Cultura, carvão e história forjaram uma cidade que não é óbvia. Descubra connosco a capital do País de Gales.
Texto de José Luís Jorge
Primeira constatação: estamos numa cidade bilingue. Placas toponímicas, anúncios de toda a espécie, programas de espetáculos, tudo escrito em duas línguas. Tanto pode ser em inglês, em primeiro lugar, como em galês, em segundo, como o inverso. É assim em Cardiff, é assim em todo o País de Gales. Segunda constatação: na comunicação entre as pessoas, o inglês vence sem dificuldade. Apesar de possuir o estatuto de língua oficial, e inteira liberdade, o galês tem pouco peso em Cardiff, ainda que vigoroso nas regiões mais remotas do país. (Por curiosidade: em língua galesa Cardiff é Caerdydd e Gales é Cymru.)
Heráclito dizia que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio; logo – aplicando o mesmo raciocínio aos lugares –, não podemos regressar duas vezes à mesma cidade. A experiência ensinou‑me que esta ideia está absolutamente correta. Portanto, não é a primeira vez que estou em Cardiff, de facto, a segunda, mas para lá do espaço geográfico e do corpo urbano, que no essencial se mantêm, tudo o mais vai acontecer de forma diferente.
A Cardiff daquela viagem inaugural teve um sol preguiçoso (ainda assim uma sorte) e apresentou‑se festiva. À chegada, fui engolido por uma multidão de adeptos de râguebi, uns equipavam de azul e branco, outros de vermelho e amarelo. Em ufano coletivo, enchiam de cânticos as ruas do centro, competindo no apoio às suas equipas. Considerado nada menos do que «símbolo da identidade galesa e uma expressão da consciência nacional», eu, que pouco sei acerca de râguebi, de uma coisa fiquei certo: o País de Gales reúne multidões. Em termos de efervescência não encontrei nada de semelhante, mas o Stadiwm Principality/Principality Stadium (que nasceu como Mileniwm ou Millenium) continua lá, no coração da cidade.
Robert Falcon Scott, explorador britânico, tem direito a homenagem em forma de estátua nas ruas de Cardiff.
É a casa dos Dragões – o dragão é um símbolo nacional galês –, a seleção galesa de râguebi. O estádio também acomoda jogos de futebol e grandes concertos. Inaugurado em 1999, recebeu o jogo da final do Mundial de râguebi. Ainda que o marketing da empresa que o gere tente convencer que uma visita ao gigante – capacidade para 74 500 espetadores, 56 mil toneladas de betão e aço, quarenta mil metros quadros cobertos – é algo de inesquecível, creio que esse sentimento só se alcançará nos dias de multidão, quando se sente o bater acelerado dos corações. Ainda assim aproximei‑me, mas não fui bem‑sucedido: por motivos imprevistos, o estádio encontrava‑se fechado a visitas, informaram‑me na receção.
Apesar da origem romana, Cardiff é uma cidade dos nossos dias. Foi a exploração dos filões de ferro e de carvão em Gales do Sul, a partir do final do século XVIII, e a posterior Revolução Industrial que lhe deram força, a ponto de a tornar capital do País de Gales, em 1955. Aliás, a importância económica do carvão era de tal grandeza que levou à criação, em finais de Oitocentos, da Coal and Shipping Exchange, espécie de bolsa frequentada por todos aqueles que gravitavam à volta do negócio das minas. Pode dizer‑se que o preço do carvão nos mercados mundiais era estipulado ali. O edifício onde funcionava ainda existe, grandioso, próximo das antigas docas, agora como Exchange Hotel, destino frequente para prédios citadinos com valor simbólico e arquitetónico. Apesar de toda a riqueza que as minas proporcionaram por mais de um século, fazendo fortunas, a vida dos mineiros galeses nunca foi solar.
