O mais jovem país do mundo, geologicamente falando, é muito mais do que um país. É uma terra de fantasia, mágica, selvagem, pura, viva, bela às vezes bruta, um misto de paraíso e inferno, realidade e ficção, em que só os islandeses seriam capazes de (sobre) viver. Há um antes e um depois de uma visita à Islândia.

Texto de João Ferreira Oliveira
Fotografias de Leonel de Castro / Global Imagens

«Eles são um bocadinho brutos, não acha?», diz-me, a medo, um dos portugueses que partilha connosco o autocarro, depois de tentar meter conversa com um islandês sem receber grande troco. Estamos integrados num grupo da Pinto Lopes Viagens, um programa de nove dias à volta do país com o sugestivo nome de Ilha Mágica. Ivo Martins, o nosso guia, a viver na Islândia há oito anos, contextualiza: «As condições meteorológicas são adversas durante a maior parte do ano, às vezes mudam de dia para dia, de hora para hora. O islandês não pensa o que vai fazer. O islandês faz.» Uma ponte que cai, uma estrada que fica intransitável, um vulcão que entra em erupção – quem não se lembra do impronunciável Eyjafjallajokull, que paralisou o espaço aéreo europeu em 2010? –, aqui tudo pode acontecer, e não apenas no inverno. «É preciso ser forte. Eles não são brutos, viveram isolados durante muito tempo, apenas não são propriamente delicados. Como que a extensão da própria natureza.»

Fama de guerreiros que atravessa fronteiras. A revista canadiana Vice fez mesmo uma reportagem em 2014 intitulada Ninho de Gigantes, em que tentou perceber como é que um país com a mesma população da cidade de Malmö, na Suécia – uns singelos 330 mil habitantes para um território dez por cento maior do que Portugal – é capaz de produzir alguns dos homens mais fortes do planeta. Todos os anos há islandeses entre os finalistas da prova World Strongest Man.

Mesmo os que não participam em qualquer competição são verdadeiros poços de força e de energia. Homens e mulheres, doutores e engenheiros, dos mais novos aos mais velhos. «Toda a gente tem família que vive no campo ou trabalha na pesca. Isto faz que a sociedade seja mais desburocratizada. Ninguém está à espera que o outro resolva os seus problemas. Há pouco mais de trinta anos nem sequer tinham fruta. São uns guerreiros», diz, com visível admiração, antes de encerrar o assunto, em jeito de anedota. «Pouco tempo depois de cá ter chegado vi uma velhinha no supermercado carregada com sacos de compras e tentei ajudar. Ela atirou-me um olhar fulminante, como se estivesse a ofendê-la. Acho que quem ia precisar de ajuda era eu».

O peso da Geografia

Em poucos locais do mundo se sentirá de forma tão intensa o peso da geografia. A força do mapa. Bastam algumas horas de estrada para percebê-lo. Estamos a 286 quilómetros da Gronelândia – a pequena ilha de Grímsey, 40 quilómetros a norte do território, é mesmo atravessada pelo círculo polar ártico –, estão aqui alguns dos maiores e mais ativos vulcões do planeta, os maiores fiordes, a maior cascata da Europa, géiseres, praias de areia preta, campos de lava, lagoas glaciares, piscinas geotermais, icebergues, é impossível não ser absorvido por este caldeirão. «Se vocês soubessem o que está por baixo dos vossos pés nem cá vinham», brinca Ivo. Sabemos. Por baixo desta superfície que literalmente significa Terra Gelada (Iceland), onze por cento coberta por glaciares, corre um rio de lava que vai modificando e moldando o território. Cresce todos os anos cerca de cinco centímetros. Têm mesmo a ilha mais jovem do planeta, Surtsey, resultado de uma erupção vulcânica ocorrida em 1963 e desde então classificada como reserva Natural. Uma espécie de laboratório, vivo, apenas com um heliporto e um farol a que só um pequeno grupo de cientistas tem acesso, de forma a monitorizar e proteger o ecossistema.

