Liliana tinha uma carreira de sucesso e uma vida de glamour. Mas cansou-se da fachada, deixou tudo e foi à procura do mundo que lhe faltava. Viajou quase dois anos sozinha e voltou uma pessoa diferente.
Texto de Bárbara Cruz
Artigo publicado originalmente na edição de março de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 293.
Liliana Ascensão tinha a vida perfeita: um emprego de direção num grupo hoteleiro, uma casa na zona do Príncipe Real, em Lisboa, tinha um namorado, conhecia pessoas de todo o mundo. «A minha vida era perfeita em teoria. Tinha tudo, mas não havia paixão em nada», diz a portuense de 36 anos. «Tinha chegado ao topo da montanha, aquela que defini para mim como montanha, e não havia lá nada.»
Eram dúvidas atrás de dúvidas na mente da gestora hoteleira que há muito andava dividida entre a carreira e a vontade de largar tudo «para viver a vida». Liliana começou a trabalhar muito cedo, aos 19 anos, fruto da insatisfação com a licenciatura que estava a tirar. Entrou em Medicina Dentária mas logo percebeu que a vocação não era aquela e então começou a procurar trabalhos em part-time. Arranjou emprego num hotel de cinco estrelas no Porto onde a função que tinha era receber os hóspedes à porta do pequeno-almoço com um sorriso. «O único requisito era chegar a horas e estar bonita», recorda a rir-se. «Deslumbrei-me com tudo aquilo, desisti do curso e fiquei no hotel a trabalhar.»
Foi subindo na hierarquia porque conciliou o trabalho com o curso de Turismo e foi acumulando pós-graduações. Tirava férias na época de exames e nunca podia deixar o emprego no verão para viajar porque era época alta. «Tinha períodos de férias muito curtos e começou a crescer em mim uma frustração porque não havia grandes viagens. Era uma dualidade: estava a ganhar bem, era reconhecida, ia mudando de função e de hotéis. E pensava: agarro-me a isto ou vou viver a vida?»
A dada altura, tomou uma decisão: ia apostar na carreira mas fazer um ano sabático logo que tivesse oportunidade. Só que iam surgindo novos desafios, promoções, a abertura de um hotel que a fez mudar-se para Lisboa. Foi adiando até que não pôde mais. «A minha vida era superglamorosa. Mas demiti-me e fui viajar», resume. Decidiu anunciar na empresa no início de 2015 que, no final daquele ano, iria despedir-se para correr o globo. «Por uma questão de lealdade», explica. Correu mal: deixaram de lhe passar informação, «era como se eu tivesse tirado a camisola». Acabou por sair dois meses depois.
Liliana tornou-se líder de viagens da The Wanderlust, mas ainda não encontrou um sítio para chamar de casa. Ainda…
Por tudo se ter precipitado, assume que ficou «sem chão». Mas não desmoronou: «O que fiz foi mudar radicalmente a minha vida. Explorei comunidades em Portugal, projetos de permacultura na Península Ibérica, fiz retiros de meditação, de silêncio, comecei uma prática intensiva de ioga.» Terminou a relação com o namorado. «Foi um ano de descoberta pessoal e até de dor, queria perceber onde me doía». No final do ano saiu de Portugal para a Índia e só regressou vinte meses depois. «Nos primeiros tempos a família e os amigos apoiaram-me, depois começou o ‘quando é que voltas?’. A certa altura roubaram-me o telefone e estive três meses sem arranjar outro porque não sabia responder àquelas perguntas e queria mesmo ser livre. Só dizia: não há volta, isto agora é um estilo de vida, eu vivo assim, em viagem.»
Começou na Índia, seguiu para Nepal, Tailândia, Laos, Camboja, Vietname, Malásia, Indonésia, Hong Kong e Macau. Voou para os EUA, andou pela Califórnia e depois foi para a Costa Rica fazer voluntariado num infantário, antes de começar um périplo pela América do Sul: foi do Panamá até à Califórnia por terra, com várias paragens na Guatemala, onde até esteve a gerir um ashram de ioga e meditação. Fez uma roadtrip numa carrinha hippie da Guatemala à Califórnia na companhia de uma rapariga austríaca e passou muito tempo com populações indígenas. «Tenho muito interesse por entender as cosmovisões e as várias formas de interpretar o sagrado. Acabei por estar nos sítios certos à hora certa», admite. Conviveu com tribos no Peru e no México e admite que ter consumido a ayahuasca, a bebida «sacramental» feita com plantas da selva amazónica – com substâncias psicotrópicas –, lhe trouxe «mais clareza» sobre quem é e marcou-a para sempre.
Ver a natureza intocada ameaçada pelos plásticos e as tribos absorvidas pelos vícios ocidentais deixou-a também mais alerta para a necessidade da preservação do ambiente. «Uma senhora indígena com o traje tradicional de mão dada com um miúdo com a T-shirt do Ronaldo. O que teve mais impacto em mim foi ver essas populações contaminadas com as nossas modernices», admite, acrescentando que o desenvolvimento, infelizmente, está a chegar mais depressa do que a educação.
«A minha vida era superglamorosa. Mas demiti-me e fui viajar», resume.
Durante quase dois anos não traçou planos e deixou-se ir ao sabor da vontade. Andou por caminhos alternativos mas não se esquivou ao «profundamente turístico», garante. Chegou a procurar turistas quando, na Índia, foi sozinha para o festival Happy Holi em Vrindavan e se achou no meio de grupos de homens intoxicados que lhe tocavam sem parar. «Decidi que queria estar com estrangeiros, pessoas que percebiam a minha cultura. Então fui para o Taj Mahal.» Não foi a África porque já tinha feito uma viagem de carro até à Guiné Bissau; terminou a grande viagem em Nova Iorque, depois de recusar várias ofertas de emprego, porque quis estar em Portugal para ver o sobrinho que ia nascer.
O regresso foi agridoce: «Agora era a viajante, as pessoas queriam estar comigo, mas não entendiam a profundidade transformadora daquela experiência em mim. Queriam saber as histórias engraçadas», lamenta. «Senti-me profundamente sozinha.»
Tentou regressar ao mercado de trabalho, mas depois de quatro meses de angústia numa empresa de marketing percebeu que não era capaz de voltar a ficar fechada num escritório um dia inteiro. Tornou-se líder de viagens numa agência (The Wanderlust) e continuou a investir no seu «desenvolvimento pessoal», mas ainda não encontrou um sítio para chamar de casa. O objetivo, por agora, é trabalhar como freelancer em consultoria de restauração. Mas, a longo prazo, Liliana quer ter um projeto próprio para receber hóspedes, oferecendo «o mais autêntico e genuíno, e ao mesmo tempo estar ligada ao mais holístico». Fazer mais uma viagem de vinte meses? «Acho que não», confessa a sorrir. O desgaste é grande, «físico e emocional», conclui.