Independentemente daquilo que tenha significado para os diferentes atores que se movimentavam naquele cenário que, à época, representava o progresso, traduzido em chaminés lançando constantemente colunas de fumo negro, barcos com pesadas cargas de minério zarpando do porto — à semelhança dos petroleiros dos nossos dias –, parte significativa de Cardiff é fruto desse período sulfuroso. Até mesmo o castelo é resultado do boom mineiro. Sim, o castelo assenta em fundações romanas, incorpora torres normandas, mas, acima de tudo, é uma fantasia neogótica do século XIX. O projeto tem autoria do arquiteto William Burges, descrito como alguém com «uma imaginação desenfreada» e com «propensão para o consumo de ópio», e foi suportado pela imensa fortuna do terceiro marquês de Bute. Numa sala estamos na Idade Média, noutra num palácio árabe e na seguinte em algo diferente. Luxo e requinte por todo o lado. É sempre difícil avaliar uma obra com estas caraterísticas: fantasiosa, eclética, extravagante, triunfal. Assim, não lhe faltam nem admiradores nem maledicentes.
Além do Râguebi, que move multidões, esta é também uma cidade de cultura com exposições e concertos ao longo do ano.
Cardiff apresenta, em termos gerais, o cunho das cidades planeadas de raiz, uso racional do espaço, quarteirões geométricos, e até o material de construção usado foi em boa mediada o mesmo: pedra creme de Portland, o que lhe confere grande unidade cromática. Refiro‑me ao designado centro cívico, aglomerado de edifícios públicos grandiosos, e às galerias comerciais da mesma época, Castle Arcade, Royal Arcade, Morgan Arcade, quintessência da arquitetura do vidro e do ferro, antecessoras dos recentes centros comerciais vizinhos. O que mais agrada é verificar que estruturas do século XIX vivem tranquilamente com negócios do século XXI.
O Museu Nacional de Cardiff é peça central deste conjunto monumental. Da mesma maneira que Cardiff é, muitas vezes, uma capital subestimada, também o Museu Nacional é largamente desconhecido. Isso traz uma (pelo menos) vantagem: os visitantes dispõem de espaço – é natural encontrarmo‑nos diante de uma obra de grande reputação sem ninguém a fazer‑nos sombra. Escultura, pintura, cerâmica, compõem um mosaico muito amplo de opções artísticas, abrangendo um arco tem poral alargado (além disso, há todo um piso dedicado à história natural do País de Gales, explicada através da associação de peças reais e do uso de multimédia).
Dentro destas salas, quando se enunciam as obras‑primas, sem pestanejar a escolha recai sobre um impressionista francês. Tal conduz‑nos a Gwendoline Davies (1882‑1951) e Margaret Davies (1884‑1963), duas irmãs ricas e independentes, ativistas sociais e filantropas. As irmãs Davies envolveram‑se em iniciativas culturais, serviram na Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, viajaram e adquiriram peças de arte, principalmente impressionistas. As suas aquisições, feitas ao longo dos anos, resultaram «numa das mais importantes coleções particulares de arte na Grã‑Bretanha», que acabaram por doar ao museu, 260 itens no total. Foi este ato de generosidade que fez do Museu Nacional de Cardiff um grande museu, com estatuto internacional.
O castelo assenta em fundações romanas, possui torres normandas, mas, acima de tudo, é uma fantasia neogótica do século XIX.
Em geral, o visitante passa de sala em sala, por vezes é surpreendido por algo, demora‑se então um pouco mais, comenta, se tiver a companhia de alguém, mas ao avistar La Parisienne, o mais certo é sentar‑se por algum tempo no banco corrido defronte da tela de grande dimensão, totalmente ocupada pelo retrato de uma mulher de corpo inteiro, envergando um vestido complexo, todo ele azul, um azul que magnetiza o olhar. A pintura, de Pierre‑Auguste Renoir, é de 1874. Na sala ao lado, a mesma atenção a Le Baiser. Mas perante a escultura de Auguste Rodin – cópia de bronze do original de mármore – o mais certo é o visitante fazer círculos, experimentando diferentes pontos de vista, de modo a apreender o máximo do ardente e vigoroso amplexo que atrai dois corpos.
John Goscombe e Jacob Epstein são dois grandes da escultura também representados no museu. Todavia, quanto a Epstein, a sua grande obra, em Cardiff, encontra‑se na catedral de Llandaff. Havia lido que causara polémica, não por si, mas pela razão de se tratar de uma escultura veiculando uma linguagem contemporânea inserida num espaço medieval. Curioso de descobrir as razões da contestação, pus‑me ao caminho. Encontrei um Cristo monumental, longilíneo, minimalista, braços meio abertos em sinal de boas‑vindas. Erguido sobre um duplo arco de betão, como que levita entre as altas paredes medievais, era o que dava vida ao espaço, pareceu‑me. Isso e um coro, que àquela hora ensaiava.
