A hora e meia de voo de Portugal, 12 horas de automóvel, há um destino que não depende da sazonalidade. Na Catalunha, há praia e sol no verão, esqui e neve no inverno, vinhos e petiscos no outono, aventura e adrenalina na primavera. E natureza, história, património e uma identidade muito própria durante todo o ano. Desde há séculos que é assim.

Texto de Ricardo Santos
Fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Se há lugar certo para vender vinhos é em Sant Sadurní d’Anoia, capital do cava, o famoso vinho espumante da Catalunha. É o que faz Xavier Roi no espaço da Cal Feru, que já foi uma taberna de vinho a copo, quando era o seu avô quem estava à frente do negócio. Hoje é o neto quem agarra o leme, mas o vinho a copo continua a ser vendido. «Há que manter a tradição», diz-nos. Tem perto de 300 referências de cava na loja e ali bem perto estão as adegas dos gigantes Freixenet e Codorniú. Afinal, a região produz mais de 250 milhões de garrafas por ano. Xavier dá destaque ao que se vai fazendo de forma ecológica e convida-nos para uma prova. Combina cava e chocolates, fala com paixão da terra e das pessoas que a trabalham. É um excelente fim de tarde para esta viagem por terras de vinho, tradição e aventura na Catalunha.

O dia tinha começado com uma visita às caves Gramona. Gambas, atum, leitão, tomate, cebola, compota de maçã e amêndoas, tudo maridado com Imperial, Brut e Gran Reserva Gramona. Há formas piores de viajar… Do copo ao terroir, houve tempo ainda para ver como estão organizados os 250 hectares de vinha. E como a tração animal (os poderosos cavalos de trabalho) volta a ter um papel importante na preparação da vinha.

Esta cultura está bem implantada em Vilafranca de Penedès, a capital do vinho na Catalunha. Nas ruas do centro histórico há bares e restaurantes onde a bebida de uva está em destaque. Afinal, desde o século VII que se produz por estas paragens. E quando poderíamos pensar que os métodos de cultivo e de vida seriam bem diferentes desses tempos, acabamos por perceber que há um regresso à essência na Catalunha. Como um retorno aos tempos do sol a sol, da terra ou do que hoje se conhece por sustentabilidade e biodinâmica. Isto fica provado a meia hora de estrada de Vilafranca, em Bisbal del Penedès, na Mas Llagostera, uma casa rural cem por cento sustentável, onde a energia solar e as boas práticas agrícolas deram nova vida a uma quinta secular da família Solé-Bundó. Cristina Bundó, a anfitriã, quer que provemos tudo: o vinho, a crema catalana e – corajosa perante visitantes portugueses – serve-nos bacalhau de duas formas, em salada e no forno. Prova superada!

A vida não é só comes e bebes. Depois de tanta cava e comida, no dia seguinte houve que fazer algum exercício e conhecer a paisagem do Penedès. A primeira tarefa foi numa bicicleta elétrica,para não custar assim tanto, com a Bike Emotions. A segunda foi partir para um piquenique ao volante de um Citroën Méhari, a máquina com chassis de plástico comercializada de 1968 a 1988. Cor de laranja claro, sem capota, com capota, como se cantava na música. Depois desta referência só ao alcance de maiores de 40 anos, conduzimos de volta à vinha, com a equipa da Enoturisme Penedès, e ao vinho na Bodega Alber y Noya, também esta impulsionadora do cultivo ecológico, que é atualmente a grande aposta no mundo vínico da Catalunha.

Vilafranca não é só a capital do vinho na Catalunha. É também casa de uma das instituições mais vitoriosas na impressionante e difícil arte das torres humanas, os castells. A tradição é antiga, remonta ao século XV, começou a popularizar-se no século XVIII e a Plaza de la Vila é o local onde decorreram as atuações mais importantes da história desta tradição distinguida, em 2010, pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Toni Bach, ou Toni de Lloret, é o cap de colla – mais do que um capitão, mais do que um presidente, o líder – dos Castellers de Vilafranca, vencedores por onze vezes do aproximado à Liga dos Campeões das torres humanas – o Concurso de Tarragon.

