Quénia e Tanzânia. Oito dias com passagem por locais míticos como Masai Mara, Kilimanjaro ou a Cratera de Ngotongoro. Eis o relato de uma viagem inesquecível. Um diário on the road, parcial, escrito a quente, ao ritmo e ao sabor da natureza.
Texto de João Ferreira Oliveira
Fotografias de Adelino Meireles/Global Imagens
Dia 1
Chega finalmente ao fim o primeiro dia de viagem: Lisboa – Amesterdão, Amesterdão -Nairobi. Três horas para a capital holandesa, oito para a capital queniana, nada de mais para desembarcar noutro mundo, o mundo dos safaris, um mundo que nenhum dos elementos esta equipa da Volta ao Mundo conhecia e que ambos queriam alcançar o mais rapidamente possível. É fundamental conservar uma certa dose de ansiedade e espanto, mesmo quando se faz da viagem profissão.
O cansaço não costuma entrar nestas reportagens. Editam-se ou suprimem-se os entretantos, os tempos mortos, e narra-se apenas o prazer. Mas é também a partir dessa zona cinzenta que muitos acontecimentos banais se transformam em momentos únicos. Se é que cruzarmo-nos com duas leoas, mesmo em África, possa ser considerado um acontecimento banal…
Foi assim que partimos rumo à Reserva Nacional de Samburu, onde passaríamos a noite. Mais de sete horas de viagem e um país que foi fazendo a sua apresentação pela janela do jipe, pelo canto do olho. Crianças a dizer olá, crianças a dizer adeus, crianças a jogar à bola, arrozais, plantações de café, bananeiras, mercados de rua, homens e mulheres a vender fruta aos carros que passam, a terra vermelha, a luz que nenhum filtro de Instagram conseguirá igualar, o caos e o charme africano em doses iguais. Pelo meio uma paragem rápida numa escola primária para deixar algumas mochilas e lápis de cor aos alunos, que toda a ajuda num sistema de ensino deficitário é bem-vinda.
Pouco depois das 22h00, e após uma autorização especial para entrar no parque – a partir das 18h00 não é permitida a entrada, por questões de segurança –, eis-nos, por fim, em Samburu. Percorremos apenas algumas centenas de metros da estrada de terra batida até que duas leoas, as tais duas leoas, se cruzam no nosso caminho. «Isto é algo muito raro», diz Richard, o nosso guia, surpreendido por a natureza africana se ter insinuado tão rapidamente a dois novatos que ainda agora chegaram.
Dia 2
Não houve muito tempo para recuperar. Os dias em África, sobretudo nos safaris, começam sempre cedo, normalmente a partir das seis da manhã, a hora ideal para se avistar animais e a melhor luz do dia para fotografar. E o primeiro animal que se deixa ver é um elefante, a passear pachorrento, junto às tendas. Não é de estranhar, até porque o Elephant Bedroom Camp, situado nas margens do rio Ewaso Nyiro, não possui qualquer cerca. Os seguranças já estão acostumados e acompanham-nos até à entrada. Confirmam se fechamos a tenda. «Os babuínos não perdem uma oportunidade para vasculhar as malas. Em África todo o cuidado é pouco», diz-nos um deles, num inglês perfeito e com irrepreensível humor britânico. Richard já está no jipe a postos para o nosso primeiro dia de terreno – game drive é o nome técnico – numa pontualidade também ela britânica.
Tudo isto é um exercício de paciência, até porque, e ao contrário do que a nossa sorte de principiante possa ter deixado antever, nem todos os animais fazem questão de ver e ser vistos. Como o leopardo. Procurámo-lo no seu habitat, junto às rochas, mas não tivemos sorte, apesar de um casal francês com quem nos cruzamos garantir ter visto um. Quando se dá de caras com uma das espécies mais raras é comum avisar-se pelo rádio os outros carros, mas desta vez não houve tempo.
