Há poucos lugares no mundo onde a presença portuguesa tenha sido tão intensa. A transferência da capital para Lourenço Marques (atual Maputo), em 1898, fez da ilha de Moçambique uma cápsula do tempo de um velho e assombroso mundo forjado entre a vibrante matriz suaíli e o arrebatamento colonial pelas riquezas do Índico. Mais de um século depois do abandono, a ilha está finalmente a acordar do seu sono de beleza. E é um privilégio acordar com ela.

Texto e fotografias de José Sérgio

Alinhadas junto à berma da estrada, que o chapa vindo de Nampula percorre cada vez mais vagarosamente, prolongando um suspense que dura há demasiadas horas (e há demasiado calor), dezenas de abayas coloridas penduradas em cabides oscilam ao vento como se nos acenassem. Não pode estar longe a ilha de Moçambique, com o seu islão festivo e multicolor apesar dos tantos séculos de arquitetura e de dominação cristã. Havemos de ver mais arco-íris dobrando as silenciosas esquinas da velha cidade de pedra que os portugueses ergueram para ser a sua capital no Índico – e que depois, quando tiveram de abdicar do tráfico de escravos para a Maurícia e para o Brasil, trocaram por Maputo, abandonando-a à sua sorte e permitindo, com alguma justiça poética, que os habitantes originais voltassem a reclamar o lugar e a reconduzi-lo à sua exuberante matriz suaíli.

Até estacar no Lumbo, a poucos metros da ponte que isola do continente esta cápsula de um tempo e de um mundo há muito extintos, o chapa há de soluçar aqui e ali, entregando os passageiros desta longa viagem (galinhas e eletrodomésticos incluídos) ao seu destino final, algures por trás da floresta de capulanas e de tchuna babies (leia-se: calças de ganga) que, como as abayas, o traje dominante das mulheres muçulmanas, se compram e se vendem na berma da estrada. O mundo tal como o conhecemos fica do lado de cá dessa ponte de quase quatro quilómetros; do lado de lá da baía, é toda uma outra dimensão que se abre, imune às lógicas infernais do quotidiano, à escravatura dos ponteiros do relógio, à própria passagem das horas, dos dias, dos meses, dos anos.

Não é um lugar-comum: entrar na ilha de Moçambique é atravessar um portal. Aqui, o vaivém entre o passado e o presente é incessante, como se o século XV da transformadora ancoragem de Vasco da Gama, ainda a caminho da Índia, o século XVI da estada de Luís de Camões – «tão pobre que comia de amigos», mas aproveitando dois invernos forçados no Índico para acabar «de aperfeiçoar as suas Lusíadas para as imprimir», como relataria Diogo de Couto –, o século XVIII da grande pujança do tráfico de escravos e o século XX do abandono e do esquecimento fossem tempos simultâneos, ou mesmo contemporâneos, tornados presentes não apenas pelas estátuas e pelos memoriais mas porque nunca se consumaram verdadeiramente como passado.

Há muito que o tempo parece não passar por aqui. E no entanto é grande a azáfama na cidade de pedra, onde uma febre de reconstrução e de reabilitação tomou conta do silêncio e do mistério de ruas, vielas, ruínas e edifícios que durante mais de cem anos viveram como sonâmbulos, tal como é grande a azáfama na cidade de macuti (as tradicionais folhas de coqueiro espalmadas que cobrem as casas na metade sul da ilha), sobretudo quando as horas de ponta da chegada dos barcos de pesca e das chamadas do muezzin à grande mesquita quebram a balsâmica indolência natural deste mundo insular de apenas um quilómetro quadrado.

