Um antigo colégio feminino judeu e hospital militar transformado em atração com galerias de arte, museus, restaurantes e bar. Onde é que isto é possível? Em Berlim, pois claro, terra e cidade da reabilitação urbana com estilo e muito bom gosto.
Texto e Fotografias de João Nauman
Auguststrasse situa‑se em pleno coração do Mitte, o mais central e famoso dos bairros berlinenses. A rua é formada por edifícios baixos e linhas modernas que assentam que nem uma luva a famílias endinheiradas. Há galerias de arte, restaurantes com estrelas Michelin, lojas de designer e cafés exímios na arte de bem servir, e as suas gentes estão tão bem aprumadas que se confundem com uma passagem de modelos. Comparado com Neukolln e Kreuzberg, outros bairros de artistas, o seu nível de higiene e decadência pode muito bem ser considerado um paraíso, só mesma a vista sobre a torre da televisão parece indicar que se trata da mesma cidade.
É por tudo isso inesperado admirar o Jüdische Mädchenschule em plena Auguststrasse e saber nele quase duzentos anos de história. Mas Berlim e os berlinenses são exímios na arte de reabilitação urbana e, com isto, da sua memória coletiva. Veja‑se, por exemplo, os casos do complexo do jornal Der Tagesspiegel transformado em galerias de arte, ou o Zentrum am Zoo, um conjunto de edifícios datados do pós‑guerra convertido no Bikini Berlin, centro comercial onde residem mais de vinte marcas de design emergentes.
Este belíssimo exemplar está de pé há quase dois séculos. Inaugurado em 1835 como escola exclusivamente dedicada a meninas judaicas, foi só um século mais tarde que adquiriu a sua arquitetura atual. O exercício de expansão esteve a cargo do arquiteto Alexander Beer, também ele de origem judaica, que lhe atribuiu traços mais próximos da escola da nova objetividade arquitetónica do que da linha estética da Bauhaus, o movimento mais popular dessa época. Por ser considerada como uma excelente escola de artes e línguas, foi um dos primeiros alvos quando, em 1933, o nacional socialismo de Adolf Hitler chegou ao poder. A troca de liderança trouxe também a redução da metade da população das catorze salas de aula, diminuindo ainda mais à medida que os anos de guerra progrediram. Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial e seguindo a lei que encerrava todas as escolas judaicas na Alemanha, foi reconvertida num hospital militar até ao cessar‑fogo final.
Na época do pós‑guerra, mantendo‑se a zona como território soviético, o edifício regressou à sua função inaugural, isto por volta da década de 1950, agora como escola secundária Bertold Brecht. Mas nem o «santo» literato ajudou e a popularidade jamais regressaria aos níveis anteriormente atingidos. Ultrapassou a decadência do Bloco de Leste, viu emergir a nova Alemanha, mas isso não a impediu de ser abandonada no final dos anos 1990 até ter sido utilizada para a Bienal de Berlim em 2006. Após o retorno à comunidade judaica, três anos mais tarde, o Jüdische Mädenschule foi finalmente renovado e revitalizado como espaço cultural em 2012.
Embora sem abalar a sua solidez, os anos de desuso danificaram os seus interiores, pelo que a obra de renovação impunha sensibilidade. E pode falar‑se de uma operação com muito sucesso. O trabalho do ateliê de arquitetura Grüntuch Ernst em conjunto com o promotor Michael Fuchs – que aqui abriu a sua galeria, manteve a fachada e praticamente todas as divisões. Também muito do design de interior acabou por sobreviver, casos dos azulejos na entrada e da iluminação da sala de aula. Ficou, assim, para o futuro, renovado com projetos de arte e gastronomia, sem esquecer as camadas da história da cidade.