Resistir às armadilhas do turismo é, aliás, uma das grandes preocupações de muitos islandeses e outro dos pontos que pode levar à falta de empatia inicial. E não apenas entre os mais velhos. Atente-se nesta conversa com um estudante de 19 anos, na cosmopolita Reiquejavique: «Um dia fui com um grupo de amigos ara uma piscina, queríamos aproveitar o sábado para descansar, mas apareceu uma equipa de filmagens estrangeira para gravar um anúncio.» Aquilo que em muitos países seria visto por um grupo de jovens como um dia diferente, aqui foi considerado um incómodo. «Tinham um drone e ficaram lá o dia todo. Deviam ter respeitado quem lá estava e voltado outro dia. Não sei porquê mas agora toda a gente parece querer vir para aqui», conclui, com firmeza, como se os seus olhos, acostumados a esta realidade, não conseguissem filtrar a beleza que quase nos cega.

Mais uma vez é compreensível. Afinal estamos a falar das piscinas, os locais de sociabilização por excelência dos islandeses. Em cada pequena localidade há uma piscina geotermal, a céu aberto. Além disso, os números estão aí para comprovar que muito tem mudado nos últimos anos, sobretudo depois do colapso económico e da erupção do Eyjafjallajokull. Se por essa altura o número de visitantes rondava os quinhentos mil por ano, quase todos concentrados durante o verão, agora ultrapassa a barreira de um milhão – para uma população de trezentas mil pessoas. Uma aposta concertada por parte das autoridades, para ajudar a superar a crise, e que acompanhou a crescente curiosidade pelo país, como se todos nós, espetadores que seguíamos à distância os acontecimentos, tivéssemos acordado para este vulcão adormecido que era a Islândia.

Por vezes temos a sensação de estarmos noutro planeta, tal a beleza, força e estranheza da paisagem.

Durante o inverno, época em que a maioria dos turistas hiberna, fruto das condições climáticas mais adversas (há pouco mais de quatro a cinco horas de luz por dia), os islandeses voltam a estar orgulhosamente sós, entregues a si e à sua natureza.

Não receiem, contudo, que aqui ninguém o vai tratar mal. Bem pelo contrário. Convém não confundir alguma rudeza nos modos e secura nas palavras, com má educação. Conquistar a confiança e o sorriso dos islandeses faz parte da essência da própria viagem. De qualquer viagem, na verdade, mas aqui ainda mais. Até porque os próprios nem sempre têm consciência desta sua outra face mais austera. «Normalmente as pessoas são muito amigáveis. Diz-lhes que és repórter e vão dar-te tudo o que precisas», escreve-me uma amiga jornalista, por mensagem, depois de lhe ter pedido algumas dicas sobre Reiquejavique. Está fora do país, em trabalho, mas faz questão de elaborar uma extensa lista com sugestões. Depois de nos aconselhar a comer num restaurante junto ao porto, beber um copo na Rua Laugarvegurinn, a principal rua da capital e a mais conhecida e movimentada do país, ou no Íslenski Barinn, um bar local com música islandesa «onde toda a gente se encontra para (muita) cerveja», termina dizendo que se formos simpáticos e pacientes as pessoas nos levarão a todo o lado com elas. Deixa, ainda assim, um aviso: «Nós gostamos muito de festa, de sair à noite, mas têm de ter cuidado, não entrem em competições. Não há muita gente a beber e aguentar como nós.» Segue-se uma série de sorrisos, virtuais, mas que soam totalmente verdadeiros.

Sonho ou realidade?

