Viajar entre o heroísmo e o medo
Há nove anos que Maria Miguel faz as malas quando acaba o tempo quente e vai procurá-lo noutras paragens. Como uma ave migratória, fez-se escritora de mochila às costas e já correu meio mundo, com receios mas sem travão.
Texto de Bárbara Cruz
As primeiras viagens de Maria Miguel Pereira, ou Mami, alfacinha de 33 anos, foram entre o Algarve das praias e a Beira de casa da avó. A infância, recorda, «foi toda naqueles típicos fins de semana em família, tipo Portugal no Coração, a desbravar terrinhas por estradas que nunca mais acabavam». O espírito ficou e alastrou além-fronteiras, num crescendo até à primeira grande aventura internacional, já a meio do mestrado em História de Arte. «Tinha uns trocos de parte de trabalhos freelancers e uma amiga cheia de energia. Numa tarde de inverno, em frente a um galão, dissemos: Vamos à Índia. E fomos.»
Foi a primeira grande viagem e também a primeira vez que escreveu para contar, numa espécie de diário de bordo a que chamou «Chamuças de bacalhau» e que publicou em forma de blogue. Desde então, vai acompanhando todos os trajetos com os respetivos relatos: a ter uma «profissão oficial», diz que seria a de escritora de viagens profissional. Já escreveu para suplementos de jornais diários, publica crónicas em sites de informação e vai sempre partilhando apontamentos nas redes sociais.
Desde a Índia – a viagem mais louca, recorda, onde teve o desprazer de viajar 26 horas numa «jaula» –, que passa os verões a juntar dinheiro para o próximo destino. De preparação, na altura, fez «zero». Limitou-se a comprar o bilhete. «Ficou tudo parvo. Ninguém acreditava. Nem eu! Foi há nove anos e nunca mais parei.»
Garante que ficou viciada em viagens: «A minha vida é igual àquela música do James Bond, You only live twice or so it seems, One life for yourself and one for your dreams. Passo uma vida de verão em Lisboa e uma vida de verão no hemisfério sul. Há nove anos que não tenho invernos.» Não traça percursos, está sempre tudo em aberto. «Vou falando e ouvindo dicas de outros viajantes e vou andando. Às vezes dá errado. Pego na mochila e vou para outro lado.»
Durante os meses que passa em Portugal, fica entretida com «biscates». Além da escrita freelancer, usa o Instagram (Mamigeographic) para vender roupa que compra nas viagens e suculentas que vai criando no jardim. Já fez a América do Sul, quase toda a América Central, foi da Índia à China e, no início de 2017, começou a aventura por África, onde prevê passar quatro meses. Aterrou em Moçambique, já esteve no Malawi e quer ir à Tanzânia e ao Quénia. Viaja e vai escrevendo: «Como boa nostálgica que sou, tiro mais prazer da memória do que do presente. E a melhor maneira de ter um passado inesquecível é sermos nós a escrevê-lo», diz à Volta ao Mundo por e-mail, enviado algures do continente africano.
Não gosta de ir sozinha, por isso arranja sempre quem a acompanhe. «Não sou viajante ímpar», explica. Leva sempre as amigas ou o namorado. Logo que junta dinheiro suficiente, compra mais um bilhete de avião. Não dramatiza os orçamentos: «Os filhos criam-se, as viagens fazem-se! Se andarmos preocupados com tudo, nunca é a altura certa nem para uns nem para outros. É dez por cento sorte e noventa por cento decisão», diz.
Sou uma viajante heroico-medricas. Tenho medo de muita coisa, bicharocos, barcos loucos e estradas estilo montanha-russa.
Para os gastos não se descontrolarem, anda sempre de transportes públicos e dorme onde for «mais baratinho». O que procura em cada país que visita vai variando: podem ser praias paradisíacas, a natureza em estado puro, uma vila charmosa ou a cidade cosmopolita. Mas faz a ressalva: «Sou uma viajante heroico-medricas. Tenho medo de muita coisa, entre bicharocos, barcos loucos e estradas estilo montanha-russa. Mas vou na mesma. Adoro chegar a um sítio bonito e fazer rotina de escritor.»
Não passa sem escolher o «cafezinho» onde se senta e fica a ver «a vida passar». Veste-se com os trajes típicos do local onde está, ouve a música da terra, come e bebe e cheira tudo o que apanhar – «e escrevo sobre o que sobra». Se o assunto forem os países que mais a marcaram, revela que para a Índia, por ter sido o primeiro grande destino, reserva um lugar especial no coração. Laos, garante, foi o país mais bonito que já viu e na Nicarágua sentiu-se perto de casa. A China foi «a grande surpresa» da vida até agora e da Guatemala gostou muito porque se sentiu regressar ao passado. Já a Birmânia «é o que todo o viajante quer encontrar». É pragmática no caminho e não traz para casa grandes arrependimentos de viagem: «Tenho um mecanismo mental que desvaloriza imediatamente tudo o que não fiz». Mas podia ter ido ao Taj Mahal», reflete. E no capítulo de atrações inexplicáveis põe Montenegro em primeiro lugar. «Não sei porquê, mas tenho de ir lá descobrir».
Não esquece que por causa das aventuras atrás do verão já dormiu num bordel na Colômbia e levou com uma semana inteira de chuva nas Honduras, além de ter apanhado um vulcão em erupção na Guatemala. Tudo coisas que «só têm graça a milhas de distância». Porém, não planeia mudar de vida no período que se avizinha. «O futuro sou eu a olhar para o passado. Mas no presente quero continuar a acordar e a fazer o que quero. E geralmente isso é ser feliz em sítios onde cresce frangipani», resume. Sabe que, com as crónicas e a escrita de viagem, já inspirou muita gente a começar a viajar, e essa é uma das melhores recompensas, garante. Mas não é por isso que continua a palmilhar quilómetros. «Ser feliz é a minha vocação. Parar não é opção», conclui, numa rima improvisada.
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