Lembra-se de José Pacheco Pereira ter viajado com a Volta ao Mundo? O professor, investigador, cronista e homem político foi nosso cicerone numa das suas paixões: Veneza. Uma viagem pela história da cidade através das suas grandes figuras ao longo dos séculos. Um texto fundamental para quem pretende conhecer Veneza em todo o seu esplendor, em toda a sua profundidade, com todas as suas contradições. Para ler agora, com tempo, antes de a vida voltar à normalidade. E em jeito de homenagem e solidariedade com um país e um povo abalados pela epidemia.

Texto de José Pacheco Perreira
Fotografias de Luís do Rosário

Chegada. Uma das mais célebres e dramáticas chegadas a Veneza abre o filme de Visconti «Morte em Veneza», a partir da novela de Thomas Mann. A personagem principal do livro, Gustav von Aschenbach, um escritor e um esteta, moldado a partir da figura do compositor Gustav Mahler, chega a uma cidade que está doente, presa numa das suas febres periódicas, que atravessaram a sua história muitas vezes. Chega de barco. Thomas Mann explica porque se deve sempre chegar a Veneza por mar:

«Ele via este cais tão espantoso, a magnífica composição desta arquitectura fantástica que a República de Veneza oferecia aos olhares respeitosos dos navegantes que se aproximavam: o esplendor ligeiro do Palácio, e da Ponte dos Suspiros, as colunas com o Leão e o Santo, sobre o cais o flanco do templo feérico que se anunciava em todo o seu esplendor, a perspectiva abrindo-se sobre o grande portal, com o seu relógio gigantesco e, olhando tudo isto, ele pensou que chegar a Veneza por terra era o mesmo que entrar num palácio pela porta de serviço e que nunca se devia, na mais improvável das cidades, chegar de outro modo que não fosse aquele que estava a usar, um barco, vindo do mar largo.»

Aschenbach ia para o Lido, para o Grand Hotel des Bains, que ainda existe, mas quer passar em frente da Praça de S. Marcos, para a ver do lado do mar, por entre as ilhas envoltas em bruma. É um alemão que chega, que lera certamente os Epigramas que Goethe escrevera sob inspiração veneziana, «aqui tudo é vida e actividade, não ordem e disciplina». Ali não havia a «honestidade alemã», ali havia perigos iminentes, como se vai ver. Aschenbach pensava que ultrapassara os sentidos, que atingira um estado de perfeição estética que estava para lá dos sentimentos vulgares. Mas escolheu mal a cidade para se testar. Nela vai encontrar, contra a sua vontade, a última paixão. E acaba por morrer em Veneza, uma cidade onde se morre sozinho, como se morre sempre, mas como se essa morte pertencesse àquilo a que chamamos «cultura».

Veneza nasceu entre o Oriente e o Ocidente. Uma pequena estátua marca a unidade perdida desse mundo.

Nenhuma cidade da Europa tem este tipo de fascínio decadente, a força cultural da história em estado bruto de tão sofisticada. Apenas Istambul poderia rivalizar com Veneza, se não fosse hoje uma cidade turca, demasiado turca para ter memórias contraditórias do seu passado. O espírito da cidade, o espírito do lugar, o heimatgeist, caro aos alemães, transpira das águas, das paredes. O tapete que cobre as ruas é feito de palavras. Palavras sobre palavras, sobre palavras. Palavras venezianas como as de Goldoni ou Casanova, mas palavras em todas as outras línguas do mundo. Goethe, Byron, Ruskin, Proust, Pound, Mann, Brodsky, numa espessura que constitui por si só a história do mundo, do nosso mundo. Se somarmos as imagens e os volumes dos edifícios e das esculturas, desde os cavalos perfeitos trazidos de Bizâncio, até às histórias de Corto Maltese, também tudo é coberto por imagens. Imagens sobre imagens, sobre imagens. E sons. De Vivaldi a Wagner ou Mahler, sons sobre sons, sobre sons. Esta é uma terra de excessos, como Aschenbach percebeu, para seu mal, «sem honestidade alemã», mas com uma espessura mórbida. Uma «cidade-aleph» onde está tudo.

Tetrarcas. Veneza só pôde ser o que é porque o mundo foi dividido e a cidade ficou, em frente ao mar, na fronteira. Veneza nasceu entre o Oriente e o Ocidente. Uma pequena estátua, que passa muitas vezes desapercebida, incrustada numa esquina da Catedral de S. Marcos, mostra a unidade perdida desse mundo. Em cada esquina estão dois homens, separados por uma quebra na estátua, numa posição de proximidade, abraçados dois a dois. São homens de guerra, vestidos com cotas de armas e longas espadas. Generais apanhados num momento de afecto. Quem são? Não se sabe ao certo e, como tudo em Veneza, há lendas que vão crescendo.

