Haverá poucas coisas melhores em viagem do que provar os sabores das terras por onde andamos. Sejam sabores diferentes em terras que já conhecemos ou sabores que julgamos conhecer em sítios onde nunca pusemos o pé. Viajar é também isto: provar.

Anthony Bourdain mostrou-o melhor do que ninguém. As viagens do chef e viajante norte-americano em programas de TV como No Reservations ou Parts Unknown trouxeram-nos os pratos, os sítios e as pessoas que neles habitam.

Mas eu nunca tinha ouvido falar de Anthony Bourdain. E não sabia grande coisa sobre a importância de um ingrediente essencial quando falamos de sabores em viagem: a envolvência. Aquela pitada de tempero que só existe ali, naquele sítio onde levamos aquela comida ou aquela bebida à boca. Até aquele mês de abril de 1999, quando o Sérgio Coimbra (responsável por esta revista à data), me mandou à Escócia para visitar uma destilaria de whisky. Eu deveria ir, experimentar, ver, sentir. E depois escrever a minha primeira reportagem para a Volta ao Mundo. Mesmo que – pormenor insignificante – eu não gostasse de whisky.

O diretor não queria um tratado histórico sobre a uisge beatha («água da vida», em gaélico). Não queria que eu explicasse quimicamente o processo de fermentação da cevada, a importância daquela água que brota das nascentes na zona de Speyside, quanto custava cada garrafa de Glenfiddich Single Malt de 12 anos ou 18 anos – eu e o fotógrafo Ricardo Polónio tínhamos viajado a convite do distribuidor da bebida em Portugal. O que ele queria é que eu falasse das pessoas. Das que fazem a bebida. Das que vivem na região. Das que bebem um copo de manhã para ajudar a furar o nevoeiro gelado das Terras Altas e das que nunca gostaram daquele cheiro mas há mais de sessenta anos vivem com ele debaixo do nariz.

Foi na Volta ao Mundo que percebi que não viajamos se não provarmos. E foi na Volta ao Mundo que fiz alguns dos melhores amigos que a vida me podia trazer.

Na primeira viagem que fiz para a Volta ao Mundo, pediram-me para falar de pessoas. Claro que misturei tudo e juntei história e química e cevada e levedura e as trutas do rio Spey. E o texto até terá ficado uma coisa decente. Mesmo que não tenha conseguido encaixar o velho William, que trabalhava na loja da destilaria depois de trinta anos a transportar as caixas para o armazém. O William, pai do Malcom, funcionário do departamento de exportação, e avô do pequeno Peter, que, depois da escola, gostava de ver a azáfama de turistas que ali desaguavam diariamente, vindos de Aberdeen ou Inverness.

Foi com a Volta ao Mundo que percebi, anos mais tarde, também na Escócia, que fish and chips pode ser uma refeição bastante decente se for saboreada num banco de madeira junto ao mar do Norte, perto de casas com fachadas de tijolos escuros e carros com volantes à direita. Foi com a Volta ao Mundo que descobri que não há gin and tonic como o que se saboreia numa reserva de vida selvagem na África do Sul. Foi com a Volta ao Mundo que me lembrei de que nunca devemos furar a regra de não beber água não engarrafada fora da Europa, mesmo que seja servida pelos amigos Ahmed e Mohammed, os dois jovens que me mostraram o lado não turístico do mercado de Khan-al-Khalili (perdi quatro quilos e ganhei uma gastroenterite entre o Cairo e Lisboa). Foi com a Volta ao Mundo que provei o pior café e as melhores tâmaras, servidos numa chávena para sete pessoas de mãos sujas no deserto de Omã. Foi com a Volta ao Mundo que comi arenque fumado em Copenhaga e arenque com picles em Helsínquia.

Foi na Volta ao Mundo que percebi que não viajamos se não provarmos. E foi na Volta ao Mundo que fiz alguns dos melhores amigos que a vida me podia trazer.

E foi graças à Volta ao Mundo – a publicação que melhor consegue misturar lugares, pessoas e sabores – que comecei a gostar de whisky.

 

 

 

Jornalista free-lancer. Foi redator, editor executivo e chefe de redação da Volta ao Mundo.

 

Imagem de destaque: Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens

Crónica publicada originalmente na edição de dezembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 302.

 

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