Descoberta na zona norte do Rio de Janeiro. Um dos mais importantes centros criativos da cidade, a Fábrica Bhering. Porque o Brasil não é só eleições, samba, violência e futebol.

Texto e Fotos de João Nauman

Na Fábrica Bhering, em Santo Cristo, a festa está a começar. As nuvens deram uma folga e o sol coloriu o dia. Os ateliês de artistas e designers abrem-se, as lojas aprumam os seus escaparates. Estão marcados lançamentos de livros, inauguração de exposições, workshops, bancadas de comida gourmet, mais tarde uma roda de samba. O povo parece corresponder, chegam jovens e outros menos jovens, pequenas famílias, grupos de amigos, até mesmo a comunidade local, que sobrevive às condições duras da zona norte da cidade e aproveita o momento para descobrir o que esconde este edifício com aspeto sujo e decadente.

É assim desde há sensivelmente quatro anos. A cada primeiro sábado do mês, a comunidade que habita nesta antiga fábrica de chocolate do Rio de Janeiro abre as portas das suas lojas e ateliês a todos os interessados. Alguns aproveitam para realizar vendas, outros promovem apenas o trabalho, para outros trata-se da desculpa perfeita para receber os amigos. O Circuito Interno Bhering, como designaram este dia, é a forma que encontraram para estabelecer uma ligação regular entre o que tudo o que acontece nesta «bolha criativa» com o mundo exterior.

Além dos chocolates e dos rebuçados, esta também já foi uma fábrica de produção e exportação de café. Hoje é um ponto de encontro entre artistas e público, em especial no primeiro sábado de cada mês.

Faz sentido. Embora a Bhering junte mais de oitenta artistas, designers, artesãos e arquitetos, e muito embora seja um centro criativo ímpar em toda a cidade, a verdade é que parte significativa dos cariocas ainda desconhecem o seu pulsar. Entre as várias teorias que explicam o desinteresse, muitos apontam a longa distância para a zona sul da cidade, onde em teoria reside a comunidade mais propensa a esta indústria e tipo de manifestação. Há depois a falta ou a demora no transporte e a questão de segurança, assuntos correlacionados e não desprezíveis naquela que continua a ser uma das cidades mais perigosas do mundo.

Embora obviamente se aceite, não deixa de ser de lastimar porque se trata de um evento muito meritório. E não apenas pela qualidade dos trabalhos de autor que pudemos ver, sem dúvida, tão interessante quanto diversa, mas também pelo simbolismo de se localizar numa zona desfavorecida, normalmente não tocada pelo domínio do sensível, e pela aventura que constitui este novo território.

Para Luiz Felipe Lins, da associação de artistas que gere a Bhering, todas estas questões estão, de momento, fora do seu radar. A sua visita guiada começa nas lojas do piso térreo, onde através de uma espécie de bomba de escada se vislumbra todo o esqueleto do edifício. Seguimos em frente e abre-se o enorme pátio exterior onde se concentra a «brigada» gastronómica.

A antiga Fábrica Bhering nasceu na década de 1930. Quase noventa anos depois está reinventada, com um conceito que podemos também ver em Berlim ou Lisboa, por exemplo.

A história deste edifício está bastante representada no segundo andar. Não é propriamente um museu, mas as várias máquinas ali deixadas sinalizam um passado que remonta a 1930, data da sua construção. Esse início marca a Bhering como fábrica de chocolates e rebuçados durante cinquenta anos, caindo no esquecimento apenas na última década do século passado.

Em 2005, o proprietário Ruy Barreto decidiu copiar as fábricas de Berlim, Londres e Paris que conheceu numa viagem pela Europa, nascendo assim a nova vida como centro de artes. Foram precisos cinco anos e um boom imobiliário para os artistas da zona sul verem potencial aqui e o lugar «explodir», mas dois anos volvidos e uma insolvência à porta quase mandou o projeto às urtigas. Foi a Prefeitura do Rio que garantiu que estes vinte mil metros quadrados permanecessem como lugar de pensamento.

A nossa visita continua pelos andares seguintes onde encontramos uma mão-cheia de amigos seus, com quadros expostos na parede, peças de roupa e/ou objetos. O pombal, um espaço enorme e vazio, antecipa a chegada ao terraço no sexto andar. O nosso timing é perfeito. Da banda sai uma bossa-nova, a cerveja artesanal produzida na própria Bhering começa a ser servida.

A vista, essa, é fascinante. Em redor nasce o bairro de Santo Cristo e o morro do Pinto, lá à frente toda a zona do porto e a baía de Guanabara. E o Corcovado, de costas, mas sempre presente. Enquanto o Sol desce, e o corpo se agita levemente, é impossível não pensar quantos privilégios há para serem vividos nesta zona da cidade.


Lojas e ateliês

A Bhering merece uma visita mesmo que não consiga estar presente no primeiro sábado de cada mês. Parte significativa dos ateliês de artistas estarão fechados, e como muitos não permitem visualizar o seu interior, nunca é possível saber se os artistas estão presentes. Há casos, no entanto, que esse contacto é possível e mesmo estimulado, mas sempre dependente da sorte de os encontrar uma vez que não existem horários definidos.

A Fábrica tem no entanto diversas lojas que cumprem horários e permanecem abertas todos os dias. A Feira é provavelmente a mais conhecida, culpa da proprietária Kiti Duarte, uma famosa diretora de arte carioca. Ali encontramos objetos e móveis para casa, muitos deles oriundos dos artistas da Bhering. A Trapiche Carioca aposta na produção de móveis reutilizando madeira e muitos objetos vintage. Já a Itsu é uma marca urbana com bicicletas, skates e roupa.

Bar do Omar

A tipologia é redutora. Muito mais do que um bar, Omar e a sua família criaram um belo exemplar de boteco tradicional carioca, que conjuga comida familiar e um ambiente despretensioso com a melhor vista das redondezas. Claro que o pôr do Sol para o porto e para a baía de Guanabara não é exatamente o Arpoador e Copacabana, mas o Rio é muito mais do que isso, e a hospitalidade dos cariocas não é exclusiva da zona sul.

É claro que boteco que se preze tem noite de samba e sambistas, e no Omar não é exceção. Acontecem regularmente a cada sábado, as noites mais recomendáveis para quem procura calor humano que, dado o sucesso, não para de crescer.
Rua Sara, 114 – Morro do Pinto, Santo Cristo
Telefone: + 5521982893050
Horário: qua. e qui., das 17h00 às 23h00, sex. e sáb., das 12h00 às 00h00, dom. das 12h00 às 22h00.

Fábrica Bhering

A administração da Bhering organiza outros eventos para além da festa do primeiro sábado de cada mês, sendo a página de Facebook a melhor forma de acompanhar essa programação. Por vezes, lojas e/ou artistas organizam eventos por conta própria, alguns deles também noticiados na mesma página.
Rua Orestes, 28 – Santo Cristo
Horário: Seg. a Sex. das 09h00 às 18h00, sáb. das 13h00 às 20h00


Reportagem publicada na edição de novembro de 2018 da revista Volta ao Mundo, número 289.

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