Sair à noite é apenas uma força de expressão. Esta viagem começa (e acaba) em Reiquejavique, por isso há tempo suficiente para explorar a capital. Passeamos pelo centro da cidade, uma cidade pequena, organizada, ideal para descobrir a pé; passamos junto ao gabinete de trabalho do primeiro-ministro, uma casa modesta (aparentemente) sem qualquer segurança – «se lá forem bater à porta é possível que seja ele a abrir», garante Ivo; vamos até ao Harpa, sala de concertos por excelência, um edifício de vidro que contrasta com a restante arquitetura, ruas repletas de casinhas coloridas que, aqui e ali, mais parece uma aldeia de pescadores do que uma capital; vamos à rua Laugarvegurinn, tal como Inga nos sugeriu, bebemos uma cerveja, duas cervejas, várias cervejas, mas a noite não chega. Nunca chega, no verão. A luz das duas da madrugada confunde-se com o sol das duas da tarde e acabamos por rumar ao hotel atordoados, não vergados pelo álcool, mas, mais uma vez, pela força da natureza. Não é islandês quem quer, muito menos do dia para… para o dia.

É bonita a cidade, seria até um bom destino para um city break, se estivesse a apenas uma ou duas horas de distância de avião, mas é assim que nos fazemos à estrada que a Islândia se apresenta na sua plenitude. A Islândia por que todos anseiam. Um postal perfeito, um filme de Terrence Malick, o paraíso para quem quiser encontrar a imagem de fundo para o seu computador ou o quadro ideal para colocar na parede da sala ou do escritório. Às vezes não parece bem um país, mas sim um parque temático, um jardim de experiências divino com que nós, viajantes, simples humanos, nos podemos deleitar.

Exagero? Tudo aqui é um exagero. E nem sequer é preciso ir muito para o interior do país, onde se situam as zonas ainda mais geladas, inóspitas, apenas ao alcance de guias especializados ao volante de monster trucks. Cruzamo-nos com eles constantemente. Jipes com rodas gigantes especialmente feitos para andar nos glaciares deixando o mínimo de marcas possível. Uma outra viagem, um outro mundo. A nossa é feita de autocarro, quase sempre junto ao litoral, mais de um milhar de quilómetros ao longo da Ring Road, a estrada nacional construída apenas em 1974 e que liga o país de uma ponta à outra. Antigamente a maioria dos turistas ficava-se pelo Círculo Dourado, um percurso com uma extensão de trezentos quilómetros à volta da capital.

As atrações (não são atrações, desculpem, é mesmo natureza), sucedem-se a todo o instante. Quase nem temos tempo para absorvê-las a todas, mereciam um dia por si só, uma reportagem completa. Como o lago glaciar de Jökulsárlón, junto ao Vatnajokull, o maior glaciar da Europa. Uma área de 18 km2 e uma profundidade de 284 metros repleta de icebergues em tons de azul por onde fazemos um passeio num barco anfíbio, perante o olhar tímido de algumas focas. Não é de estranhar que aqui se tenham rodado dois filmes de James Bond, A View to a Kill, de 1984, com Roger Moore, e Die Another Day, de 2002, com Pierce Brosman. E ainda Lara Croft: Tomb Raider.

Esta é uma terra cheia de lendas e criaturas mitológicas. Na literatura mas também no imaginário popular.

A lista é longa quando de fala de filmes e de séries, desde Batman Begins, até Flags of Our Fathers e Letters from Iwo Jima, ambos de Clint Eastwood, Hostel II, uma película de terror com cenas rodadas na pacífica e angelical Blue Lagoon, a tão afamada Guerra dos Tronos, ou ainda Prometheus, de Ridley Scott. A cena de abertura teve lugar em Detifoss, nada mais nada menos do que a maior queda de água da Europa, com 44 metros de altura e cem metros de largura. Uma cena em que um alienígena, ou um humanoide, ingere uma substância misteriosa e desintegra-se na água, perante a presença de uma nave espacial. Estranho? Nem por isso. A própria literatura – a capital está classificada como cidade literária pela UNESCO – e todo o imaginário islandês estão cheios de lendas, de figuras mitológicas. Como os Huldufólk, uma espécie de elfos que habitam em fendas de rochas, cavernas e escarpas e que apenas algumas pessoas têm o privilégio de poder ver. Ainda hoje, há muito quem jure tê-los visto. Nós não conseguimos, mas tirámos uma fotografia com Grýla e Leppalúði, criaturas usadas para assustar as crianças que se portavam mal, e que agora têm réplicas na cidade de Akureyri. A quarta maior do país, lá bem no extremo norte, com cerca de 17 mil habitantes, por muitos considerada como a mais bonita de todas. Tem, inclusive, uma estância de esqui com 24 pistas, apesar de estar localizada a apenas mil metros de altitude.

