Em silêncio, os carros passam lá longe, sobre a ponte. Regressam a casa, terminam esta sexta-feira, terminam a semana. Há sempre alguma coisa que termina no outono e, por isso, esta hora é natural, a sua temperatura e o seu ritmo são adequados.

Deixei a Praça Unirii, sob o olhar de edifícios elegantes e a indiferença de pombos atarefados com pequenos dilemas. Atravessei as ruas do centro, cruzei-me com gente, luz filtrada pelo céu, vitrinas de lojas a apresentarem produtos e, ao mesmo tempo, na longa superfície do vidro, a refletirem gente e luz. Escolhi o corredor longo e retilíneo de um jardim, árvores altas de folhas vermelhas, amarelas, diversos tons de castanho, folhas nos ramos, como nuvens em chamas, folhas no chão, como mantos a submergirem os tornozelos; e estudantes, sozinhos ou em grupo, ainda carregados com mochilas, sentados em bancos, a olharem para o telemóvel. Sem esperar pelo semáforo, atravessei uma estrada de matrículas romenas. Depois, ruas calmas, vivendas, quintais, carros estacionados ou abandonados, passeios a desfazerem-se. E entrei no Parque Rozelor. Após labirintos de rosas, cheguei por fim às margens do rio Bega, onde agora caminho, paralelo à corrente.

«E entrei no parque Rozelor. Após labirintos de rosas, cheguei por fim às margens do rio Bega, onde agora caminho, paralelo à corrente.»

Por vezes, ultrapassam-me remadores de caiaque. Se deslizassem no ar, se pairassem, haviam de fazê-lo da mesma forma, com a mesma gentileza, fogem delicadamente do fim da tarde. Ninguém sabe onde está o frio deste mês. A brisa que faz tremer as folhas na copa dos choupos é morna ainda, recorda o sol, chegou a tocá-lo, teve essa experiência. As esplanadas dos cafés estão distribuídas ao longo do caminho, em ambas as margens, alternam-se com natureza ou com crianças a brincarem, a treparem por esculturas, pequenos romenos em escorregas e baloiços. Nas esplanadas, quase toda a gente fuma diante de uma cerveja ou de um café, consigo evocar na minha boca o gasoso dessas cervejas e o conforto familiar desse café. Sobre as mesas de madeira, levanta-se a névoa de tabaco e o moderado rugido das vozes, como incenso sagrado, ascendendo, atravessam a rede de lâmpadas já acesas, fiadas de lâmpadas cruzadas sobre as cabeças, como um teto de estrelas baixas.

As bicicletas passam devagar pelos caminhos, são longas as pedaladas. Não calculo a distância que fiz ao lado do rio, somos velhos amigos já. E é de repente que saio dos meus pensamentos, o céu passou por todos os tons de rosa e, agora escuro e azulado, encheu-se de corvos. São bandos de milhares de corvos, corpos negros, a piarem em coro, o seu ruído a aumentar-lhes o número, véus a contorcerem-se em toda a extensão do firmamento. Nesta apoteose é possível ter grandes pensamentos, lembrar o tanto que é maior do que nós. A noite será imensa, de certeza. Começou já o seu tamanho, estes corvos têm essa compreensão, é esse o seu anúncio. O rio prossegue, a noite instala-se, o céu grita. Fecho os olhos para sentir esta hora, é natural e adequada, há sempre alguma coisa que começa no fim.

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Crónica publicada originalmente na edição de dezembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 302.

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