A origem da estátua não é precisa, pode ter sido feita no Egipto, ou por um egípcio, e é provavelmente do século IV. A data aponta para que seja uma representação dos Tetrarcas, os co-imperadores com que Diocleciano dividiu o Império. Quatro: Diocleciano, no Oriente, Galerio (ou Valeriano?) no Sul do Danúbio, Maximiniano, com África, Itália e Hispânia, e Constâncio Cloro, que controlava as Gálias e a Britânia. Os tetrarcas não foram uma experiência falhada. No princípio, e sob o seu poder, Roma expandiu-se militarmente e consolidou fronteiras. Os quatro homens entendiam-se, mas o mundo que governavam desentendeu-se para sempre, ou, pelo menos, até à globalização dos nossos dias.

Pouco mais de cem anos depois do abraço dos tetrarcas, Roma ficou uma capital bárbara e Constantinopla/Bizâncio tornou-se a «nova» Roma, transportando a tradição cultural greco-latina no ímpeto da religião oriental, que Paulo transformara numa força universal, o cristianismo. Trezentos anos depois, Maomé criou uma religião combatente que estendeu o fogo das suas espadas e os estandartes verdes do profeta até aos Pirenéus. Mil e cem anos depois dos tetrarcas, a «nova Roma» do Oriente caiu nas mãos dos turcos, e um proclamado descendente do profeta entrou na Catedral de Santa Sofia e transformou-a numa mesquita.

No Ocidente tudo isto dizia respeito a uma cidade que se tornava única, uma república aristocrática, assente no comércio e na «projecção do poder», como agora se diz, materializada na melhor frota de guerra do mundo. «Mouros» e «gregos» bateram à porta de Veneza, porque Veneza estava ali no local certo.

«Mouros». Não há lugar em Veneza que escape a esta marca. A ambivalência ocidental-oriental da cidade está presente em todo o lado. O viajante que sair do centro, da multidão dos turistas e caminhar (ou navegar) para a margem norte, para Cannaregio, encontra uma Veneza silenciosa e despovoada. Saindo na estação dos barcos de Madonna dell’ Orto, atravessa os bairros operários construídos nas primeiras décadas do século XX. São um refrigério para o tumulto do centro, com as suas casas cinzentas e tristes, mas polvilhadas de flores e de jardins, de ruas rectilíneas sem vivalma durante o dia, a não ser as mulheres em casa.

Depois, como se atravessasse uma fronteira invisível, começa a entrar na velha cidade, canal após canal, ponte após ponte, e de repente está-se numa praça em frente a um canal. Na esquina da praça, numa série de casas pequenas, para um e outro lado da esquina, estão os «mouros». Os «mouros», que dão o nome a uma praça, Campo dei Mori e a uma rua, Fondamenta dei Mori, são uma série de pequenas estátuas bastante rudimentares e já gastas pelo tempo que se encontram embutidas em casas comuns, uma delas aquela em que viveu Tintoretto.

Como convém a esta cidade estranha, os «mouros» não são mouros. Podem até ser venezianos, comerciantes no Levante, que, muitas vezes vestiam os trajes locais. Venezianos com turbante, como nos mosaicos bizantinos aparecem gregos com turbante, numa simbiose que em poucos sítios é tão perfeita como aqui. Talvez os irmãos Mastelli, mercadores do Peloponeso.

Na maioria das suas salas a opulência de Veneza falava por si, os gigantescos, e gigantescos é a palavra certa, tetos e paredes cheios do melhor da pintura italiana: Tintoretto, Veronese, Ticiano.

Como acontece com estes «mouros» afinal cristãos, nós vemos lá mais estranheza do que a que existe, e é normal que assim seja. Entretanto, tudo o que era misturado na época hoje nos parece bizarro e secreto, porque o tempo entretanto se dividiu, gerou uma ordem onde antes havia confusão. Para nós, mouros eram mouros, cristãos não andavam de turbante. Uma das personagens, também veneziana, que melhor vivia desses interstícios do tempo é Corto Maltese, o marinheiro das histórias de Hugo Pratt.