Não há, contudo, qualquer sensação de frustração. Bem pelo contrário. Antes que as luzes se apaguem – este alojamento funciona a gerador e tem eletricidade racionada, entre as 05h00 e as 07h00, as 13h00 e as 15h00 e as 18h00 e as 23h00 – faço uma espécie de resumo da matéria dada e enumero as espécies que observámos: elefante, babuíno, girafa, gazela, zebra, impala, dik-dik (um pequeno e monogâmico antílope que anda sempre acompanhado pelo parceiro), órix (um grande antílope africano), waterhog (familiar do javali), macaco-vervet (conhecido pelos seus testículos azuis), avestruz, kori bustard (a maior ave africana) e mais um sem-número de aves raras – cerca de 350 espécies de aves numa pequena reserva com 165 quilómetros quadrados.
O Parque Nacional de Amboseli tem vistas únicas para o Monte Kilimanjaro. É o segundo parque mais popular do Quénia. O primeiro lugar é ocupado pelo Masai Mara, outra paragem nesta viagem inesquecível.
Recordo também o momento do dia: pouco antes do pôr do Sol, já de regresso ao acampamento, vemos um grupo de dezenas de abutres. E onde há abutres, já se sabe, há carne. Houve caça. Alguns metros à frente uma leoa descansa à sombra de uma acácia, com a carcaça de órix ao lado. Talvez por ser o nosso primeiro safari, talvez por ser domingo, por momentos sentimo-nos dentro de um documentário. Enquanto Richard falava para nos dar mais uma explicação não era a voz dele que ouvia, mas sim a de Eduardo Rêgo, o homem que, todos os fins de semana, há mais de duas décadas, narra a Vida Selvagem na televisão portuguesa.
Dia 3
Mudamos de parque, do mais pequeno e menos conhecido Samburu, para o incontornável e bem maior Masai Mara, com 1510 quilómetros quadrados de área. Mudamos também de guia: Simon. Vem buscar-nos à pista, ainda estamos a descer as escadas do avião. Há várias pistas de terra ao longo do parque, uma espécie de paragens de autocarro em que os pilotos da Air Kenya vão deixando os passageiros consoante os alojamentos a que se destinam.
Os animais gostam de apanhar sol na pista, mas nunca há acidentes. No nosso caso foi uma família de waterhogs que teve de fugir à última hora. «De onde são?», pergunta Simon assim que entramos no jipe. «Portugal», respondemos. Em viagem, a nossa nacionalidade é o nosso maior cartão-de-visita e, hoje em dia, na maior parte dos cartões tem escrito Cristiano Ronaldo. «A terra do Vasco da Gama», diz de imediato. O nosso preconceito é proporcional à sua cultura. Não foi o único. Alguns dias mais tarde, em Emali Town, numa loja de beira de estrada entre Nairobi e Amboseli, um homem (Sila) irá perguntar-nos de onde somos e começar a falar sobre Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Fernão de Magalhães. Depois, sim, fala de Ronaldo, para dizer que gosta mais de Messi.
Mas não antecipemos o futuro. «O que querem fazer agora?», questiona logo de seguida. «Ver os big five», respondemos em coro. Vamos ao lodge (Governors ‘Il Moran) pousar as malas e almoçar – e regressamos à estrada. É difícil resistir à tentação, por mais que uma tenda de luxo e uma rede nos convide à sesta, sob o olhar atento dos hipopótamos e crocodilos, do outro lado do rio Mara; por mais que saibamos que ver os cinco grandes – elefante, búfalo, leão, leopardo e rinoceronte, assim designados por serem os animais mais difíceis de caçar pelo homem – seja um lugar-comum a que todos os turistas e jornalistas aspiram no seu primeiro safari.
Este safari preparado pela TopMic para a Volta ao Mundo é, à semelhança de tudo o que esta empresa faz, feito à medida – taylor made. O valor para cada viagem depende do que cada pessoa quer incluir no roteiro, quantos dias e orçamentos disponíveis. A título indicativo, a agência de viagens disponibiliza programas de safaris a partir de 3000 euros. Neste projeto, a TopMic teve como parceiro de aviação a KLM/Air France.
Mais informações em topmicturismoportugal.com
A área de conservação Ngorongoro é uma cratera a 2400 metros de altitude. Este fosso tem 260 km2 de diâmetro e 610 metros de profundidade. Abriga perto de 25 mil animais.
