ao final da tarde, os jovens fazem do Maha Bandula Park ponto de encontro. Vemos o dia cair sobre o monumento à independência do colonizador britânico, a partilhar atenções com os malabarismos de break dance, numa imagem invulgar para um país ainda tradicional nos costumes.
A maior parte dos homens ainda vestem o tradicional longyi (espécie de saia com um nó na cintura). O vestuário tradicional continua a ser usado pela maioria dos birmaneses e pode ser comprado no mercado
Tradicional ao ponto de ficarmos curiosos com o adereço obrigatório – chapéu-de-chuva, mesmo quando não chove – dos namorados no People’s Park, o maior e mais conhecido da cidade. Resguarda beijos, proibidos em público, e parece aceite por todos na sua função de proteção de costumes.
Demoro‑me no verde, sempre exuberante, e no cheiro floral dos muitos espaços de lazer do parque antes de seguir para o mais celebrado monumento da cidade, o Pagode de Shwedagon, onde tudo é em exagero.
Mesmo que não quisesse confirmar os cem metros até ao pináculo do templo, cuja lenda o edifica ainda antes de Cristo, a partir de cabelos do Buda, oferecidos como relicário, o pico que rasga os céus vê-se de quase todos os pontos da cidade.
Para visitar o local de culto, enriquecido com 3 154 sinos de ouro, 79 569 diamantes e pedras preciosas, obrigam nos a deixar os sapatos à entrada. Mesmo a chover, como era o caso, ou na casa de banho. Chega se por várias entradas. A que nos calhou, a norte, oferece escadas rolantes, depois da passagem pelos tradicionais leões míticos. Perante os expositores repletos de budas, caixas, incensos, flores e brinquedos de plástico, escada acima, não consigo evitar o paralelo com centros comerciais.
Mas, uma vez no topo, regressa a experiência dos sentidos. Se a variedade decorativa for sinónimo de liberdade, então esta é a religião mais tolerante que conheço. São vários, e todos diferentes – com madeira, vidro, azulejo, espelhados, leds, plástico – os compartimentos de oração. E é igualmente variada a forma de viver o local, procurado por budistas de todo o mundo. Uns caminham em passeio, de mão dada, outros participam nos cânticos ou lavam os pés das imagens de Buda junto ao dia da semana em que nasceram. Coroados com colares de jasmins, vendidos por crianças em toda a cidade, ofertados com cestas de fruta e ramos de flores, quem se dedica assim espera desejos cumpridos em troca da devoção.
A experiência é única a qualquer hora do dia. Mas, podendo, deve sentir Shwedagon ao pôr-do-sol, quando se reduzem os visitantes, se aquietam os homens, e até sossega o grasnar dos corvos. Sentar se no chão, frente a um dos altares, fechar os olhos, deixar se embalar pelas orações repetidas de causa efeito e entregar a mente é uma experiência a procurar. Até porque, quando regressar encontrará o céu já escuro. Iluminado pelo ouro do pagode. O resto pode esperar. Nada mais fará falta nesse dia.
Tempo talvez apenas para um jantar exótico nas ruas agitadas da Chinatown birmanesa, onde também haverá pequenos altares budistas pendurados nas árvores. Os mais ousados podem aventurar se nos insetos fritos, regados com cerveja Myanmar, de travo entre a pesada congénere alemã e a frutada belga, ou até uma Coca-Cola, «prowdly produced in Myanmar», e o mesmo é dizer, ainda mais doce do que na Europa.
Depois da orgia de cheiros e cores pelas ruas de Yangon, vejo me capaz de paragens mais cerebrais do que sensoriais. Quem tiver a sorte de planear uma estada durante o Dia dos Mártires, a 19 de julho, encontrará no Mausoléu uma das datas mais celebradas do país, em respeito às nove vítimas de 1947, entre elas o pai da atual primeira-ministra, o general Aung San, assassinado durante a luta pela independência do Reino Unido. O dia é vivido num misto de culto e homenagem.
Apesar da péssima iluminação e da má disposição de muitas peças, o National Museum deve constar do programa de viagem. Não só porque nele se encontra o único dos oito tronos de ouro que havia no país (todos os outros foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial), mas também porque os cinco andares do museu são uma exposição variada e significativa de uma cultura que se afasta orgulhosamente da ocidental. De pintura a cabeças de elefante, passando por maquetas das antigas cidades, até às marionetas de madeira e à história do vestuário típico, encontramos aqui uma montra da cultura birmanesa.
O trono de ouro, logo no primeiro andar, servia para sentar o rei durante as suas decisões judiciais, tomadas do cimo de uma escada dourada onde se posicionava a imponente cadeira, bem acima das crianças (ou homenzinhos) nuas que povoam a base.
Na época das monções, de junho a setembro, a chuva é uma constante. Mas nada que impeça os habitantes de Yangon de manterem as suas rotinas.