Os «gregos». Há muitas Venezas que ganharam uma aura de mistério com Corto Maltese. A igreja de S. Giorgio dei Greci, ladeada pelo Instituto Helénico, por um pequeno museu com ícones, e por mais um campanile que parece estar a cair a qualquer momento, tem esse ar de calma inexplicada, de que alguma coisa está fora do sítio, que só um conhecimento hermético ou uma iniciação secreta podem explicar.

Os «gregos» de Veneza eram os bizantinos, os descendentes do Império Romano do Oriente, da cidade que mais tarde vai ser conhecida como a Porta, a sede da Potência da Porta. Em todos os seus nomes históricos, Constantinopla, Bizâncio, Istambul, a cidade do outro império foi marcada pela sua relação conflitual com Veneza. Marcada significa rasgada, magoada, traída por Veneza. Foi um doge veneziano, Enrico Dandolo, nonagenário, que na quarta cruzada, a pretexto de ir atacar os infiéis, acabou a dizimar os irmãos cristãos do Oriente, conquistando, saqueando, destruindo Bizâncio.

Foi um dos atos da história ocidental a que nós, no ocidente do ocidente, não damos muita importância, mas que, quando se caminha para leste, está na memória coletiva de todos e explica a profundidade do cisma entre a cristandade latina e ortodoxa. O Papa João Paulo II poucas vezes terá sido recebido com tanta hostilidade como quando visita terras ortodoxas. A culpa? De Veneza, cujas tropas sacrílegas entraram de carro de bois na Catedral de Santa Sofia para roubar as mais preciosas relíquias da cristandade, com os soldados bêbados a profanar o trono imperial e sentando uma prostituta perto do Omphalos, do umbigo da terra, onde Deus e o imperador comungavam do poder do Espírito Santo. O Papa pediu desculpa aos cristãos ortodoxos pelos desmandos venezianos, como pediu aos judeus, mas a ferida ainda existe oitocentos anos depois.

Mais tarde, os «gregos» tornaram a reconquistar Bizâncio aos «latinos», mas a cidade nunca recuperou da destruição. Quando outra ameaça começou a penetrar vinda da Anatólia, o Islão expansionista, Bizâncio pouco mais pôde contar do que com uma pequena ajuda veneziana, porque a frota não chegou a tempo. Venezianos combateram ao lado do último imperador Constantino Paleólogo, mas não chegou para evitar a queda.

Quando se soube que Bizâncio tinha caído à mão dos turcos, já era tarde. Houve comoção na Europa, e em Veneza, mas já era tarde. É porém para Veneza que fogem as grandes famílias bizantinas, uns fugidos, outros resgatados a peso de ouro das prisões do sultão. Pouco a pouco, uma colónia «grega» estabeleceu-se em Veneza, trazendo consigo a tragédia da perda da Roma do Oriente, do último fragmento do velho Império Romano que sobrava. Com a sua vinda, Veneza completou-se. No século XV estava no seu apogeu e também no início da sua decadência.

Itinerário secreto. Que república era esta, tão diferente dos outros estados europeus da época? Visitando o Palácio dos Doges percebe-se. É aqui o local central do poder veneziano. Nele se concentrava o governo da república, e todos os seus ramos: executivo, legislativo e judicial. O edifício nas suas diferentes incarnações, reconstruções, incêndios e estragos, entre o gótico e o renascentista, é com a Catedral de S. Marcos, com que comunica, o melhor retrato de Veneza, a cidade-estado.

Na maioria das suas salas a opulência de Veneza falava por si, os gigantescos, e gigantescos é a palavra certa, tetos e paredes cheios do melhor da pintura italiana: Tintoretto, Veronese, Ticiano. Os embaixadores estrangeiros subiam as escadarias de honra e penetravam nesse delírio de cor, excesso e símbolos. Seguindo a escadaria principal para o interior do palácio, vinda do claustro térreo, as «escadas douradas», chega-se a um patamar onde se bifurcam as entradas: à esquerda, os salões luxuosos da Sereníssima; à direita, uma sólida porta castanha, sem decoração. Aberta essa porta entra-se no mundo secreto do palácio: a sede da polícia política da república, os locais onde o poderoso Conselho dos Dez ministrava a justiça e a injustiça, as celas das prisões destinadas aos interrogatórios, a câmara de torturas, outras celas para cumprimento de penas de presos muito especiais, e o acesso aos arquivos secretos. Era também o reino dos Signori della Notte, os «senhores da noite».

