Visitar Berlim em 48 horas é um grande desafio. Mas possível. A capital alemã é uma das maiores da Europa e continua em constante mutação, com muito para ver e absorver. O truque passa por planear tudo com espírito aberto, porque a essência de Berlim também está nos detalhes.
Texto de Filipe Gil
Fotografias de Paulo Spranger/Global Imagens
Sexta-feira, hora de almoço. Berlim vive as últimas horas da semana. Gente e mais gente nas ruas, a pé, de trotinetes e de bicicletas, muitas bicicletas. Um caos, mas organizado, ou não estivéssemos na Alemanha.
Esta é a vida habitual de uma das maiores cidades da Europa, que alberga hoje cerca de 3,5 milhões de pessoas de cada vez mais nacionalidades. Visitar a capital alemã em 48 horas não é uma tarefa fácil, mas, com planeamento prévio e dicas de habitantes locais, é uma experiência fantástica para ser vivida em família ou mesmo sozinho.
A jornada começou no Hotel Sana Berlim, localizado a poucos metros de vários pontos de interesse. Um deles a movimentada Rua Kurfürstendamm, com três quilómetros de distância e muitas lojas para visitar. E ainda os grandes armazéns da KaDeWe, ao estilo da parisiense Galeries Lafayette.
Vera Campos, portuguesa que vive em Berlim, é uma das responsáveis do hotel português inaugurado em 2010. O Sana está a 25 minutos do aeroporto de Tegel e a 45 de Schönefeld e apresenta dois conceitos: residências e quartos.
Vera conta que o hotel recebe a visita de muitos alemães que fazem dele o ponto de partida para conhecer a capital e a zona envolvente, sobretudo em fins de semana prolongados.
Por isso mesmo pedimos ajuda para conhecer o que está para lá dos guias turísticos e dos locais de visita obrigatória. Entre outros conselhos, um mais inusitado: visitar um centro comercial a poucos metros do hotel. Mas não um qualquer, o Bikini Berlin, espaço com lojas alternativas e menos mainstream com vista para o zoo da cidade.
Por ali, e mesmo que se queira desviar o olhar, a Igreja Memorial Imperador Guilherme é omnipresente. A sua enorme torre destruída pelos bombardeamentos das forças aliadas na II Guerra Mundial faz-nos pensar que esta já foi uma cidade que passou por muitas fases conturbadas, sobretudo nos últimos cem anos. A destruição da torre da igreja serve para isso mesmo, recordar a todos a insensatez da guerra.
A destruição da torre da igreja serve para recordar a todos a insensatez da guerra.
E, também por ali, um mercado de rua alemão, com vários quiosques que servem copos bem altos cheios de cerveja, a companhia ideal para comer uma salsicha alemã. A mais típica de Berlim é a currywurst, regada em ketchup com pó de caril. Uma influência que ficou dos tempos em que as tropas britânicas trouxeram a especiaria para aquela zona no pós-guerra. Hoje está instituída. Em Berlim e não só.
No outomo, a noite cai depressa nesta zona da Europa. Com muitas opções de transporte, o táxi é seguro e barato. Talvez a cor bege, que em tempos era também a dos táxis portugueses, contribua para nos sentirmos mais confortáveis. A viagem, de pouco menos de 15 minutos, deixa-nos na Porta de Brandeburgo, um dos símbolos da cidade. Construída no século XVIII, é a porta de entrada na grande Av. Unter den Linden, que termina na ilha dos Museus, local com vários pontos museológicos a visitar. Com o dia já avançado, caminhar foi a opção para ir até ao Mitte (centro em alemão), a zona mais central numa cidade com vários centros. Seguiu-se a dica de uns amigos berlinenses para experimentar o restaurante de comida asiática da moda: o Cocolo Ramen. Num espaço contíguo servem-se, ao balcão, sopas ramen e outras especialidades asiáticas. A espera por lugar testa a paciência a qualquer um. Poucos ou nenhuns turistas mas muitos alemães, jovens, fazem fila à porta. É o preço a pagar para se estar na tendência numa cidade que teima em ditar a sua e não seguir a que dita Londres ou Paris.