Durante a maré vaza, os mariscadores peneiram as águas que hoje os característicos dhows do Índico cruzam em busca de lagostas e peixe fresco

Comecemos pelo princípio, e devagar, que este não é um lugar para pressas. Atravessamos a ponte na caixa aberta de uma pick-up, as mochilas encaixadas a custo entre os cestos e as trouxas das mulheres macua cuja algazarra me esforço em vão por entender (e vice-versa: os nossos dialetos, ambos bantu, são parentes demasiado afastados), mergulhamos por minutos na transbordante cidade de macuti a que a esmagadora maioria dos 15 mil habitantes da ilha (e dos passageiros desta pick-up) chama casa, e quando regressamos à tona, já na cidade de pedra, o sossego do fim de tarde domina por completo.

Atrás da fachada ocre de uma casa de comércio do século XIX, convertida em pensão, a pequena piscina rodeada de buganvílias está deserta. O dia que começou há mais de mil quilómetros, na cidade da Beira, noite cerrada ainda, recolhe-se finalmente, com os últimos raios de sol embalados por estas águas azul-turquesa. Mergulhemos. Tudo o resto pode esperar.

Pedra e cal

Povoada desde 200 a.C. por tribos bantu cujos descendentes puderam reocupar a cidade após a debandada dos portugueses – ao fim de quatro séculos de ouro, marfim, pau-preto e escravos, a sua utilidade como entreposto comercial estava esgotada –, a ilha de Moçambique já era um efervescente porto árabe, então na dependência do sultão de Zanzibar, quando Vasco da Gama ali fez escala em 1498, à procura do caminho marítimo para a Índia (seguir-se-iam mais duas paragens antes de chegar a Calecute: Mombaça e Melinde). Mas para este pequeno banco de coral de três quilómetros de comprimento e 600 metros de largura, um quebra-mar natural no imenso oceano Índico, à entrada da baía de Mossuril, houve um antes e um depois desse encontro com a armada portuguesa.

A cidade de pedra e cal que hoje ocupa a metade norte da ilha, e que a UNESCO declarou Património da Humanidade em 1991, é o produto de 400 anos em que o lugar funcionou como centro operacional de um império comandado por um pequeno reino na cauda da Europa, com os seus triunfos e as suas violências coloniais. E o melhor lugar para mergulhar nessa longa história é sem dúvida a Fortaleza de São Sebastião, uma das mais antigas edificações europeias no hemisfério sul, rematada pelo único exemplar de arquitetura manuelina em Moçambique, a Capela de Nossa Senhora do Baluarte.

Até lá, o caminho desdobra-se num labirinto de avenidas largas e vielas estreitas que, depois de séculos de abandono, estão finalmente a acordar do seu longo sono de beleza. Nos últimos anos, a ilha de Moçambique agarrou-se, na sua felizmente modesta escala, à boia de salvação do turismo, e uma parte do belíssimo património colonial deixado a ruir ganhou uma segunda vida. Os tempos não tão distantes em que havia apenas um hotel e dois restaurantes ficaram lá atrás, mas, pelo menos para já, a aura deste lugar fora do mundo não parece ameaçada: mesmo os empreendimentos mais luxuosos (na sua maioria de investidores estrangeiros) que por estes dias dão novo uso às paredes de cor pastel até aqui condenadas a morrer de pé são recatados e low profile, como se estivesse em vigor um pacto tácito para que este quilómetro quadrado permanecesse um segredo bem guardado.

A cidade de pedra e cal que hoje ocupa a metade norte da ilha é o produto de 400 anos em que o lugar funcionou como centro operacional de um império comandado por um pequeno reino na cauda da Europa.

Enquanto o turismo de massas se mantém à distância, os visitantes continuam a poder usufruir da ilusão de que têm a ilha só para si. E há alturas em que têm mesmo, como nesta manhã em que a imensa Fortaleza de São Sebastião é toda nossa (o mesmo acontecerá depois no Palácio de São Paulo) e do guia que nos explica a ascensão e a queda deste ponto estratégico para o domínio comercial do Índico que logo em 1507 os portugueses converteram num posto permanente (e só muito mais tarde em capital oficial). Era na ilha de Moçambique que os navios da Carreira da Índia, a primeira via rápida Lisboa-Goa, se reagrupavam a meio da viagem e esperavam os ventos favoráveis da monção; e era também na ilha de Moçambique que os têxteis e as especiarias vindos do Oriente se trocavam pelos bens mais preciosos arrancados ao interior do continente africano. Durante vários séculos, os canhões colocados no topo desta fortaleza, mandada construir em resposta ao assédio turco, enfrentaram a cobiça de omanis e holandeses; hoje, já não há inimigos a navegar estas águas de um verde hipnótico que os mariscadores peneiram durante a maré vaza e que os dhows cruzam vagarosamente em busca de lagostas e peixe fresco. Em toda a ilha, não encontraremos melhor miradouro.

