Tiago Fernandes tinha a carta de condução há meses quando se fez à estrada pela primeira vez. Somou dez mil quilómetros de uma assentada. É sempre de carro que viaja e já cumpriu um desafio imenso: uma volta ao continente africano em todo-o-terreno ao longo de seis meses e muitos milhares de quilómetros.
Texto de Bárbara Cruz
Tiago Fernandes é um viajante com uma particularidade: a primeira vez que esteve em cada um dos países que já visitou – e foram dezenas de países – foi de carro, sempre no lugar do condutor. «Viajar de avião não me diz grande coisa. Quando viajamos de carro, por terra, vamos vendo a paisagem mudar ao longo do caminho, vamos tendo noção do país. Andar de avião é só chegar do ponto A ao ponto B», resume. Tirando as voltinhas que tem dado por Portugal, Tiago, de 27 anos e residente em Oliveira do Hospital, já terá feito cerca de 150 mil quilómetros ao volante.
Licenciado em arqueologia mas sem nunca exercer – prefere trabalhos temporários que lhe permitam mais facilmente juntar o que ganha e sair do país o tempo que lhe apetecer –, Tiago começou cedo a bater o alcatrão. Aos 19 anos, pouco tempo depois de ter tirado a carta, comprou um Mini antigo e fez-se à estrada pela Europa. «Uma vez por ano saía do país», conta. Os percursos rondavam, no final, os dez mil quilómetros, sendo a viagem maior aquela que o levou à Europa de Leste. «Sempre tive gosto por carros, tirei a carta para poder ter autonomia e poder viajar de carro. Cada viagem que fazia era maior do que a anterior, mesmo que viajar de carro atualmente não compense nada, sobretudo na Europa. Os voos são muito mais baratos», admite.
Já chegou a conduzir 24 horas seguidas e não se importa de ir sozinho no carro, ainda que por vezes procure companhia na internet. Dizem-lhe que é arriscado e, confessa, «a maior parte das pessoas não acha piada à ideia, mas eu acho interessante. Gosto de partilhar a viagem com alguém que não é um amigo ou outra pessoa do dia-a-dia. As coisas podem correr bem ou mal, o feitio pode não encaixar. Mas é preciso saber lidar com isso», sublinha.
A estimativa de Tiago aponta para mais de 150 mil quilómetros percorridos pelo mundo.
A primeira vez que trocou as estradas europeias pelas africanas foi há cerca de quatro anos. Tinha comprado um Land Rover e surgiu-lhe a oportunidade de acompanhar um grupo organizado que percorre no deserto as mesmas pistas que o Paris-Dakar. «Tinha bastante tempo livre e ao fazer a viagem até Dakar decidi explorar e descer um bocadinho a sul, talvez chegar à Guiné-Bissau.» Acabou por não conseguir, por não ter visto, mas antes de regressar a Portugal ainda passou pela Mauritânia e por Marrocos.
Meses depois, um amigo que soubera da tentativa frustrada de chegar à Guiné-Bissau apresentou-lhe um grupo que estava a organizar uma viagem ao país e tinha como objetivo fazer um documentário. Precisavam de alguém que já tivesse alguma experiência no trajeto e em passar as fronteiras terrestres. Juntou-se a eles e passou dois meses em viagem. Estávamos em 2015.
Desde essa altura foi crescendo a vontade de expandir horizontes em África, sempre ao volante. Começou a estudar mais as fronteiras, a fazer contactos. Através da net, chegou à fala com Victor Moniz, mentor do projeto solidário Volta a África, que junta pilotos de motos e todo-o-terreno que distribuem bens de primeira necessidade durante as viagens em solo africano. Havia de o conhecer pessoalmente já em África, quando se cruzaram durante o percurso que Tiago começou em fevereiro de 2018: Victor de moto, Tiago já ao volante do seu Land Rover. «Conheci-o no Benim e ainda fizemos parte do trajeto até à Nigéria juntos», explica.