Escultura e pintura são duas artes bem representadas em Cardiff. Nos museus e nas ruas.
As cidades vivem muito do andamento da economia. Enquanto o carvão fez mover o mundo, Cardiff prosperou, mas à medida que as minas foram fechando e a importância do carvão perdeu força. Lentamente, as docas soçobraram; a exportação de carvão terminou por completo em 1964. O aproximar do novo milénio trouxe um novo élan a Cardiff. Programas de renovação urbana, desenvolvimento de novas atividades económicas, engenharia arrojada, arquitetura vanguardista, multiplicação de obras de arte em espaços público, tudo contribuiu. «Capital de alto crescimento – Cardiff é das cidade que mais crescem no Reino Unido», afirma uma publicação da responsabilidade do Cardiff Council. A avaliar pelas gruas levantadas, é bem capaz de ser verdade.
É em redor da baía que melhor se observa o libertar desta energia. O porto, agora significativamente mais modesto, afastou‑se e as antigas docas, propriedade dos marqueses de Bute (daí ser conhecido por Butetown, ou também por Tiger Bay, devido à reputação canalha que se lhe colou durante a época vitoriana), deram lugar a um novo skyline.
Para começar, foi necessário ultrapassar um obstáculo da natureza. Aqui, a amplitude das marés pode atingir 15 metros. «Só há um lugar no mundo, fica no Canadá, onde a força das marés é superior à nossa», explica‑me Leonard, um galês que encontrei, regressava eu da Barrage. O dique da baía de Cardiff, a Barrage, foi a peça que desencadeou a metamorfose da área. A natureza violenta das marés condicionava a navegação e, na baixa‑mar, deixava a descoberto um extenso lodaçal. Isso impeliu a construção de comportas na boca da baía, tornando‑a um grande lago com a ajuda dos rios Taff e Ely, que aí desaguam. O fecho aconteceu em 1999. Leonard diz‑me também que faz parte da equipa que está a preparar a receção da Volvo Ocean Race. Vindos de Newport, do outro lado do Atlântico, os garbosos veleiros da mais empolgante regata do planeta farão pela primeira vez escala em Cardiff. A cidade está empenhada nos preparativos.
Mas convém esclarecer: a baía viveu outros dias de prestígio. Daqui, no dia 15 de junho de 1910, zarpou o Terra Nova, que conduziu a Expedição Antártida Britânica ao oceano Austral, comandada por Robert Falcon Scott (pelo caminho, o Terra Nova fez numerosas escalas, incluindo a ilha da Madeira). E lá está a estátua do explorador, talvez seja mais adequado falar em conjunto escultórico, pois para lá de Scott surgem os rostos dos companheiros que, tal como ele, foram vítimas da tragédia.
Na baía de Cardiff vai poder ver alguns do edifícios da cidade, como o Senedd, o Pierhead ou o Canolfan Mileniwm Cymru.
A estátua é um monumento a uma derrota e isso torna‑o singular ou, mais do que isso, relevante. Scott, na companhia de quatro expedicionários, alcançou o Polo Sul, mas o explorador norueguês Roald Amundsen antecipara‑se quatro semanas. Além disso, no regresso ao Terra Nova, o grupo soçobrou, não havendo sobreviventes. As vitórias têm força própria, afirmam‑se independentemente da forma como foram conseguidas. Já as derrotas – especialmente as grandes derrotas – exigem explicações. No caso do capitão Scott, o seu feito, as suas qualidades e incapacidades, as decisões que tomou, têm sido matéria de controvérsia.
Helen diz‑me: «Fui eu que assentei os azulejos.» O monumento está revestido por inteiro com azulejo branco, uma alusão ao gelo da Antártida, a par do frio, o grande inimigo de Scott e dos seus companheiros. «O meu marido é o autor da escultura», continua. Portanto, referia‑se ao artista Jonathan Williams. Esta conversa, que se prolongou, faz supor que havia marcado encontro com Helen, mas não. Numa casualidade quase prodigiosa, apanho‑a a aplicar betume em pequeníssimas fissuras entre os azulejos. «Estamos próximos do mar, o que causa um grande desgaste neste tipo de objeto. Muito bem se tem portado; encontra‑se aqui desde 2003 e é a primeira vez que lhe tocamos.»