Mas a história triunfal contada pelas paredes grossas da Fortaleza de São Sebastião, assim como pelos tesouros do Palácio de São Paulo (que foi colégio jesuíta e residência do governador antes de Samora Machel decidir transformá-lo em museu), pela talha dourada da Igreja de Nossa Senhora da Saúde e mesmo pelas lápides comidas pelo tempo e pela humidade tropical do velho cemitério cristão, na outra extremidade da ilha, não diz toda a verdade sobre a ilha de Moçambique. A outra história, mais sangrenta, menos triunfal, é a do tráfico desumano que fez a prosperidade deste lugar. No final do século XVIII passavam por aqui, em direção às plantações de açúcar da Maurícia, da Reunião e do Brasil, cerca de cinco mil escravos por ano; poucas décadas depois, seriam já trinta mil. Desde 2007, deixou de ser possível ignorar que este lugar não seria o que é hoje sem eles: um pequeno memorial financiado pela UNESCO, o Jardim da Memória, lembra o capítulo mais triste do esplendoroso passado da ilha de Moçambique.

Coqueiros e mar

A independência do Brasil e a abolição do comércio de escravos deram a machadada final no ciclo de prosperidade da ilha de Moçambique, deixando o caminho livre para o regresso dos habitantes originais, que os portugueses tinham expulsado para o outro lado da baía. Até hoje, é na metade sul que se fixaram, reclamando cada centímetro quadrado disponível para as suas casas construídas em barro e folhas de coqueiro, e que a cidade é mais viva e mais exuberante. Labirínticos, os bairros da cidade de macuti albergam milhares de vidas, que a certas horas do dia e da noite transbordam para a mesquita e para o mercado, afadigando se em torno do peixe acabado de descarregar ou espreguiçando-se à sombra generosa das figueiras-da-índia.

O relógio, aqui, está sincronizado com as rotinas do islão, mas de um islão tropical e aberto à curiosidade de quem só está de passagem – tal como, no coração colonial da ilha, as portas da Igreja da Misericórdia estão abertas de par em par durante o ensaio do coro de mulheres, um festim de vozes afinadas e capulanas de todas as cores que ao sábado à tarde faz parar o (escasso) trânsito local de motorizadas e bicicletas.

Nos últimos anos, parte do património deixado a ruir ganhou uma segunda vida. Mas, para já, a aura deste lugar não parece ameaçada.

Apesar do aparato da presença cristã (em melhor ou pior estado, as igrejas ainda dominam a silhueta da cidade), a matriz suaíli da ilha de Moçambique voltou a assenhorear-se deste lugar que a geografia tornou permeável aos mais extraordinários e improváveis cruzamentos. E como o tempo parou aqui, e parece determinado a deixar-se estar, raparigas cobertas com as suas máscaras de musiro (um cosmético natural milenar preparado a partir de uma árvore local) cruzam-se com negociantes de cartões de telemóvel, enquanto vendedores ambulantes de lagosta se detêm nas esquinas a pôr a conversa em dia com o casal belga que tem belos planos para o velho edifício da Capitania. Ao mesmo tempo, o dono do restaurante mais atmosférico da cidade oferece ao cliente que ficou sem dinheiro uma boleia até à caixa automática mais próxima e, num velho salão de fotografia da cidade de macuti, em frente a um muro que é uma sapataria ao ar livre, preparo-me para retratar um fotógrafo que dedicou toda a sua vida a retratar as gentes da cidade. Depois, como o tempo, também haveremos de parar por aqui. Há um pequeno barco à vela à espera no pontão, e a partir daí só coqueiros e mar. Mergulhemos mais uma vez. Tudo o resto pode esperar.