Ainda não foi desta, contudo. Hoje, ao terceiro dia, além de grande parte das espécies que vimos em Samburu, mas em quantidades muito maiores, só vimos búfalos, hienas, chacais, hipopótamos, crocodilos, waterbucks, reedbucks, topis (todos eles antílopes), um grupo de duas leoas e quatro crias a beber água, uma manada com milhares de gnus, seis leões a comer um gnu e quatro chitas a descansar ao sol. Foi só isto…
Agora, ao jantar, uma família de elefantes decide interromper a nossa refeição para que possam, também eles, comer tudo o que lhes vai aparecendo pelo caminho. Herbívoros, têm um apetite insaciável, capaz de devorar cerca de 150 quilos de comida por dia. Apesar da presença de dois homens armados e dos pedidos de silêncio por parte dos empregados, ninguém parece especialmente assustado. «Isto é África», diz o casal da mesa ao lado, aproveitando a rede wi-fi para enviar algumas imagens para os filhos.
Dia 4
Toda a gente sabe que um documentário sobre a vida selvagem leva muito tempo a produzir, que são precisos dias, semanas, às vezes meses, para se encontrar determinado animal ou uma situação de caça. Não se pode estar à espera de, em apenas uma tarde, dar de caras com um leão (macho, com juba e tudo), rodeado de fêmeas e de crias; e logo a seguir com um rinoceronte, esse animal raro que tem sido dizimado devido ao apetite voraz do homem, essencialmente chineses, atraídos pelo seu uso medicinal e poderes afrodisíacos – um corno pode atingir os cem mil dólares; tudo isto depois de termos visto um leopardo serenamente sentado numa árvore a comer a sua presa. Como nos documentários, como naqueles livros de fotografia e vida animal que nos colocaram na tenda.
«Então, correu bem a tarde?», pergunta-nos o responsável pelo lodge, ao final do dia. «Não poderia ter corrido melhor», respondemos. «Vimos os big five em duas horas e meia.» Não acredita. «Não acredito!» A mensagem espalha-se rapidamente pelos empregados e pelos hóspedes. Nós com um sorriso de conquista, pose vencedora, meio saloia, como se dependesse de nós. Tivemos sorte. Sorte e Simon. Foi um dia em cheio.
O Parque Masai Mara encontra-se na zona de migração de antílopes, gnus e zebras. Abriga a tribo dos Masai, pastores que combinam tradições ancestrais com novas tecnologias.
Apesar de já não ser propriamente a época das migrações entre o Masai Mara e o Serengeti – decorre, sobretudo, entre julho e setembro –, vimos também uma manada de milhares de gnus a cruzar o rio, escoltados na água por um grande grupo de hipopótamos e crocodilos. Um dia que começou às cinco e meia da manhã, com um passeio de balão, comandados pelo inglês David Chipping. Nós e mais 14 pessoas, a ver como veem os pássaros durante uma hora. «Foi aqui que os balões como este, que podem levar até 24 pessoas, foram testados. Há mais de vinte anos era impensável voar com tanta gente.» Explica-nos tudo num português exemplar.
Fundou uma empresa de balonismo no Alentejo, em 1989. «As condições nem sempre eram fáceis e o turismo ainda estava muito no início.» Garante que este parque é considerado um dos melhores sítios do mundo para voar, graças a seu microclima. «Voamos 365 dias por ano.» Ainda assim, espera voltar um dia a viver a tempo inteiro em Portugal. Tem casa em Evoramonte. «E saudades.» Nós, por enquanto, ainda não.
Dia 5
À chegada à pista de aviação recorda-se um sketch de Raul Solnado, aquele momento em que ele chega à guerra, mas a guerra ainda estava fechada. «Tens a certeza de que é aqui?», perguntamos a Simon. Ele sorri e diz que é a mesma pista em que aterrámos, só que agora está deserta. Não há jipes à espera de turistas, um controlador aéreo (nunca há), alguém a tentar vender uma pulseira. Ninguém. Até que, à hora marcada, 08h15, o avião aterra. Um avião só para nós. Guardamos as malas, apertamos o cinto, o piloto liga os motores, diz-nos que vamos fazer duas paragens breves para apanhar alguns passageiros, informa que há água na parte de trás, oferece-nos rebuçados, olha para esquerda, olha para a direita e levantamos voo rumo a Nairobi, sempre a baixa altitude.
