No dia em que perdemos o escritor Luis Sepúlveda recordamos a conversa que tivemos com ele à mesa da Fortaleza do Guincho. Inesquecível!
O escritor chileno e o fotógrafo argentino encontraram-se em Portugal para o lançamento do livro Últimas Notícias do Sul, da Porto Editora. Os textos de Luis Sepúlveda e as imagens de Daniel Mordzinski contam histórias da Patagónia. Argentina e chilena e sem fronteiras definidas, como ambos. Falou-se de tudo: viagens, experiências, heranças e olhares para o futuro com saída de Moscovo e chegada à ecologia. Pelo meio, muitos outros motivos de interesse, como a história, a amizade ou a política.

Entrevista de Ricardo Santos e José Jaime Costa
Fotografias de Daniel Mordzinski

Estudou em Moscovo, certo?
Luis Sepulveda (L.S.) – Exato. Moscovo perdeu todo o encanto com o capitalismo selvagem. Fomos lá, convidados pelo Instituto Cervantes, para uma conferência e exposição. E encontrei uma Moscovo completamente diferente da que tinha conhecido antes de 1989. Em algumas coisas continua igual: uma decadência enorme, as máfias russas presentes em toda a parte, a insolência. Em frente ao Kremlin, há lojas que vendem joias onde o relógio mais barato custa 15 mil dólares. Conhecemos o chefe dos espiões espanhóis em Moscovo, um galego muito simpático, oficial da Guardia Civil que combinava essa atividade com a importação de batatas galegas.
Daniel Mordzinski (D.M.) – E que nos levou a conhecer a noite de Moscovo.
L.S. – O que antes era a escola de dança do Bolshoi é agora o maior prostíbulo da Europa. Mais de mil prostitutas trabalhavam lá, todas loiras. Levou-nos a conhecer a casa da Juventude Comunista da URSS que é agora um bordel, o Viva la Revolución – assim, em espanhol. Lá dentro tinha inscrições que diziam Viva Che, Viva Zapata e todas andavam vestidas de guerrilheiras. Tivemos a sorte de ser os últimos a ficar no Russia Hotel, com seis ou sete mil quartos.

E as pessoas por lá?
L.S.
– Nas ruas veem-se pessoas muito pobres. Esses velhos que fizeram a Segunda Guerra Mundial, que libertaram a Europa do fascismo, vendem as suas condecorações de guerra. Não ficou nada da dignidade do povo russo. Na conferência que dei, recordei que já lá tinha estado antes e muita gente começou a chorar. Os eslavos são muito sentimentais. E os mais velhos continuavam a chamar-me tovarich, camarada.

Isso foi antes ou depois das viagens à Patagónia que resultaram no livro Últimas Notícias do Sul?
L.S.
– Foi sensivelmente a meio. Fizemos três viagens.

Como foi viajar juntos?
L.S
. – Para ser honesto… ele é um bom companheiro de viagem com algumas coisas que são muito surpreendentes. Por exemplo, quando começámos a viagem de 1996 eu disse que levava dinheiro vivo e íamos apontando as despesas. Ele disse que faria o mesmo. Vinho, gasolina, chá-mate, e vinte dias depois disse-lhe que o meu dinheiro tinha acabado e que seria a vez de ele pagar. Estávamos numa aldeia pequenina, com cerca de cinquenta habitantes, e ele disseme: «Não te preocupes que eu trouxe o Americam Express…» [risos].
D.M. – Não entendo as vossas gargalhadas.
L.S. – Começámos a perguntar e as pessoas nem sabiam o que era um caixa automático. Até que numa loja alguém nos disse que sabia que essas máquinas existiam e que havia uma em Bariloche. Estávamos a quatrocentos quilómetros de distância… E fizemos os quatrocentos quilómetros. O Daniel colocou o cartão na máquina e não acontecia nada. Fomos a um segundo banco e nada. Olhei para o cartão e estava caducado há quatro anos.

E agora o contraditório, Daniel…
D.M.
– Com o meu sócio e irmão Lucho Sepúlveda aprendi muitas coisas. Uma delas é que nas viagens o importante não é chegar, o essencial é estar a caminho. E nesse caminho ele ensinou-me outra coisa: que as histórias devem ser contadas não como um professor ou doutor, mas como poeta. E o meu American Express é de poeta, logo não pode ter PIN, tem de ter versos [risos].
L.S. – Pois, ele nem sabia o que era um PIN.