Guia de viagem

Viajar

Bandeira de Moçambique

Documentos: os visitantes portugueses necessitam de um visto que pode ser obtido junto das representações oficiais de Moçambique em Portugal.
Moeda: metical (1 EUR=68,7 MET)
Fuso horário: GMT+2 horas
Idioma: português
Distância: 7896 quilómetros

Ir

Nampula e Nacala são os aeroportos mais próximos da ilha de Moçambique, pelo que o troço final da viagem terá de ser feito de carro ou de autocarro a partir de uma destas cidades. A TAP é a opção mais confortável para quem sai de Portugal: voa diretamente para Maputo, de onde a companhia aérea nacional, a LAM, tem pelo menos dois voos diários para Nampula e dois voos semanais para Nacala.

Dormir

A oferta de alojamento na ilha beneficiou de um grande boost nos últimos anos, mas duas das melhores opções no que diz respeito à relação qualidade-preço já lá estavam quando tudo começou: a casa de hóspedes O Escondidinho, cuidadosa reabilitação de um velho estabelecimento comercial do tempo dos portugueses cujos quartos rodeiam um sossegado pátio com piscina; e o Pátio dos Quintalinhos, o belíssimo projeto de reconversão a que um arquiteto italiano submeteu uma discreta casa colonial nas imediações da mesquita (a vista do terraço é impagável). Outras boas (e económicas) hipóteses são o clássico Ruby Backpackers, cuja receção é também o melhor posto de informação turística de toda a ilha, ou o mais recente e muito bem localizado Café Central. Para uma estada mais luxuosa, o Feitoria Boutique Hotel e o Villa Sands, ambos em cima do Índico, são duas das possibilidades (e mais dois exemplos da segunda vida que está a ter o património arquitetónico da cidade), mas o verdadeiro quebra-corações fica do outro lado da baía, em Mossuril, e chama-se Coral Lodge.

Tel: +258 26610078
oescondidinho.net
Tel: +258 26610090
mozambiqueguesthouse.com

Comer

Além do pão com badjia, o clássico mata-bicho que é uma instituição da comida de rua local (muito fácil de encontrar no mercado), a lagosta é omnipresente: a única dúvida é mesmo que tamanho escolher. Pode comprá-la na rua a um vendedor ambulante, e depois arranjar onde a grelhar, ou procurá-la no Restaurante Relíquias, cuja esplanada é um dos sítios para estar ao pôr do Sol (o outro é o bar O Pontão, de onde é possível saltar para mais um banho na baía). A Volta ao Mundo também ficou totalmente fã dos excelentes pratos do dia do Café Âncora d’Ouro (e dos seus grandes janelões virados para a Igreja da Misericórdia) e do atum com gengibre e malagueta ou com gergelim do Karibu. E voltaria a correr para o Bar da Sara só para poder devorar mais uma vez a matapa, um viciante prato tradicional moçambicano que na ilha se faz com siri-siri (algas) em vez de folhas de mandioca.

Passear

O tamanho da ilha de Moçambique faz dela o lugar ideal para uma exploração a pé. Mas há outros pontos de interesse nas redondezas que valem bem um (ou vários) passeios de barco: as ilhas de Goa e Sete Paus, a praia da Carrusca (ou de Chocas-Mar), nada menos do que paradisíaca, as povoações de Cabaceira Pequena e de Cabeceira Grande… Genito, o mais famoso e bem-humorado dos guias locais (também conhecido por Harry Potter), tem um pequeno catálogo de excursões à disposição.

Tel: +258 845464817
genitomagictour.com


Reportagem publicada originalmente na edição de agosto de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 298.

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