Regressamos à capital, regressa Richard, regressa o asfalto, para uma viagem de várias horas até Amboseli, o segundo parque mais famoso do Quénia, não tanto pelos seus animais, que também os tem, mas pela presença do monte Kilimanjaro, o ponto mais alto de África, com 5895 metros. Antes da partida, um almoço no famoso restaurante Carnivore – que meteu testículos de boi, carne de avestruz e crocodilo – e uma visita à casa-museu de Karen Blixen, autora de África Minha, livro que deu posteriormente origem ao filme de Sydney Pollack.
É um dia de transição, este. São preciosos os dias de transição em viagem, são como planos de corte, mudanças de ritmo e de capítulo para que possamos respirar. Chegamos a Amboseli ainda antes do pôr do Sol. Da montanha vemos apenas o cume, coberto de neve. A visão que tinha Harry Street, a personagem do conto de Ernest Hemingway, As Neves do Kilimanjaro, um escritor que recorda a sua vida depois de um ferimento sofrido durante um safari. Uma paisagem poética, literária, cinematográfica. Romântica, dirão alguns. Cada um é livre de escolher o seu adjetivo.
O jantar é à luz do candeeiro, debaixo de um céu carregado de estrelas e servido por Júnior, membro de uma tribo Masai que, de manhã, chega a este alojamento de charme (Tortilis Camp) vestido com os seus trajes e brincos tradicionais e que à noite pronuncia de forma exemplar os nomes dos vinhos estrangeiros e ensaia algumas palavras em português. «É pena que não tenham tempo para visitar a minha aldeia», diz-nos. Amanhã seguimos para a Tanzânia.
Dia 6
Namanga, fronteira do Quénia com a Tanzânia. Despedimo-nos de Richard de forma definitiva, agora é Rahim quem nos guia. Visto tirado em poucos minutos (50 dólares) e eis-nos noutro país. Uma nova realidade? Outra paisagem? Quais as diferenças entre os dois povos? Vive-se melhor no Quénia ou aqui? Ainda mal entramos e já bombardeamos Rahim com perguntas. Peço desculpa. «Hakuna matata», diz. Sem problemas. Temos, mais uma vez, muitos quilómetros de estrada pela frente (até ao Parque Nacional de Tarangire), mas desta vez não seremos nós a guiar o leitor, ante os olhos e as palavras de Rahim. Um discurso longo, sem cortes, porque um safari, como qualquer grande viagem, não é feito apenas de bichinhos, mas também de pessoas.
A migração dos gnus é um dos maiores espetáculos da natureza. Os animais procuram fugir aos seus predadores.
«Somos parecidos com os quenianos em muitas coisas, somos povos irmãos, mas talvez sejamos um bocadinho mais sociáveis do que eles. Não contem isto ao Richard que ele não vai gostar! Aqui a tua origem não é assim tão importante, nunca há lutas, independentemente da tribo de onde vens. Toda a gente pode casar-se com toda gente, de diferentes tribos, muçulmanos com cristãos.
Cerca de 50 por cento do povo é muçulmano, 40 por cento é cristão e 10 por cento não tem religião. Eu sou muçulmano, mas não sou muito religioso. Um bocadinho, apenas. Tenho três filhos, um deles nasceu há 15 dias. A economia deles é mais forte porque ele têm mais indústria. A agricultura é o nosso principal setor, depois o turismo. Também temos diamantes. O solo na Tanzânia é extremamente rico. Temos muita fruta, por exemplo, mas não podemos transformá-la em sumo, tem de ir para o Quénia. É por isso que eles têm gente muito rica, mas também têm mais pobres. Há mais desigualdade. Nós ajudamo-nos muito uns aos outros, entre amigos, entre família.
Eu nasci em Kilimanjaro, tenho mais seis irmãos e fui o único a estudar, porque era o mais novo. Os irmãos ajudaram os meus pais a pagar os estudos. Agora sou eu o responsável pelos meus pais, na minha tribo é assim, o filho mais novo tem mais privilégios mas também tem mais responsabilidades. Felizmente tenho um bom emprego, mas se não pudesse os meus irmãos ajudavam. Também consegui colocar os meus filhos numa escola particular. Enquanto puder pagar vou fazê-lo. Nesse aspeto o Quénia é melhor. Na altura da independência o nosso presidente expulsou os colonizadores e isso prejudicou a nossa educação. No Quénia não fizeram isso, foram mais inteligentes, convidaram-nos a ficar e aproveitaram os conhecimentos e a experiência deles. O mesmo se passa com a saúde. Os hospitais deles são muito melhores. Se aqui alguém tiver um problema muito grave às vezes é transferido para Nairobi.