Era aqui que vinham ter as denúncias que cada Bocca di Leone recolhia, porque poucas cidades no mundo institucionalizaram de tal modo a delação. Como é que o poder comunica com os seus súbditos? Uma velha tradição foi sempre a denúncia. Deve haver em cada povo uma percentagem maior ou menor de denunciantes e em Veneza era uma actividade estimada. Os venezianos podiam dedicar-se a ela sem grandes riscos porque havia uma série de caixas de correio especializadas para a denúncia. Aqui os delitos fiscais, acolá os delitos contra o estado, noutro sítio os crimes comuns, etc. Havia uma Bocca di Leone para cada malfeitoria.

Entrando no «itinerário secreto», não se pode imaginar maior contraste. Era num ambiente completamente despido de luxo que os mais poderosos homens da república trabalhavam. Na parte secreta do palácio não há decorações nenhumas, as salas dos magistrados mais importantes são verdadeiros cubículos de meia dúzia de metros quadrados, onde mal cabe uma cadeira, uma mesa e um armário, as únicas coisas que estão nas salas. Nos dias de hoje, acrescentou-se um ou outro espelho e uns pequenos quadros, mas percebe-se que o seu lugar não é ali. Paredes de madeira nuas, traves grossas nos tectos. Alguns armários não eram armários mas sim portas e passagens escondidas. Tudo gera claustrofobia e tudo indicia solidez do mando e impotência nos apanhados nas malhas da justiça. Não custa imaginar o ar pesado e a falta de luz. Quase só se trabalhava à luz do dia, excepcionalmente à noite, dado o medo dos incêndios.

O lugar comunicava com dois outros símbolos de Veneza, os piombi e os pozzi, as temidas celas do telhado, por baixo do chumbo das telhas, daí o seu nome, e as mergulhadas nas caves, onde a humidade dos canais impedia que alguma vez estivessem secas. Em cima, o calor insuportável, em baixo a humidade eterna. As celas dos piombi não têm na maioria dos casos qualquer luz e são de madeira grossa fechadas por sólidas portas de ferro. Mas muitas são maiores do que os gabinetes de trabalho dos magistrados venezianos do Conselho dos Dez. O preso mais célebre destas celas foi um veneziano típico, o libertino Giacomo Casanova, especialista em bordéis, jogo, intriga, magia e blasfémia. A sua celebridade veio de ter fugido pelo telhado do palácio, e depois de ter de novo entrado noutro local pelo telhado, ter saído pela porta principal perante a surpresa de todos. Se calhar não foi bem assim, porque os subornos eram uma marca da cidade, mas o seu relato tornou os piombi no arquétipo de uma das mais sinistras prisões da Europa, o que estava longe de ser verdade.

O doge que falta. O poder em Veneza é cuidadosamente partilhado. O doge manda, mas num sistema de controlos complexos que permitem sempre aos patrícios-mercadores, os verdadeiros donos de Veneza, o controlo último sobre tudo. Quando um doge, Martino Faliero (Marin Falier) que sucedeu a Andrea Dandolo no início da segunda metade do século XIV, quis romper com estes mecanismos e fazer uma “revolução popular”, a justiça do Conselho dos Dez caiu-lhe em cima.

O doge era já um septuagenário e mostrava-se particularmente irritado com as violências dos jovens aristocratas, que incluíam alguns insultos à sua mulher, e espancamentos a cidadãos comuns da república. Participa então numa conjura para acabar com o poder da aristocracia e construir uma aliança entre ele, que seria príncipe, e o «povo», em particular os trabalhadores do arsenal, que constituíam um corpo paramilitar temível.

Porém, Veneza é Veneza e todos falam de mais, e todos denunciam todos e em breve o Conselho dos Dez toma conhecimento da conjura e aborta-a. Denunciado o doge, foi julgado e condenado à morte em 17 de abril de 1355. Numa cena simbólica, o seu corno, o chapéu ducal em formato de um solitário corno, foi-lhe tirado da cabeça, e decapitado na escadaria dos Gigantes. A execução foi anunciada da loggia do palácio e a cabeça seguiu para exposição pública. O dia passou a ser feriado.

Nunca mais nenhum doge «traiu» a Sereníssima. O Conselho dos Dez, como Estaline, preparou-se para manipular a memória, tirando o seu Trotsky da fotografia. Mas os venezianos eram uns meninos de coro comparados com o mestre georgiano. O local do seu retrato na sala do Grande Conselho foi inicialmente coberto com um pano escuro. Mais tarde, quando o incêndio do palácio destruiu a sala, Tintoretto e os seus discípulos tornaram a pintar os retratos. Não apagaram de todo a memória do doge traidor. Lá está até hoje o pano negro, agora pintado, dizendo: «HIC EST LOCUS MARINI FALETRI DECAPITATI PRO CRIMINIBUS» («este é o lugar de Marini Faletri decapitado pelos seus crimes»).