Inspirados pela rota das preciosidades, o Museu das Gemas, com rubis, safiras, jade, topázios e pérolas, tanto em exposição como à venda nos cerca de cem balcões que se espalham pelos três andares do edifício, é experiência a exigir algumas horas.
Se ainda faltar ver – ou sentir – algo de Yangon, há sempre um dos comboios da Circle Line à disposição. Com saída onde bem apetecer. Afinal, as únicas palavras de Orwell que começam a desatualizar se, mais de oitenta anos depois, são as que descreviam um território que nem ousava imaginar a sensação de liberdade: «És livre de ser um bêbado, um preguiçoso, um cobarde, um detrator, um fornicador, mas não és livre de pensar por ti próprio.»
Era assim sob o jugo colonizador. Foi assim sob o jugo militar. Começa agora a deixar de sê-lo, depois de Htin Kyaw ter sido democraticamente eleito presidente, em 2016, e Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da Paz, ter ocupado cargo equivalente ao de primeira-ministra.
A verdade deste povo gentil parece ter sobrevivido a décadas de opressão. Só por isso vale a pena conhecê-lo.
Guia de viagem
Documentos: passaporte e visto (obrigatório)
Moeda: quiate
Fuso horário: +6,5h GMT
Idioma: Birmanês
Ir
Entre outubro e fevereiro, depois das monções.
Visto: Os portugueses precisam de visto para a República da União de Myanmar. Atualmente pede‑se online, custa cerca de 50 euros e deverá levar um máximo de duas semanas a conseguir.
Vacinas: É aconselhável ir à Consulta do Viajante, já que, dependendo das zonas para onde viaje, poderá ser necessária prevenção da malária. Além disso, é importante ter também em dia vacinas contra tétano, cólera e hepatites.
Ficar
SUMMIT PARKVIEW
A 15 minutos a pé do Pagode de Shwedagon, oferece uma qualidade razoável em relação ao preço, a partir de 70 euros por noite.
NO. 350, AHLONE ROAD, DAGON TOWHSHIP, YANGON, MYANMAR
summityangon.com
STRAND HOTEL
Para quem prefere os clássicos. O edifício da época colonial britânica tem apenas capacidade para 30 quartos, fica mesmo no centro, e acaba de ser renovado. A partir de 250 euros.
92 STRAND ROAD, YANGON, MYANMAR
hotelthestrand.com
Comer
É o mais fácil. Não há esquina onde não se fritem ou cozinhem petiscos a vapor. Mas se preferir restaurantes, a escolha é muita e variada.
DANUPHYU DAW SAW YI
Ambiente e comida tipicamente birmaneses. Perto do mercado.
29TH STREET
BOGOYOKE
Um dos preferidos dos estrangeiros que vivem em Yangon. Comida diversa, de birmanesa a italiana. Com uma esplanada de estilo colonial.
SIGNATURE GARDEN, BAHAN TOWNSHIP
L’OPERA
Restaurante gerido por um italiano imigrado no país. Mesmo junto ao lago Inya, tem mesas no relvado.
INYA LAKE
SHAN YOE YAR RESTAURANTE
Comida típica da província de Shan. Igualmente saborosa e variada, mas de aparência mais requintada do que noutras regiões.
SULE PAGODA ROAD
RANGOON TEA HOUSE
Um dos lugares mais trendy da cidade, mantendo a tradição gastronómica, com qualidade irrepreensível.
PANSODAN ROAD
Comprar
PANSODAN ROAD
Mistura de comércio tradicional, galerias de arte e lojas modernas, mas com produtos locais.
MERCADO BOGOYOKE
Sedas, linho, madeiras e pedras preciosas são só alguns dos produtos que se podem encontrar aqui. Mas a visita vale mesmo para quem não queira comprar nada.
BOGYOKE AUNG SAN RD, YANGON, MYANMAR
GEM MUSEUM
Além do museu de pedras preciosas, o edifício tem três andares de balcões de venda, onde as peças são entregues com um certificado oficial de garantia.
66 KABA AYE PAGODA ROAD
CENTROS COMERCIAIS
Myanmar Plaza, na zona mais moderna da cidade, ou Junction City, frente ao Mercado Bogoyoke.
MYANMAR PLAZA: KABAR AYE PAGODA ROAD, BAHAN TSP, YANGON, MIANMAR , JUNCTION CITY: BOGYOKE AUNG SAN ROAD, YANGON, MIANMAR
HLA DAY
Artesanato e produtos típicos da Birmânia expostos de forma mais organizada do que nos tradicionais mercados e nem por isso caros. Para quem gosta de consumo responsável, pode procurar uma das lojas que fazem parte da rede de empresas sociais de Yangon.
PANSODAN ST, 81
i‑discoverasia.com
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