Toni convida-nos para assistir a um treino e conhecer a sede dos Castellers de Vilafranca. A pele eriça ao vermos o vídeo de uma das apresentações da equipa na Plaza de la Vila. Não é só a forma como está filmado e editado, é a emoção, o risco, o equilíbrio, a participação de todos, a importância de cada um dos elementos – e podem chegar às mil pessoas. «Já perdi a conta às vezes que vi este filme, mas fico sempre emocionado», confessa Toni enquanto continuamos a visita até ao primeiro andar deste edifício no Carrer del General Prim. É lá que estão os troféus, os cartazes e os rostos dos anteriores caps de colla da associação. E também as fotografias de atuações míticas, com destaque para o que se passa a cada 30 de agosto, dia de São Félix e dos castells, na praça principal de Vilafranca. «O que é muito interessante nas torres humanas é que tem tanta importância o alcaide como o desempregado. E cada pessoa sabe aquilo que tem de fazer», afiança a voz de comando destes homens e mulheres. Cada castell é formado por três partes: a pinya (base da construção onde se concentra o maior número de pessoas), o tronc (estrutura vertical de vários pisos com uma a nove pessoas cada) e o pom de dalt (o topo do castell, geralmente composto por crianças, a canalla – percebe-se o catalão a entranhar?). E é para que as torres sejam um sucesso que esta gente treina, três a quatro vezes por semana, qualquer que seja a sua profissão, idade, peso, religião ou cor de pele.

Lleida é Lérida. A dupla grafia em catalão e castelhano só se estranha nos primeiros dias. Passado esse período, o catalão acaba por se interiorizar. Seja falado ou escrito, como se comprova na velha catedral da cidade, a Seu Vella. Laia Terés, guia, acompanha-nos na visita e para frente a uma lápide junto ao campanário. A inscrição é do poeta Magí Morera i Galícia, está ali desde 1912, e homenageia este imponente e histórico edifício começado a construir no século XII. Diz-nos que «ja ets a mitx camí del infinit!», já estamos a meio caminho do infinito. E parece mesmo verdade. A catedral está sobre a cidade, domina-a e ao rio Segre. Faz parte de um conjunto monumental que integra também o castelo e a fortificação em redor. A vocação militar é um dos aspetos referidos por Laia. «Lleida foi conquistada pelas tropas franco-espanholas no início do século XVIII e depois de 1780 a catedral transformou-se em caserna militar.» Os danos desse tempo são ainda visíveis. Mas não só. Também durante a Guerra Civil Espanhola a catedral viveu dias terríveis – serviu de campo de concentração e mais de vinte mil presos passaram por aqui. É uma visita emotiva, graças à tranquilidade e assertividade das explicações de Laia, mas também porque este é um espaço que nos deixa sem palavras. E é quase em contemplação que descemos até às margens do rio Segre, até aos famosos Campos Elíseos de Lleida, onde um grupo canta as tradicionais Havaneras, canções trazidas pelos catalães que foram para Cuba trabalhar no século XIX. Um dia em cheio na Catalunha. Mais um. E a sensação continua no dia seguinte.

Viajar pela Catalunha é a garantia para dias de férias especiais, sempre diferentes. Da montanha ao mar, com intervalos gastronómicos difíceis de esquecer.

«Aqui o tempo passa a voar», diz Ramon Sanmartí, enquanto manobra a asa do parapente sobre o vale de Àger. Estamos a voar há 40 minutos e lá de baixo já nos pedem para voltar. Ramon tem mais de 50 anos e voa desde os 18. Viaja pelo mundo a fazer isto, de preferência sozinho, não em tandem, com um passageiro acoplado. Já vimos os Pirenéus ao longe, já seguimos um casal de abutres junto às escarpas, já sobrevoámos a sua casa, na aldeia de Àger (e confirmámos que tinha o carro bem estacionado), já estivemos a dois mil metros de altitude e agora há que apanhar os bons ventos e aterrar. «Posso fazer umas voltas para descermos mais rapidamente?», pergunta. Trinta segundos e umas quantas forças de 4G depois passamos dos 600 para os 100 metros de altitude. Os campos de cultivo estão cada vez mais próximos, os pontos no solo parecem mais humanos e… já está. «Não estava fácil, mas pelo menos não enjoaste», diz Ramon. Os aventureiros que estavam no ar antes de nós não tiveram a mesma sorte. Nem os outros instrutores de parapente da Entre Nuvols, que levaram – literalmente – com essa má disposição. É pena, não aproveitaram um momento inesquecível nas suas vidas, aquele em que, no silêncio das alturas, podiam ter fechado os olhos e imaginado que cumpriam um dos desejos mais antigos da humanidade: voar como os pássaros.