Antes deste momento – cumpria o terceiro e o último dia de Cardiff –, andarilhara muito, fotografara, sentara‑me em esplanadas, visitara alguns espaços, conversara sempre que a oportunidade surgira. Uma dessas conversas teve como interlocutor um luso‑moçambicano, barman no bar e restaurante El Puerto. Assim faço um looping ‑ a escrita autoriza‑nos isso ‑ e recuo de modo a mostrar em panorâmica o perfil da baía. Nem tudo o que se apresenta construído, é novo. Demos um sentido cronológico às coisas. Do antigo porto ficou o Pierhead, a igreja norueguesa e o já mencionado Coal and Shipping Exchange, todos convertidos a usos muito diversos. A igreja norueguesa, com paredes brancas como a neve e esquadria rigorosa, foi transformada em centro cultural. Já o Pierhead, símbolo do robusto sucesso do porto de Cardiff, antiga sede da companhia que o administrava, está sob a responsabilidade da Assembleia Nacional do País de Gales. É um edifício eclético, revestido com placas de terracota, quente tonalidade entre o laranja e o castanho, o que faz que nos lembremos dele mais pela cor do que pela sua forma ligeiramente bizarra.
A cultura galesa é motivo de orgulho para os habitantes de Cardiff.
Do tempo atual, muitos cafés, restaurantes, bares, lojas e blocos de apartamentos de perfil mais ou menos audaciosos, uns construídos, outros em construção – a componente imobiliária parece inseparável destes projetos.
Mas foram as grandes obras públicas que mais contribuíram para a transformação deste lugar desleixado em lugar na moda, ou, mais do que isso, em lugar amado. Esta reconversão lembra outra, o Parque das Nações, em Lisboa. Identitárias, representam tanto a nova Cardiff como a nação galesa. Escolho duas: Senedd e Canolfan Mileniwm Cymru – Assembleia Nacional e o Centro Millennium.
Mais importante por aquilo que significa do que pela sua forma, o Senedd é um edifício pouco imaginativo. Lembra uma grande caixa transparente coberta por uma placa lisa que a partir de certo ponto se projeta no vazio em forma de pala. Uma onda, uma concha, o casco invertido de um barco, seja o que for que a sua forma sugira, o Canolfan Mileniwm Cymru é brilhante, majestoso e simples. Chapas de aço revestidas com óxido de cobre formam uma couraça que envolve a linha da cúpula e boa parte da fachada onde deslizam grandes letras em caixa alta compondo versos da poeta Gwyneth Lewis, nas línguas galesa e inglesa. Dizem o seguinte: «Nestas pedras horizontes cantam».
No interior, nas salas deste centro cultural, expressam‑se artistas locais e vindos de fora. O Canolfan Mileniwm Cymru é a casa de oito instituições, que dão vida às «aspirações culturais da nação». Congrega dois desígnios: abertura ao mundo e defesa da cultura galesa. É disso, sem mais, que se trata.
Guia de viagem
Documentos: Passaporte ou Cartão de Cidadão.
Moeda: Libra Esterlina. Uma libra – 1,1387 euros.
Idioma: Galês e Inglês.
Ir
De Portugal para Gales existe ligação aérea direta apenas entre Faro e Cardiff. Optar por voar para o aeroporto de Bristol, permite voos diretos de Lisboa, Porto e Faro. Cardiff dista cerca de 70 quilómetros de Bristol. Ao longo do dia numerosos comboios, assim como autocarros, ligam as duas cidades.
Visitar
Museu Nacional de Cardiff
Cathays Park, Cardif
MUSEUM.WALES/CARDIFF
Castelo
Castle Street, Cardiff
CARDIFFCASTLE.COM
Stadiwm Principality/Principality Stadium
Westgate Street, Cardiff
PRINCIPALITYSTADIUM.WALES
Catedral de Llandaff
Cathedral Cl, Cardiff
llandaffcathedral.org.uk
Pierhead
Pierhead Street, Cardiff Bay
PIERHEAD.ORG
Senedd/National Assembly for Wales
Link Road, Cardiff Bay
ASSEMBLY.WALES/EN/VISITING/SENEDD
Canolfan Mileniwm Cymru/Wales Millenium Centre
Bute Pl, Cardiff Bay
WMC.ORG.UK
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