Por outro lado, as nossas estradas são melhores. Somos um país com muito futuro. O Quénia também. Mas ainda há muito a fazer. No dia 25 há eleições presidenciais. O atual presidente já não se pode candidatar a mais nenhum mandato. É por isso que os carros e as ruas estão cheios de bandeiras, estão a ver?» Paramos na cidade de Arusha, junto a um mercado de rua. Vejo um grupo de jovens e levanto-lhes o polegar, gesto de cumprimento automático. Um deles abana a cabeça e levanta o indicador e o médio em sinal de vitória. O polegar levantado é o gesto de apoio ao partido no governo, os dois dedos levantados sinal de mudança, explica Rahim. «Somos uma democracia estável, é por isso que muita gente, sobretudo as gerações mais jovens, não tem receio em exigir melhorias e votar pela mudança. Ganhe quem ganhar não haverá problemas.» As duas comitivas estão a poucos metros de distância, em alegre convivência. Que o futuro de África passe por esta estrada.
Dia 7
Quase todas as crianças sonham ter uma casa na árvore. Soube bem concretizar este desejo infantil mesmo que por uma noite, no Tarangire Treetops. Há meses que não chovia por aqui. Talvez por isso os leões e o leopardo não tenham ido beber água ali mesmo à frente, a poucos metros da piscina. Os elefantes, sim. Estivesse sol e daria a foto perfeita, a capa perfeita, mas a natureza é isto mesmo, felizmente.
No lobby há um embondeiro gigante, com mais de 800 anos. Podem atingir mais de 40 metros de altura, um diâmetro 30 metros e estima-se que possam viver milhares de anos. Diz-se deles que quem arrancar uma das suas flores será comido por um leão, ou que Deus o expulsou do céu e ao cair na Terra ficou com a raiz virada para cima. Fazem parte da paisagem deste parque, da paisagem de África. Uma paisagem mais rica e diversificada do que se possa pensar, capaz de florescer e vestir-se de verde apenas com algumas horas de chuva.
Há poucos animais na rua. Os elefantes, as zebras, as gazelas e as impalas do costume, disponíveis quer faça chuva quer faça sol; um grupo de vinte mangustos a atravessar a estrada; uma píton com cerca de três metros numa acácia; e ainda três antílopes com os quais ainda não nos cruzáramos – steenbok, hartebeest e common eland, este último considerado o maior antílope de África. Os antílopes são os reis de África, no que à quantidade e à diversidade diz respeito.
Cruzamo-nos igualmente com vários rebanhos, centenas de cabeças de gado. São os rebanhos dos masai. Também eles fazem parte da paisagem, estão por todo o lado, aparecem vindos do nada, com as suas roupas vermelhas (e azuis). Muitas destas terras pertencem-lhes, na verdade, tendo os parques, os alojamentos e as concessões privadas de pagar uma determinada quantia à comunidade. Calcula-se que sejam quase um milhão de pessoas, entre o Sul do Quénia e o Norte da Tanzânia. Já não vivem como guerreiros nem caçam animais selvagens, se bem que ainda bebam sangue de boi em ocasiões especiais, mas continuam a ser um povo seminómada. A construir e a viver nas suas inkajijiks, casas redondas construídas com paus, lama e excrementos de vaca. Vivem também do turismo, alguns trabalhando em alojamentos locais ou como guias. Edward Lowassa, antigo primeiro-ministro, o autodenominado candidato da mudança, é de origem masai.
