O Katrina não silenciou a capital do jazz. Cerca de dez anos depois da tragédia, New Orleans reergueu‑se (quase) por completo e está tão ou mais forte do que nunca. Uma cidade viva, colorida, mundana, que não vira a cara à luta nem abdica da vida de bairro. Porque o turismo também pode ser um furacão.

Texto João Ferreira Oliveira
Fotografias Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Ele faz‑me lembrar alguém, talvez alguém famoso – nos Estados Unidos há sempre alguém que nos faz lembrar alguém famoso –, talvez até seja um ator, não sei. Não interessa. Tem entre 70 anos e o infinito. A mulher é um bocadinho mais nova, não terá mais de 80. Estão sentados, de mãos dadas, a assistir a um concerto no Bamboula’s. Um bar que abriu apenas em 2013, mas que se transformou desde logo num dos melhores bares de música ao vivo da cidade. De vez em quando há alguém ou um grupo que entra (olha, aí vem um) aos gritos, com os copos, mas percebe de imediato que este não é o sítio ideal para isso. Não é a rua certa para isso. Aqui também há copos, muitos copos, e às vezes há gritos, mas vem‑se sobretudo pela música. Jazz, pois claro. E blues.

Não tiro os olhos deles. Eles não tiram os olhos do palco. Largaram as mãos, agora. O homem vai ao saco e saca dois pares de sapatos. Sapatos de dança. Uns para ela e uns para ele. Guarda os que traziam calçados, levanta‑se e estende‑lhe a mão, sem nunca abrir o sorriso. Ela sorri, fingindo‑se envergonhada. Talvez esteja mesmo envergonhada. Dançam devagar, mas bem. Dançam muito bem, para a idade. Dançam magistralmente. Estão sozinhos, mas não por muito tempo. Um par de jovens junta‑se a eles. Junta‑se outro par, e outro. No palco um velho músico, negro, e um jovem baterista, branco, continuam a tocar. Talvez improvisem, não sei, é jazz, o segredo está no improviso. Tocam durante vários minutos, muitos minutos, o tempo suficiente para o bar encher, a maioria encostada ao balcão, pés de chumbo e duros de ouvido como eu que, ainda assim, não conseguem deixar de se comover perante a dança da noite.

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Cerca de dez minutos depois o casal senta‑se, volta a trocar de sapatos e abandona a sala debaixo de um coro de aplausos. Aplausos contidos, respeitosos. «Até amanhã», diz o músico. «Quem são?», pergunto ao barman. «Vivem aqui perto. Vêm cá pelo menos uma vez por semana. Dançam uma música ou duas e vão‑se embora.»

Quem não souber dançar pode sempre aprender. Todas as quartas‑feiras há aulas com a professora e bailarina Giselle Anguizola, acompanhada pela banda The New Orleans Swinging Gypsies. Entre as duas e as seis da tarde. New Orleans é um postal, mas ainda tem vida lá dentro. Neste caso no número 514 da Frenchmen Street.

New Orleans está longe de ser uma grande metrópole. É uma cidade com uma dimensão familiar, ideal para explorar a pé. Ou de elétrico. quando os dias são mais quentes e há menos chuva.

Bourbon Street vs. Frenchmen Street

«As pessoas de cá não vão para Bourbon Street, só os turistas. Nós quando queremos ouvir boa música, bom jazz, vimos para a Frenchmen Street», sussurra‑me um rapaz da terra, num bar uma porta à frente. «Na Bourbon ouves a música que poderias ouvir em qualquer outra cidade. Em Nova Iorque, em Barcelona ou no teu país. Não vale a pena lá ir.» Vale a pena lá ir, é claro. O verdadeiro viajante (seja lá o que isso for) tem tendência a fugir das armadilhas turísticas, mas neste caso não é obrigatório escolher uma rua em função da outra. São complementares. Só passando e passeando por uma se percebe o porquê de a outra continuar a fazer gala da sua autenticidade.

A Bourbon Street é o coração do French Quarter. O Quarteirão Francês é o coração da cidade. Há quem venha a New Orleans e se fique por aqui, como se New Orleans fosse só isto. Não é, mas poderia ser, afinal parece conter tudo aquilo que nos remete para o imaginário que desde sempre vimos nas TV e no cinema. A herança e a arquitetura de inspiração francesa, espanhola, crioula e caribenha; as varandas de ferro forjado; as carroças puxadas a cavalos; as galerias de arte; os cafés literários; os café fashion; os cafés à grande e à americana; as fanfarras que aparecem em qualquer canto, a qualquer hora, às vezes com dezenas de elementos, a tocar saxofone e trompete como se não houvesse amanhã. Como se não houvesse noite.