Na Catalunha não há tempo para parar. Há sempre mais qualquer coisa para descobrir. Se no inverno as estâncias de neve são o principal motivo de interesse em Boí Taüll ou em Baqueira e Beret, na primavera e no verão, toda a região abraça outros desportos de montanha. Além do parapente, há rafting, slide, escalada, arvorismo, vias ferratas ou canoagem. E tudo pode ser experimentado, por exemplo, no Naturaran Adventure Park, que além da adrenalina também tem espaço para acampar.

Ali bem perto, na margem do rio Garona, há outra surpresa, desta vez gastronómica com uma fábrica especial. Tanques com esturjões são a base do sucesso do caviar Nacarii. Os peixes podem chegar aos 70 anos e pesar mil quilos e as suas ovas saem deste rio e destas montanhas para todo o mundo.

Continuamos a viagem mais uns 70 quilómetros, até ao vale de Cardós e Tavascan, o ponto central desta região de caminhadas e de mais histórias. Por aqui se escavou na montanha uma das centrais hidroelétricas mais famosas da Península Ibérica. Houve centenas de feridos e mortos para a construir entre a década de 1950 e a sua inauguração, em 1974. Esta é terra de caminhos de montanha por onde fugiram judeus que escapavam aos nazis e aos colaboracionistas franceses de Vichy. Hoje, as rotas são de liberdade e de trekking.

Esta é uma fatia do parque pireneico das três nações: Espanha, França e Andorra. Não faltam aldeias onde se come e bebe bem, locais onde encontramos Rosa Maria, tecedeira de Ginestarre que trocou o mar de Sitges pelas montanhas. É ela quem nos dá uma lição de vida ao explicar o que se passa atualmente no território da Catalunha. É ela quem nos fala com amor da terra e dos montes. É ela quem nos aponta o caminho para o Parque Nacional de Aiguestortes, com seus lagos e cascatas, miradouros e histórias. E enquanto fala o céu passa de azul a cinzento, com relâmpagos a ameaçar, para depois tudo voltar à tranquilidade.

Foram dias intensos os que vivemos por aqui e que poderá comprovar durante o mês de agosto com os programas de televisão da Volta ao Mundo na RTP3. Conhecemos gente que quer fazer a diferença na sua terra. Como o Adrià, produtor do azeite NouSegons que, aos 26 anos, dá a cara pelo negócio da família e quer destacar a Catalunha no mapa. Ou a Mar, que saiu de Barcelona para fazer que se fale de Penelles, uma aldeia com pouco mais de 400 habitantes e que tem quase cem murais de arte urbana espalhados pelas fachadas de casas, armazéns ou empresas. Todos os anos organiza por lá um festival dedicado à street art e quis mostrar-nos como se muda a vida deste pueblo. Ou ainda o Juanma. com quem já nos tínhamos cruzado no inverno, nas pistas de esqui do vale de Aran, e que agora se sentou numa esplanada de Vielha, com quase 30 graus de calor, para saber como corria a nossa descoberta de verão da Catalunha. Esta é a quarta viagem a este destino em menos de um ano e continuamos a ser surpreendidos. Por terra, mar e ar, e com muito mais para ver do que apenas a apaixonante Barcelona, este é um território onde já nos sentimos em casa. E o catalão já se colou à pele. Moltes gracies, Catalunya!

Voltamos em breve.


Guia de viagem

Viajar
Documentos: Cartão de cidadão ou passaporte
Fuso horário: GMT+1 hora
Moeda: Euro
Idioma: Catalão e castelhano

Ir
A Vueling voa diariamente para Barcelona a partir de 85 euros ida e volta.

Comprar
Cal Feru
Uma loja com mais de mil referências de vinhos e cavas da região. Fundada em 1934 pela família Roig. O atual proprietário, Xavier Roig é um reconhecido sommelier e organiza provas para saber o que levar para casa.
C. de la Diputació, 51, Sant Sadurní d’Anoia
calferu.com

Atelier Ginestarre
A artesã Rosa Maria Tejedor i Ferrer trabalha numa das aldeias remotas de Pallars Sobirà. Pode visitar o ateliê e a loja.
Casa Nilló, Ginestarre. Pallars Sobirà
ginestart.com

Queseria Tros de Sort
Queijaria tradicional em Sort. Conheça todo o processo de fabrico, faça a degustação e perca-se na loja de produtos regionais.
trosdesort.cat

Dormir
Mas Llagostera
Um agroturismo 100% sustentável e com todo o conforto. A casa tem cinco quartos com casa de banho (capacidade total para 13 pessoas), cozinha, duas salas de estar e piscina e muito espaço no exterior. A alegria e a disponibilidade com que Cristina Bundó recebe os hóspedes faz que se sintam mesmo em casa. T-240, km 0.5, La Bisbal del Penedès (Tarragona)
Casa inteira (fim de semana): 1000 euros/2 noites; dias de semana: 110 euros por quarto, por noite
masllagostera.com