Despertar tardio
No segundo dia, e depois do pequeno-almoço no hotel, rumou-se à Alexanderplatz, para conhecer melhor o bairro do Mitte. A opção foi apanhar o metro subterrâneo, o U-Bahn, que percorre a zona central da cidade e é uma das opções para viajar de forma barata em Berlim, o bilhete diário custa cerca de sete euros.
Chegamos à Alexanderplatz. A praça é também um centro comercial a céu aberto com lojas multinacionais paredes-meias com bancas com memorabilia da RDA e da União Soviética – aliás, para saudosistas e curiosos há um roteiro de locais na cidade que faz viajar para a época da Guerra Fria.
A azáfama da praça acalma a duas ou três ruas de distância. Sábado de manhã é sinónimo de sossego no centro do Mitte (passe o pleonasmo). Berlim acorda tarde e lenta ao fim de semana. As lojas abrem pelas dez da manhã e é por aí, não antes, que famílias berlinenses se deixam ver na rua. A Alte Schönhauser Strass passa, aos poucos, a ser uma das mais movimentadas. São várias as lojas e os cafés que merecem uma visita, sobretudo para quem tem curiosidade e interesse em saber os hábitos de quem vive ali. Descobrir uma cidade também é isso. Um dos locais a visitar é a padaria/café Zeit fur Brot ou, como alternativa, e para apreciadores de café artesanal, a Five Elephants – que nos últimos anos tem-se tornado uma instituição das novas cafetarias que produzem e fazem a própria torrefação. Os baristas exibem a sua mestria nas taças de café com desenhos na espuma. Mas não é aqui que um português ficará saciado com um expresso à maneira lusa. A experiência é outra, diferente. Quase ao lado, na mesma rua, uma loja que pela decoração faz parar. É a perfumaria Le Labo, com ar rústico e cru. Lá dentro, o perfumista Navat Miller prepara com a maior delicadeza possível um perfume para uma cliente. Tentamos falar com ele mas pede-nos para esperar até acabar a tarefa em mãos. Berlim é isto. Uma cidade sem pressa. A essência, o frasco, a embalagem, tudo é preparado com minúcia à nossa frente por Miller. Artesanal e, mais uma vez, original.
Ainda na mesma rua, a Alte Schönhauser Strass, há outra loja que salta ao olhar menos atento. Muita gente lá dentro e produtos de cerâmica que remetem para o melhor do design nórdico, não fosse uma legenda no vidro indicar handmade in Portugal (criado artesanalmente em Portugal).
A loja, Motel a Miio, é um projeto de duas amigas, Anna von Hellberg, diretora de arte, e Laura Castien, designer. Em 2016, apaixonaram-se pela loiça de um restaurante perto de Sagres, em Portugal. Foram à procura de quem a fabricava e daí até abrirem a primeira loja em Munique com esses produtos em exclusivo foi um ápice.
«Descobrimos o produto e trouxemos alguns para uma loja num bazar em Munique, o sucesso foi grande e daí nasceu e cresceu a nossa marca, hoje temos dez em várias cidades alemãs e em Viena, na Áustria.»
Depois disso, uma conversa com um criativo local, Frederik Frede, (ver caixa) noutro café da zona, o minimalista Black Isle Bakery, que fabrica os seus próprios pães, bolos e bolas e, claro, o seu próprio café. Este é sem dúvida um dos fatores mais apreciados pelos locais: produtos feitos ali mesmo na cidade com sabores e perfis únicos que se podem encontrar em poucos locais da cidade. Uma resposta à invasão de muitas marcas multinacionais.
No bairro do Mitte, numa loja de peças de cerâmica com design de ar nórdico, lê-se na montra: handmade in Portugal. Ali tudo é feito em Portugal.
Novamente no metro, a próxima paragem foi o Checkpoint Charlie, o local que serviu de inspiração a livros de John le Carré, era um posto de passagem entre o Ocidente e o Leste no tempo da Guerra Fria. O posto fica agora, ironicamente, ao lado de um MacDonald’s e perto de um centro de interpretação, o BlackBox Cold War Museum, que dá a conhecer alguns detalhes da Guerra Fria.