Há noite, sim, todos os dias. Na Bourbon Street, pois claro. É uma espécie dos lisboetas Bairro Alto e Cais do Sodré ao cubo. Música ao vivo porta sim porta sim, muito álcool, muitos jovens, inúmeras famílias a passear com os filhos de mãos dadas. Foliões nas varandas dos bares a lançar confetti e serpentinas, como se fosse Carnaval. Todas as noites é Carnaval, se bem que o Mardi Gras, o famoso Mardi Gras, imagem maior da cidade, só tenha lugar a 28 de fevereiro.

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A Frenchmen Street fica fora do quarteirão francês, apesar do nome. Uma rua mais pequena, mais calma, arquitetonicamente menos bonita, musicalmente mais autêntica. «Pensem nela como o irmão mais velho e mais sofisticado da Bourbon – o sítio onde ir para apreciar restaurantes, bares e night clubs sem todas aquelas casas de strip e luzes de néon.» Quem o diz são os guias do Free Tours by Foot, eles que todos os dias fazem vários passeios pela rua. Fazem por toda a cidade. Este tem passagem por locais como o Frenchmen Art Market e uma série de bares, entre eles o d.b.a. – «o melhor bar de jazz da cidade», garantem –, onde todas as semanas toca o vocalista e saxofonista Glen David Andrew. É um dos novos meninos bonitos da cena local. Pesquisem, que vale a pena. Um antigo bad boy que passou por uma fase de adição e autodestruição e voltou mais forte do que nunca. À semelhança da própria cidade.

Cidade Katrina

Os habitantes não passam o dia a pensar no furacão Katrina, até porque já passaram mais de dez anos (agosto de 2005), se bem que muitos continuem a ter pesadelos com aquele que foi um dos mais violentos furacões da história dos Estados Unidos da América. Ou será que ainda só passaram onze anos? O tempo é relativo, já se sabe, dependendo do ângulo em que nos coloquemos. É difícil passear por estas ruas sem pensar que 80 por cento da cidade ficou submersa. Que os ventos chegaram a atingir os 280 quilómetros por hora. É quase impossível não entrar no Mercedes‑Benz Superdome – casa dos New Orleans Saints, com capacidade para mais de 70 mil pessoas, o estádio norte‑americano que mais vezes recebeu o mítico Super Bowl – e não nos lembrarmos dos dias em que serviu de abrigo para milhares de pessoas que ficaram sem teto. Um milhão de pessoas ficou sem casa, desencadeando aquela que foi a maior migração interna desde a Guerra Civil e ao mesmo tempo abrindo uma crise social e política, com quase todo o país a acusar as autoridades de falta de preparação e incapacidade de reação. A mesma nação valente que dois anos antes invadira o Iraque para salvar o mundo não fora capaz de salvar a cidade. Morreram cerca de 1500 pessoas.

É quase impossível não pensar no furacão Katrina que devastou a cidade em agosto de 2005. Ainda há feridas abertas, mas a recuperação foi assinável. Há quem a apelide de milagre.

«Foi o desastre natural mais dispendioso da história dos Estados Unidos», disse Barack Obama, em 2015, de visita à cidade, aquando da comemoração dos dez anos da tragédia. Acrescentou ainda que «se o Katrina foi inicialmente um exemplo do que acontece quando o governo falha, a reconstrução foi um exemplo do que acontece quando o governo trabalha em conjunto». Uma reconstrução várias vezes apelidada de milagre, se bem que algumas vozes defendam que o trabalho está longe de estar concluído. Afirma que a cidade está mais cara e mais branca – recorde‑se que existe uma grande comunidade negra, a maioria dela oriunda de famílias de escravos. De acordo com os censos mais recentes, há menos cem mil negros agora na cidade agora do que em 2005, sendo que apenas dez mil brancos não voltaram.

Em fevereiro de 2006, meio ano depois do furacão, as autoridades locais decidiram celebrar o Carnaval. A 150ª edição. A decisão também foi controversa. A cidade continuava destruída. Alguns achavam que era demasiado cedo para dançar. Outros – a maioria, garantem‑nos – via no Mardi Gras uma terapia. Uma forma de luta. «Ainda há feridas abertas, é claro, uma tragédia destas demora a cicatrizar, mas é difícil ver a olho nu. As feridas por aqui curam‑se com álcool e, sobretudo, com música e boa disposição», diz Beth d’Addono, jornalista e autora de um guia sobre a cidade, no Cane & Table, bar de cocktails no número 1113 da rua Decatur.