Hotel Apartamentos Vilagaros
Na aldeia de Garos este hotel de 4 estrelas tem quartos e apartamentos. Está a apenas 4 km de Viella e a 8 km de Baqueira Beret. O restaurante serve boa cozinha tradicional e de proximidade e para descansar das atividades há um spa e piscina interior.
Desde 106 euros por noite em quarto duplo
C. de la Carretera, 5, Garòs (Val d’Aran)
hotelvilagaros.com

Parador de Lleida
O hotel de 4 estrelas ocupa o edifício do antigo Convento do Roser, do século XVII. O novo Parador, inaugurado em 2017, tem 53 quartos dispostos em três andares, em redor do claustro central. A igreja foi transformada no restaurante Marmitia, que apresenta uma carta com muitas especialidades da região e que vale muito a pena experimentar, mesmo que não fique lá alojado.
Desde 97 euros, por noite em quarto duplo
C/ Cavallers, 15, Lleida
parador.es

Hotel Restaurante Peña
Um simpático hotel de montanha muito bem localizado no vale d’Aran, tanto para os desportos de inverno como para as atividades de aventura no verão. Tem 62 quartos, piscina interior e restaurante.
Desde 60 euros, por noite em quarto duplo
Ctra. Nacional 230, Km. 169 Pònt d´Arròs (Val d´Aran)
hotelpenha.com

Aparthotel Spa Augusta
Situado na estância de Boí Taüll, o aparthotel tem 39 apartamentos, todos com sala e kitchenette e podem ser de um, dois ou três quartos.
Urb. Pla de l’Ermita, s/n, Pla de l’Ermita (Boí Taüll)
aparthotel-augusta.com

Hotel Pessets
No centro da cidade de Sort, na região dos Pirenéus de Lleida, o hotel de 4 estrelas tem piscina exterior, um spa com piscina interior e um surpreendente restaurante com uma cozinha regional reinterpretada e com os melhores produtos da região, tendo sido distinguido com o selo de qualidade Marca Cocina Catalana.
Desde 103 euros, por noite em quarto duplo
Avda de la Diputació, 3, Sort (Lleida)
hotelpessets.com

Comer
El Fai de Taüll
C/ Els Aiguals, 10 (Taüll)
Tel. +34 973 69 62 01
restaurantelfai.com

Hotel Talabart de Les
C/ des Banhs, 1 (Les)
Tel. +34 973 64 80 11
hoteltalabart.cat

Bar Restaurant Basteret
C/ Major, 6 (Vielha)
Tel. +34 973 64 07 14

Refúgio Amics de Montgarri
O restaurante ocupa um antigo albergue de montanha. Serve cozinha da região e carne grelhada na lareira que fica na sala de refeições. É possível pernoitar em camaratas.

Visitar
Cavas Gramona
Casa de vinho espumante com produção artesanal. Combine a visita às vinhas e caves com provas, maridagens e atividades como passeios a cavalo.
C. Indústria, 36 (Sant Sadurní d’Anoia)
gramona.com

Bodega Albert y Noya
Tem-se dedicado a recuperar algumas das suas vinhas centenárias. Além da visita às vinhas e caves, organizam passeios nos icónicos Méhari e piqueniques.
Can Vendrell (Sant Pau d’Ordal)
albetinoya.cat

Castellers de Vilafranca
Um dos grandes grupos de torres humanas de Vilafranca de Penedés. Por marcação pode assistir a um dos ensaios semanais (a partir das 19h00) num espaço digno de atletas olímpicos. Um pequeno museu explica esta tradição catalã. Outra boa surpresa é a cafetaria, com excelentes petiscos.
Cal Figarot. Carrer del General Prim, 11, (Vilafranca del Penedès)
castellersdevilafranca.cat

Igreja de St. Clement
Um dos exemplos de românico mais bem preservado. Todos os dias (cinco vezes ao dia) é possível assistir à projeção de um videomapping no interior da igreja.
Entrada: 5 euros.
vallboi.cat

NaturAran Adventure Park
Parque de atividades de aventura, no vale d’Aran. Escalada, arborismo, via ferrata, tirolesa e barranquismo.
Cami Paisas, s/n, Les (Val d’Aran)
deportur.com/naturaran


Agradecimentos

Turismo da Catalunha


Reportagem publicada na edição de agosto de 2019 da Volta ao Mundo (número 298)

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