Visitamos uma das aldeias, logo à saída do parque. Uma «armadilha para turistas». Sabemos ao que vamos, estão à nossa espera, estão à espera de turistas, ainda assim não resistimos. Por vinte dólares por pessoa fazem-nos uma dança tradicional, mostram-nos as suas casas e ainda nos ensinam como se faz fogo. «Podem fazer todas as perguntas que quiserem», diz Sokoina, o filho do chefe. «Porque é que ainda continuam a fazer lume dessa forma, mas usam relógios digitais e telefone?», questionamos. Sokoina sorri. Rimos todos. É nestas tradições, nestas contradições, que está a sua riqueza. E a sua sobrevivência. Despedimo-nos e seguimos para a cratera de Ngorongoro, onde passaremos a última noite, no And Beyond Ngorongoro Crater Lodge, por várias vezes distinguido como um dos melhores lodges de África. É difícil não ser superlativo com uma vista destas e quando, à chegada, temos a banheira cheia e dezenas pétalas de rosa espalhadas pelo chão.
Dia 8
Aquando da edição 250 da Volta ao Mundo escrevi um texto sobre Ngorongoro como um dos dez santuários da natureza que todos deveríamos visitar. A maior cratera vulcânica inativa do mundo, Património Mundial classificado pela UNESCO, um oásis de vida selvagem a mais de 2200 metros de altitude, 20 quilómetros de diâmetro, mais de 25 mil animais, entre eles cerca de dez mil gnus, mais de cinco mil zebras, centenas de búfalos, uma centena de hipopótamos, meia centena de leões, 30 rinocerontes, leopardos e uma série de outras espécies que não saem daqui, não migram, tal é a riqueza e a diversidade de vegetação. Para os herbívoros e para os seus predadores. A oitava maravilha do mundo, consideram alguns, «a arca de Noé de África, a cadeia alimentar e a lei da natureza no seu expoente máximo», escrevi na altura.
Agora, menos de três meses depois, estou aqui. «É um dos locais mais bonitos onde já estive na vida», ouvi o Adelino dizer às filhas, ontem à noite, ao telefone, ainda a digerir o primeiro impacto. Poucas horas depois o encanto mantém-se. São seis horas da manhã. No topo do parque, a 2400 metros, um manto de nevoeiro cobre a vegetação. Uma floresta densa, quase selva. Um búfalo. Uma zebra. Patadas de leão marcadas na terra. Vamos descendo, lentamente, já de olho na cratera, à medida que aumenta a visibilidade. Até que o sol fura algumas nuvens e vários raios iluminam a zona central da cratera, formando um círculo perfeito, como se alguém, uma nave, algo de grande fosse acontecer.
Nada de grandioso acontecerá. É assim todos os dias, há quase três milhões de anos. Daqui a três horas começaremos a regressar a casa. É possível que ainda vejamos novamente os big five. Não interessa. Até lá, e vistos de cima, seremos apenas um privilegiado e insignificante pontinho no meio da natureza.
Guia de viagem
Documentos: passaporte, visto e boletim de vacinas internacional. O visto para o Quénia tem de ser tirado antes da viagem, já o da Tanzânia pode ser tirado no próprio país. Custa 50 dólares.
Saúde: profilaxia da Malária. Vacina da febre-amarela recomendada, mas não obrigatória.
Moeda: (Quénia) Xelim Queniano (TANZÂNIA) Xelim Tanzaniano
Fuso horário: GMT + 2 horas
Idioma: suaíli. A maioria das pessoas fala inglês fluentemente, quer no Quénia (antiga colónia britânica), quer na Tanzânia (antiga colónia alemã)
Quando ir: qualquer época do ano tem os seus encantos, mas é entre julho e setembro que se avistam mais animais, altura da migração anual. Entre março e maio também se veem muitos animais. Nos restantes meses há menos vida animal, mas também menos turistas e tarifas mais em conta.
Ir
A TopMIc organiza e realiza o seu desejo de fazer o seu safari. Aproveite o conhecimento profissional do terreno, parceiros locais, acordos com guias especializados e capacidade de resolver determinados procedimentos burocráticos que são difíceis de ultrapassar. A equipa da Volta ao Mundo viajou através da Topmic, agência especializada em viagens personalizadas. Um programa de dez dias (incluindo a duração dos voos), com saída de Lisboa rumo a Nairobi (via Amesterdão) e com regresso desde Kilimanjaro – igualmente via Holanda, mas este com uma pequena escala em Kigali, capital do Ruanda.
Quanto custa
É difícil encontrar um preço fixo para um safari, até porque depende muito do alojamento pretendido, da duração e dos extras incluídos ou do número de ligações internas por avião. Uma viagem personalizada, à medida, feita de forma individual e concertada com as operadores locais, tem um valor a partir de 3000 euros por semana.