Vida de bairro

New Orleans não é só Bourbon Street nem Frenchmen Street. Tal como não é só noite, nem só música, nem só turismo. Nenhum destino é só aquilo que aparenta ser e esta cidade do Louisiana está também cheia de vida durante o dia. É uma cidade de bairro. «Normalmente noutras cidades americanas perguntam‑nos em que universidade andámos, aqui pergunta‑se qual o liceu. O liceu remete para o bairro. Ainda há raízes muito profundas, apesar do turismo.»

Continuamos com Beth. Ela que escreveu um guia sobre a cidade, apesar de não ser da terra. Nascida em Filadélfia, com raízes italianas, apaixonou‑se por New Orleans há cerca de duas décadas. Vive dos seus guias. E de trabalhos pontuais que vai fazendo. O turismo é a principal fonte de rendimento local, se bem que, por aqui, como em tantos outros destinos, o excesso de visitantes continue a ser tema de café. Em 2015 recebeu 9,5 milhões de pessoas (já bem próximo dos valores de 2004, que rondava os dez milhões por ano) e em 2018 esperam chegar aos 13,7 milhões. Será um valor recorde.

Seja qual for o objetivo do viajante todos os caminhos vão dar à noite e aos concertos de jazz. Sobretudo na Bourbon e na Frenchmen Street.

Ninguém quer perder este comboio, mas a maioria também não quer abrir mão da sua essência. Algumas casas do Garden District – uma zona mais nobre, de vivendas, afastada do centro – ostentam orgulhosamente cartazes dizendo que querem vizinhos e não turistas. As autoridades locais foram das primeiras a declarar guerra à plataforma de alojamento temporário Airbnb (juntamente com cidades como São Francisco, Santa Mónica, Amesterdão, Barcelona ou Nova Iorque), mas foram também os mais lestos a tentar chegar a acordo com a empresa. Ao contrário da Big Apple, que no passado mês de dezembro aprovou uma nova lei que prevê multas pesadas para particulares que aluguem uma casa inteira por períodos inferiores a trinta dias.

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Manter a essência passa precisamente por conservar a vida de bairro. Uma atmosfera de cidade pequena. Afinal, e apesar do turismo, New Orleans está longe de ser uma grande metrópole, não chegando sequer aos 400 mil habitantes. E como em qualquer cidade de bairro que se preze, está cheia de ruas perfeitas para descobrir a pé. Como a referida rua Decatur. Fica no limite do French Quarter, de frente para o malfadado, eterno, literário e imortal rio Mississipi, onde alguns barcos remetem de imediato para as aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn.

Os dois fiéis amigos e Mark Twain continuam muito presentes no espírito da cidade, havendo vários tours literários e um sem‑número de cafés decorados em sua homenagem. Como o Huck Finn’s Café, no número 135. Convém também não esquecer de passar pelo Jazz Cafe, no número 209. Ou pela Southern Candymakers, no número 334, com chocolates caseiros melhores do que os das mães. Ou no Café du Monde, no número 800, aberto 24 horas por dia desde 1862, ponto de romaria devido aos beignets – folhado de massa de origem francesa polvilhado com açúcar em pó. As moradas obrigatórias são muitas, a rua é longa, mas vale a pena percorrê‑la até ao fim.

Ao contrário de outras cidades (turísticas), em que é preciso levar um mapa constantemente aberto e um guia com os melhores sítios no bolso, aqui quase todas as ruas têm bares, restaurantes, mercados, cafés, galerias de arte, património, defeitos e virtudes próprias. Continuam a ter pessoas lá dentro. Como a Beckham’s Bookshop. Uma livraria de livros em segunda mão que está no Quarteirão Francês desde 1967 e na Decatur Street desde 1979. «Andamos nisto há cinquenta anos», diz Carey Beckham. Não fala no plural por acaso. Alton Cook, um jovem da mesma idade, também ele algures entre os 80 anos e o infinito, acompanha‑o desde o início. Têm mais de 60 mil livros e milhões de histórias a contar, mas preferem ouvir. «Somos dois velhos marretas», diz Alton. «Só sabemos o que vem nos livros.»

Falamos sobre o Texas, de onde um deles é originário e não regressa há várias décadas «para não se chatear», de New Orleans, de Portugal, de Saramago, de Lobo Antunes, de Pessoa e de Donald Trump, que, à data desta viagem, ainda não tinha sido eleito presidente. «Não acreditamos que o impossível aconteça, mas se acontecer garanto‑lhe que a América não vai acabar», dizia Beckham. Ou será que foi Alton? Não interessa. «Também não acreditávamos que a cidade se recompusesse depois do Katrina e cá estamos», concluiu – concluíram – antes de nos oferecerem um livro de Mark Twain.