Ivo, omnipresente, reconhece-lhe a beleza e conhece-lhe todos os cantos, até porque foi a sua terra durante muitos anos, antes de se mudar para a capital. Leva-nos até ao topo para que vejamos a vista para o fiorde Eyjafjörður, mas é já cá em baixo que tem guardada uma surpresa. Pede que olhemos para os semáforos. «Para os semáforos?», perguntam todos. Sim, para os semáforos. O sinal verde é para avançar, como em qualquer parte do mundo, mas o vermelho tem a forma de coração! Uma iniciativa criada em 2008 para dar ânimo e carinho às suas gentes, mostrando-lhes que o dinheiro não era o único caminho para a felicidade.

Foi precisamente por amor, e para ganhar mais algum dinheiro, que David Barbosa e Ana Coelho – jovem casal que trabalha no Hotel Sveinbjarnargerði, já do outro lado do fiorde, em plena Ring Road – vieram cá parar. Ela é formada em turismo, David é o cozinheiro. Chef. Chegou a trabalhar na cozinha do conceituado The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, mas o salário não condizia com a fama da casa e decidiu arriscar. «Tenho cá um tio, ele ajudou-me com a estada, mas não foi fácil. Trabalhei numa fábrica de peixe, num matadouro, tentava trabalhar em restaurantes mas não conseguia porque não tinha o diploma», diz. Pensou desistir, já não aguentava o frio, a falta de luz natural no inverno, «nós, latinos, não fomos feitos para viver assim», até que foi lavar loiça para um restaurante onde conheceu o dono do hotel, que apostou em si.

«Eles podem parecer algo brutos, no início são algo desconfiados, mas depois de te conhecerem são fiéis e honram a sua palavra como ninguém. Basta um aperto de mão.» Ivo, no país há mais tempo, abana a cabeça em sinal de concordância, enquanto David faz o resumo. «Não sei quanto tempo aguentaremos, até porque a vida é mais cara, e isto é duro, uma coisa é visitar outra é viver, mas para já vamos ficando. Além disso, esta terra tem qualquer coisa. Não é fácil de explicar, mas tem qualquer coisa. Uma força… Há momentos em que… não sei…», termina, de forma abrupta, preferindo não verbalizar.

Momentos como aquele que vivemos na cidade de Húsavík, terra onde se instalou o navegador Garðar Svavarsson, o primeiro escandinavo a viver na Islândia, em 870. Atualmente é mais conhecida por ser um dos melhores destinos do mundo para a observação de baleias. Há saídas de barco ao final da tarde e ao início da manhã. A saída do final da tarde é anulada, devido à força do mar e do vento, mas de manhã tudo está mais calmo e o barco pode finalmente partir rumo à baía de Skjálfandi. Por instantes parece que estamos nos Açores.

A companhia garante que o avistamento de baleias é quase sempre garantido, mas diz a regra que há sempre uma exceção e parece ser o caso. Até que, de repente, eis que ela aparece. Não uma baleia qualquer, mas a baleia-azul, uma das mais difíceis de se deixar ver, o maior animal do mundo, capaz de atingir mais de 25 metros de comprimento ou pesar mais de cem toneladas. Vemos-lhe apenas o dorso, ainda assim, suficiente para perceber que é real e não um monstro ou uma criatura mitológica, por mais que ninguém pareça acreditar no que acabou de presenciar. Não há nada mais transcendente do que a realidade.


Guia de viagem

Moeda: Coroa Islandesa (0,007 euros)
Fuso horário: GMT – 1 hora
Idioma: islandês
Documentos: cartão de cidadão ou passaporte
Quando ir: o verão será a melhor altura para visitar o país. Há sol, luz e temperaturas amenas durante quase todo o dia. O inverno está apenas ao alcance dos mais aventureiros.

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