Comer
A maior parte das refeições é feita nos alojamentos. Os pequenos-almoços são servidos a partir das 06h00, hora madrugadora mas ideal para ver os animais. Ao jantar, à la carte, há sempre dois ou três pratos principais à escolha.
Carnivore
Quem passa por Nairobi passa pelo Carnivore. O nome não engana: carne de porco, galinha, coelho, avestruz, crocodilo, testículos de touro, enfim, um verdadeiro rodízio para quem gosta de comer muito e bem.
tamarind.co.ke/carnivore
Escarpment Luxury Lodge
Lodge onde também se pode comer, mesmo que não fique lá alojado. A meio caminho entre Ngorongoro, Arusha e o Kilimanjaro. Vista privilegiada para o lago Manyara e fica a dois passos do Great Rift Valley, marco incontornável no continente africano. Comida contemporânea.
escarpmentlodge.co.tz
Arusha Coffee Lodge
Alojamento quase obrigatório a caminho dos parques naturais da Tanzânia. Fica no meio de plantações de café, emprestando-lhe assim um charme especial. Ao almoço servem buffet, ao ar livre.
elewanacollection.com
The Trout Tree
Construção insólita, ao redor de uma figueira, junto ao rio Burguret. Vista para o monte Quénia.
trout-tree.com
Dormir
Hemingways Nairobi
Boutique hotel de luxo com arquitetura colonial no bairro Karen (onde fica a casa-museu Karen Blixen). Tem 45 quartos de luxo, piscina e um restaurante de cozinha de autor com aspirações a estrela Michelin. Vista para as montanhas Ngong.
hemingways-naiorobi.com
Elephant Bedroom Samburu
Os elefantes fazem parte da paisagem, passeando-se nas margens do rio Ewaso Nyiro e junto às tendas. Situado no coração da Reserva Nacional de Samburu, tem doze tendas rústicas com o conforto indispensável.
atua-enkop.com
Governors’ Il Moran – Masai Mara
Tal como o Elephant Bedroom, também não é cercado, sendo constante a presença de animais. Localização cirúrgica. Composto por tendas com decoração sofisticada.
governorscamp.com
Tortilis Camp
Doze mil hectares de frente para o Kilimanjaro, no Parque Nacional de Amboseli. Já recebeu o prestigiado prémio de ecoturismo da British Airways. Possui duas piscinas, horta biológica e um especial cuidado com as refeições.
elewanacollection.com
Tarangire Treetops Camp
Quem nunca sonhou com uma casa na árvore? Aqui há vinte. No edifício central há um embondeiro com mais de 800 anos e um bar e piscina ideais para um cocktail de fim de tarde. Tem um furo de água onde os animas vão beber.
elewanacollection.com
& Beyond Ngorongoro Crater Lodge
É daqueles locais onde se vai uma vez na vida. Até pelo preço, cerca de mil euros por noite. São 30 suites de luxo, tratamento exclusivo, vista direta para a cratera e uma decoração luxuosa que nos transporta para um palácio.
andbeyond.com/ngorongoro-crater-logde
Fazer
Masai Mara
O mais famoso parque queniano. É aqui que (entre julho e setembro) ocorrem as migrações de milhares de animais entre este parque e o vizinho Serengeti. Fica a menos de 250 km de Nairobi.
Samburu
No centro do Quénia, a 350 km da capital. Tem boa diversidade e quantidade de animais.
Amboseli
A 140 km a sul de Nairobi. Surge logo a seguir a Masai Mara como o santuário de natureza mais visitado do Quénia. Tem aldeias masai e vista para o Kilimanjaro, a mais alta montanha de África.
Tarangire
No Norte da Tanzânia. Vale pela sua exclusividade e menor número de turistas. Há muitas espécies de animais e uma paisagem repleta de embondeiros.Tem mais de 550 espécies de pássaros.
Cratera de Ngorongoro
Património Mundial classificado pela UNESCO. A maior cratera vulcânia inativa do mundo, uma criação da natureza com cerca de três milhões de anos que conserva dentro dos seus vinte quilómetros de perímetro 25 mil animais.
Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.