Guia de viagem

Moeda: Dólar Americano USD (1 Euro – 1,04 USD)
Fuso horário: GMT – 6 horas
Idioma: Inglês
Quando ir: fevereiro. É sempre um bom mês para ir até à cidade. É mês de Mardi Gras.

Geografia

Baton Rouge é a capital do Louisiana, mas é New Orleans que tem os epítetos de maior e mais populosa cidade do estado ‑ cerca de 350 mil habitantes. A área metropolitana ronda 1,2 milhões de pessoas. Está localizada junto ao rio Mississipi, a cerca de 150 quilómetros da foz, no golfo do México. Várias áreas da cidade estão localizadas abaixo do nível do mar. Esta é mesmo uma das regiões com menor altitude do país.

Clima

O clima é subtropical. Os invernos são amenos e os verões quentes e húmidos. Durante o mês de janeiro a temperatura mínima média da cidade é de 7°C, e máximas diárias rondam os 17°C.

Gastronomia

A gastronomia local é um motivo de interesse em New Orleans. Há mais de mil restaurantes em toda a cidade, desde comida internacional ‑pasta, hambúrgueres e inúmeros restaurantes de cozinha de autor ‑, mas são as comidas cajun e crioula que fazem verdadeiramente a diferença. A gastronomia cajun é originária dos descendentes de colonos franceses expulsos da Acadie (no Leste do Canadá) que foram viver para a região. As bases são rústicas, provincianas e têm na cebola, no pimentão verde e no aipo uma espécie de trilogia mágica. Chamam‑lhe a santíssima trindade de vegetais. A comida crioula é em tudo semelhante, mas, ao contrário da primeira, que se desenvolveu entre as populações mais pobres, nasce da adaptação de pratos europeus mais clássicos, uma vez que era, sobretudo, servida em casa dos aristocratas e dos mais endinheirados.

Ficar

New Orleans Marriott
Quase todas as grandes cadeias internacionais estão representadas na cidade. Mas há também muitos hotéis de charme e pequenas casas alugadas por locais, sobretudo através da plataforma Airbnb ‑ essencialmente localizadas no Garden District, uma zona residencial a poucos minutos do centro. A equipa da Volta ao Mundo preferiu ficar no coração da cidade, no New Orleans Marriott, em plena Canal Street. É a artéria principal da cidade e ponto ideal para quem quer explorar o French Quarter, mas também os restantes bairros. Além da localização tem tudo o que é suposto ter num hotel do grupo: quartos espaçosos, piscina, ginásio aberto 24 horas por dia e… Starbucks.
555, Canal Street
Tel.: +1 5045811000
Quarto duplo a partir de 215 euros por noite
marriott.com

A não perder

Mothers Restaurant
É um dos restaurantes incontornáveis da cidade. Servem The world’s best bake ham desde 1938. A especialidade maior é a po boy, carne de porco fumada em tempos servida aos poor boys ‑ jovens pobres, que não tinham dinheiro para se alimentar.
401, Poydras Street
Tel.: +1 5045239656
Preço médio: 20 euros
mothersrestaurant.net

Free Tours By Foot
Uma excelente forma de conhecer a cidade para quem gosta de andar a pé e não quer gastar dinheiro. Os guiassão, normalmente, jovens, bem informados e profundos conhecedores da cidade. Cada participante paga o que pensa ser justo.
freetoursbyfoot.com/new-orleans-tours

Bamboula’s
Abertos das 11 da manhã até que a música ao vivo acabe. Nunca se sabe ao certo a que horas. Às vezes já é de manhã. Jazz e blues, pois claro.
514, Frenchmen Street.
bamboulasnola.com

D.B.A.
É o sítio (ou pelo menos um dos melhores) para ouvir o verdadeiro jazz de New Orleans. Todos os dias, até às cinco da manhã.
618, Frenchmen Street
dbaneworleans.com

French Market
Se não for lá ter sozinho é porque não está a dar as voltas certas. É uma referência na cidade, espaço com produtores e agricultores locais e muitas bancas ideais para um lanche ou um almoço mais em conta.
Aberto das 10h00 às 18h00.
2, French Market Pl
frenchmarket.org

Frenchmen Art Market
É a versão mais pequena, mais artística, mais alternativa, do French Market. Ideal para quem procura obras de autor.
frenchmenartmarket.com

Sites

>> visittheusa.com/
>> neworleansonline.com

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