De seguida, e noutro ponto da cidade, uma vista à loja da moda, a Voo Store, loja alternativa que é hoje umas das referências do estilo vanguardista de Berlim. Está localizada numa rua que muitos consideram ainda ter o espírito da Alemanha de Leste: Oranienstrasse. Paramos para falar com alguns locais que falam da invasão de lojas multinacionais que, aos poucos, estão a matar o espírito da rua mais dada a movimentos comunitários. Ainda antes de se voltar ao Mitte para jantar houve tempo para uma visita rápida à Berlinische Gallerie, que até 27 de janeiro tem patente uma exposição imperdível dos cem anos do movimento Bauhaus.
Também ali poucos turistas e muitos locais. Felizmente. Novamente no Mitte, a escolha voltou a recair na comida asiática, para balançar com as várias currywurst comidas ao longo do dia. No restaurante Monsieur Vuong, aberto desde 1999, há um menu diferente a cada dois dias. Os preços acessíveis e a comida de qualidade tornaram-no uma instituição da comida asiática de Berlim.
As últimas horas
Se ao sábado Berlim acorda tarde, o domingo é dia de descanso total. E é um grande erro deixar compras de última hora para este dia, as lojas estão na sua maioria fechadas. No último dia utilizou-se um dos serviços do Sana Hotel: as bicicletas. É uma das formas mais interessantes de conhecer a cidade. Do hotel até à Porta de Brandeburgo são 20 minutos, que devem incluir a passagem pelo segundo maior parque da cidade, o conhecido Tiergarten. Nas escassas horas disponíveis até ao regresso a Lisboa houve tempo suficiente para visitar o monumento aos judeus mortos na Europa. Um jardim de pilares de betão escuro onde facilmente perdemos quem nos acompanha. A sensação chega a ser desconcertante. Dali até à Av. dos Lírios, a Unter den Linden, são menos de dois minutos a pedalar. Na pressa dos últimos momentos ainda houve tempo para visitar, a passo apressado, a catedral de Berlim, localizada na chamada ilha dos Museus, onde o rio que banha a cidade, o Spree, circunda uma série de edifícios de várias eras que guardam tesouros culturais da cultura alemã. Mesmo para o final, e já a olhar para o relógio, o Bundestag, a casa do Parlamento alemão, merece a visita. Subir até ao topo da cúpula transparente e beber por lá um café é o postal ideal para trazermos de volta na memória. Em constante mutação, Berlim não quer ser Londres ou Paris. O que se descobre por ali merece um olhar atento e visitas frequentes.
Cidade cada vez mais internacional
O alemão Frederik Frede é uma das mentes mais criativas da capital alemã. Entre outros projetos, criou o site Friend of Friends. Por lá, um manancial de entrevistas, podcasts e vídeos de outros criativos de várias cidades do mundo, entre as quais Lisboa. Algumas delas estão publicadas em dois livros nos mais de dez anos que conta de projeto.
Sentados no café Black Isle Bakery, um projeto de uma inglesa a viver há poucos anos na cidade alemã, Frederik conta-nos que Berlim atravessa agora uma fase em que recebe pessoas de todos os cantos do mundo para lá viver e criar negócios.
«Sobretudo nas áreas criativas, há muita gente a chegar da Austrália, da América do Norte e do resto da Europa para criar os seus negócios.» Frede, que conhece bem Portugal, explica que a cada 20, 25 anos a cidade experiencia períodos de mudança. E que isso se reflete na cultura da cidade. «Tem sido assim desde a I Guerra Mundial, depois, com República de Weimar, a que se seguiu a II Guerra Mundial e a Guerra Fria. E agora, trinta anos após a queda do Muro de Berlim, a cidade está a ficar internacional e mais adulta.» Frede gosta do que está a acontecer à sua Berlim, explica que a oferta gastronomica melhorou muito e o café produzido na cidade também. «Tal como Lisboa tem mudado, Berlim tem-se transformado também, embora mas de uma forma menos radical e mais lenta.»
À pergunta sobre como é o típico berlinense, Frederik sorri e, depois de uma pausa, responde: «Maldisposto e rezingão, não há volta a dar.» Fica o aviso.
A Volta ao Mundo viajou a convite do Sana Berlin Hotel.
Reportagem publicada originalmente na edição de dezembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 302.
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