Jüdische Mädchenschule
AUGUSTSTRASSE 11‑13
MAEDCHENSCHULE.ORG
Arte
O edifício contém três espaços dedicados à arte contemporânea. A Camera Work é uma galeria que ocupa todos os quatrocentos metros quadrados do primeiro piso e replica a fórmula da galeria‑mãe inaugurada em 1977 no bairro de Charlottenburg: exposições de ícones da história da fotografia mas também de nomes contemporâneos que têm expandido esta forma de expressão. O terceiro piso, por sua vez, é preenchido pela Galeria Michael Fuchs e pelo Museum Frieder Burda, a mais recente aquisição do Maedchenschule. Ambos se dedicam a arte contemporânea embora de forma diferente. Enquanto a galeria segue o modelo tradicional, com apresentações regulares dos artistas que representa – casos dos famosos Douglas Gordon e Frank Stella–, o Museu funciona como showcase da coleção de arte contemporânea residente em Baden Baden.
Camera Work
CAMERAWORK.DE
Terça a Sexta 10H00-18H00
Sábado 11H00-18H00
Galerie Michael Fuchs
MICHAELFUCHSGALERIE.COM
Terça a Sexta 10H00-18H00
Sábado 11H00-18H00
Museum Frieder Burda
MUSEUM‑FRIEDER‑BURDA.DE/DE/SALON‑BERLIN
Quinta a Sábado 12H00-18H00
Museu Kennedy
Na primeira década deste século uma enorme exposição dedicada à antiga American First Family correu o planeta, tendo vindo a estabelecer‑se por definitivo no segundo piso do Mädchenschule. As galerias do Museu servem assim para perpetuar esse legado e fazem-no com exposições regulares dedicadas à família como a temas relacionados, como a recente mostra de imagens sobre a presidência de Barack Obama, em sala até ao início de março.
Museu Kennedy
THEKENNEDYS.DE
Terça a Sexta 10H00-18H00, Sábado 11H00-18H00
Restaurantes
Os dois espaços gastronómicos são uma amostra da boa gestão conceptual do edifício e prova de como lado a lado podem conviver ideias tão díspares mas simultaneamente concordantes. O restaurante Mogg & Melzer traz a informalidade dos deli nova‑iorquinos. Inspirado pela história deste lugar, propõe uma carta em que a estrela são pratos judaicos como sopa matzo ball, pastrami e shakshuka, embora também sirva pratos vegetarianos, saladas e o seu badalado cheesecake. Por sua vez, o Pauly Saal propõe refeições num ambiente mais sofisticado e elegante, inspirado na Berlim do antigamente, com cadeiras de veludo, toalhas de mesa de linho branco, madeira e um curioso míssil da Segunda Guerra Mundial. Da sua cozinha saem invenções do jovem chef Arne Anker, cujo interesse por velhas receitas alemãs com produtos frescos, regionais e da estação lhe valeu recentemente a estrela Michelin.
Pauly Saal
PAULYSAAL.COM
Terça a Sábado 12H00-14H00 e 18H00-21H30
Bar aberto até às 02H30
Reserva obrigatória
Preço médio s/vinho: 100 euros
Mogg
MOGGMOGG.COM
Diariamente 11H00-22H00
Fim de Semana 10H00-22H00
Preço médio: 15 euros
Auguststrasse
Para além de um belo passeio, os cerca de oitocentos metros de rua oferecem muitos momentos de descoberta. No nº 28, por exemplo, reside a Do You Read Me? (doyoureadme.de), a loja de revistas mais famosa da cidade, dedicada a publicações que fazem do papel impresso um objeto de culto. Duas portas ao lado, no nº 24, encontra‑se o Clarchens Ballhaus (ballhaus.de), um dance hall com mais de cem anos de existência. É também nesta rua que a famosa marca dinamarquesa de decoração Hay (hayberlin.de) decidiu abriu a sua loja em Berlim – nº 77‑78. Da mão-cheia de galerias propomos no nº 69 a KW (kw‑berlin.de), um espaço de pesquisa e reflexão da arte contemporânea, com exposições regulares. Finalmente, uma última paragem no nº 52 e na Von und zu Tisch (vonundzutisch.com), loja com produtos gourmet germânicos.
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