Partida. Io saró un Attila per lo Stato veneto (“Eu serei um Átila para o estado veneziano”). Esta frase fabulosa, dita num italiano com sotaque corso, marcou o fim da independência veneziana. O seu autor foi Napoleão, que odiava tudo o que para ele representava a República Veneziana. Napoleão achava que Veneza era, no final do século XVIII, o símbolo do passado que a revolução francesa devia extirpar da terra. O ultimato que mandou a Veneza, um ou dois dias antes de as suas tropas começarem a colocar os canhões nos arrabaldes da cidade, tratava a república como uma espécie de última sobrevivência da Inquisição espanhola, como um estado policial cruel, dominado pela intriga e pela traição. O ultimato implicava não só a rendição militar da república, mas a sua destruição simbólica: a libertação de todos os presos dos piombi e dos pozzi, a extinção das instituições tradicionais venezianas substituídas por uma «democracia», o apagamento do símbolo do leão de S. Marcos de todos os lugares públicos (um pedreiro foi contratado para o fazer), e o plantar de uma «árvore da liberdade» bem em frente do Palácio dos Doges.

Nesses dias de maio de 1797, dentro do palácio, era a debandada. Os últimos representantes da aristocracia, que governava Veneza há mil anos, fugiam para as suas propriedades na terra firme, tentando proteger-se das turbas contraditórias que passavam pelas ruas, umas simpatizantes dos franceses, outras gritando «Viva S. Marcos» e apelando à defesa militar da república. Os poucos que sobraram reuniam-se em pequeno comité, fragmento dos fragmentos das velhas instituições, agora sem quorum. A emergência levava-os a nem sequer se vestirem com as suas vestes de ofício, e estavam quase todos de negro. Ficaram conhecidos pela Consulta Nera, o último órgão que governou Veneza independente. O doge Ludovico Manin, no meio da confusão, portou-se com dignidade. Votada a rendição aos franceses, praticamente sozinho no palácio, chamou o seu criado, tirou o corno, e pediu ajuda para desatar a touca que usava por baixo, dizendo: Tolé, questa no la dopero piú («Pega, não vou precisar mais»).

Amigo, viajante a Veneza, chegado como o esteta alemão num qualquer vaporetto, passeando com a multidão da história ao lado, mouros e gregos, libertinos e traidores, deixa a Sereníssima, com uma última recordação deste último gesto. Sentado, algures frente ao canal, de costas para o palácio e para S. Marcos, sem ser entre as colunas que dá azar, podes fechar os olhos por um momento, esquecer os turistas e lembrar. Ou esquecer. Esta cidade foi feita para isso.


Guia de viagem

11 obras com vista sobre a cidade

1. Um guia: Fodor’s Venice and the Venetian Arc
2. Um guia alternativo: «Corto Sconto: Itinerari Fantastici e Nascosti de Corto Maltese a Venezia», de Guido Fuga e Lele Vianello. Lizard Edizioni
3. Uma história da cidade: «A History of Venice», de John Julius Norwich. Penguin Books
4. Uma novela: «Morte em Veneza», de Thomas Mann
5. Um poema: «On the Extinction of the Venetian Republic», de William Wordsworth
6. Um texto: «Marca de Água», de Joseph Brodsky
7. Um filme: «Morte em Veneza», de Luchino Visconti
8. Uma biografia veneziana: «História da Minha Vida», de Giacomo Casanova
9. Uma banda desenhada: «Corto Maltese», de Hugo Pratt
10. Um pintor: Canaletto
11. Um músico: Vivaldi

8 locais na Veneza de José Pacheco Pereira

1. Cais de São Marcos, chegando de barco
2. Tetrarcas na Catedral de S. Marcos
3. Madonna dell’ Orto, Campo dei Mori e Fondamenta dei Mori (Cannaregio)
4. S. Giorgio dei Greci (Castello)
5. Palácio Ducal: Bocca di Leone
6. Palácio Ducal: «Itinerário secreto»
7. Palácio Ducal: Sala do Grande Conselho – Retratos dos Doges
8. Cais de S. Marcos: olhando para as ilhas, S. Giorgio Maggiore e Giudecca


Reportagem publicada originalmente na edição de novembro de 2004 da revista Volta ao Mundo, número 121.