Associou-se à causa solidária e também distribuiu roupa e material escolar enviado por patrocinadores para as crianças de Angola e Moçambique. Porém, Victor teve de interromper o percurso na chegada à Nigéria, devido a problemas com o visto para entrar no país. Os vistos, diz Tiago, foram mesmo o maior desafio para a organização da viagem a África, aquela que começou em fevereiro do ano passado e só viria a terminar seis meses depois. Não foi sozinho: além da companhia do motociclista, ainda levou um rapaz de Aveiro que conheceu, mais uma vez, através da internet. «Mas quem fez a viagem toda com o carro fui eu. Ele conduziu uma vez ou duas», atalha.
Tem dificuldade em partilhar o volante: «A ideia sempre foi ser eu a fazer a viagem e gosto mesmo de conduzir, não me faz diferença nenhuma conduzir muitas horas seguidas. É por gosto.»
Passou por 25 países e, quando recorda o percurso, até parece que o caminho foi fácil e sem percalços: «De Portugal para Espanha, atravessámos o estreito de Gibraltar para Marrocos, descemos e entrámos no Sara ocidental sempre pela costa até à Mauritânia, daí fomos pelo interior em direção a Bamako, no Mali, depois Burkina Faso, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Gabão, Congo, República Democrática do Congo, Angola, Namíbia, África do Sul, Lesoto e Suazilândia. Depois Moçambique, subimos até Malawi, Tanzânia, Ruanda, Uganda, Quénia, Etiópia, Sudão e Egito», diz de um fôlego.
Além da aventura, a viagem tem caráter solidário. A distribuição de bens de primeira necessidade é um dos objetivos.
No fim da viagem, ainda esteve no Cairo mais de duas semanas a analisar a hipótese de seguir para a Síria ou para a Líbia, mas acabou demovido pelas dificuldades de obter os vistos, mais do que pelos perigos das zonas de conflito. «Em África também tivemos situações complicadas, mas nunca me passou pela cabeça desistir», garante. Além dos assaltos constantes, recorda um episódio mais perturbador: no Mali, enquanto esperava o visto para o Burkina Faso, decidiu com o companheiro de viagem visitar a Grande Mesquita de Djenné. «Toda a gente nos dizia que não era aconselhável e que se fôssemos devíamos levar guia e nunca passar lá a noite.» Contrataram um guia para quatro dias mas acabaram o passeio de forma abrupta e a fugir dele, que insistia em mudar o carro de lugar e fazia muita pressão para que ficassem a dormir na zona. Livraram-se do homem mas foram apanhados pela polícia, que não os queria deixar seguir por razões de segurança. Passaram a noite numa esquadra por zelo das autoridades, que só os deixaram partir de manhã.
No carro, Tiago levava sempre mantimentos e gasóleo para «vários dias», assim como peças suplentes, e foi capaz de solucionar as pequenas avarias que iam surgindo. Foram 45 mil quilómetros por estradas de alcatrão ou terra batida. «A pior estrada que apanhei foi em Moçambique, uma nacional com tantos buracos que era impossível fazer se não fosse de camião ou 4×4», recorda. E do trânsito caótico das grandes cidades africanas, do bulício de Lagos ou Nairobi, passava rapidamente ao rural mais remoto, onde um carro é tão raro que as crianças fugiam quando o viam ao longe. Chegou a andar três dias fora de estrada e nem o GPS ajudava, mas viajar de carro nunca o impediu de chegar às pessoas. «Falava com gente que não me conhecia e me abria a porta de casa. Foi o que mais me surpreendeu na viagem.»
Já tem novos planos, mas por agora o Land Rover está numa garagem à espera de arranjo. O regresso a África é quase certo: quer continuar o projeto solidário e voltará à internet à procura de um aventureiro que queira dividir custos. E de patrocinadores que lhe encham a mala com presentes para quem precisa.
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