E estavam em Bariloche, uma cidade que não lhe agrada muito, Luís. Certo?
L.S.
– É uma cidade muito cínica. Fomos lá porque tem o aeroporto e fomos levantar o automóvel para a viagem. No primeiro dia, um homem acercou-se de nós, muito nervoso, quase psicótico, e convidou-nos a ir a casa dele para nos mostrar umas fotografias. Estávamos a tomar um mate e pediu para não dizermos a ninguém que tinha as fotos que iria mostrar-nos – eram imagens de Bariloche em 1939-1940 com toda a cidade cheia de bandeiras nazis e tipos a marchar de braços estendidos. Genteque se converteu em fervorosos democratas quando Hitler perdeu a guerra. É uma cidade cínica. Parece a Suíça, mas a circundá-la há uma cintura de miséria horrível onde moram os mapuches [povo indígena da região centro-sul do Chile e do Sudoeste da Argentina], que de dia não podem estar na cidade. Fazem a limpeza da cidade e saem rapidamente, é o apartheid contra os pobres.

Essa foi a pior etapa da viagem?
L.S.
– Não. A pior não poderia entrar no livro, porque queríamos que fosse uma recordação de coisas realmente bonitas e importantes. Uma ocasião deu-me uma tosse que não passava com nada. E só havia xarope de eucalipto, tomei litros… Um dia encontrámos uma casa típica alemã, onde moravam dois velhos, um homem e uma mulher. Falavam muito mal espanhol e entre eles falavam alemão com sotaque da zona de Estugarda – falo alemão e comecei a falar com eles.
A mulher ordenou-me que fosse para a cama com umas compressas de ervas e passou-me a tosse em horas. Durante a noite tive de ir à casa de banho e saí silenciosamente do quarto com a luz apagada. Enganei-me e entrei num escritório onde estava a bandeira nazi, uma fotografia de Hitler a condecorar um SS que era o velho que nos tinha recebido. Voltei ao quarto, acordei o Daniel e fomos embora sem pagar. Já de dia, e longe dali, o Daniel perguntou-me o que se tinha passado. Foi para não ofender todos os teus parentes que mataram nos campos de concentração.

A Patagónia é lindíssima, mas as pessoas que lá moram são a sua maior riqueza?
L.S.
– Sem dúvida. A vida é muito dura e isso faz que haja uma atitude muito solidária entre as pessoas.

Mas num território tão grande isso continua a sentir-se?
L.S.
– Sim, é um sentimento muito forte, mesmo que as distâncias sejam grandes há uma interdependência. São muito generosos e educados. Houve gente muito pobre que partilhou connosco o pouco que tinha. Quando te aproximas de alguém, a pergunta que te fazem é de onde vens. E depois perguntam: «Tens tempo?» Essa é a saudação da gente de lá, saber se tens tempo para conversar.

Daniel, como foi a primeira vez na Patagónia?
D.M
. – Estava como que drogado de felicidade. Poucas vezes senti na minha vida quão feliz estava num determinado momento. Em geral, só damos conta disso depois de acontecer. Estava embriagado por viajar com o Luis e por essa sensação de as histórias virem ter connosco. É preciso preparar as viagens, elas começam muito antes do quilómetro zero. Para mim foi um sentimento novo sentir que o dia começava e íamos conhecer tanta gente. A Patagónia é um lugar onde se misturam as pessoas, entre os hippies dos anos 1960 e os mapuches. Fomos à procura de um militante ecologista, o Lucas, e quando nos abriu a porta estava com um livro do Luis nas mãos. Senti o coração a bater rápido. Convidou-nos a tomar um chá, apresentou-nos a família e começámos a escutá-lo – porque parte do tempo, em viagem, é dedicado a ouvir. Aprendi com o tempo que as fotografias se fazem com os pés, a caminhar, e com os ouvidos. Isso dos olhos e da alma são lugares-comuns.

L.S. – Esse Lucas tinha de ser uma personagem deste livro, mas nasceu uma amizade tão grande que acabei por contar a sua história noutro livro. O Lucas vive na cordilheira que limita a Argentina e o Chile e falou-nos da política odiosa de criação de parques nacionais que fez que se expulsasse as pessoas que realmente conheciam a região. Fizeram ali uma exploração de madeira e zona de jogos de guerra das forças armadas chilenas e argentinas. Ele juntou um grupo de crianças, ensinou-as a reconhecer as espécies da região, criaram viveiros de árvores e quando elas cresceram multiplicou a operação. E as oito primeiras crian ças tornaram-se monitores que ensinaram os seus colegas e fizeram mais viveiros. Quinze anos depois, sem ajuda estatal, plantaram um corredor florestal que une vários parques nacionais ao longo de mil quilómetros, com 16 milhões de árvores plantadas. Esse é o tipo de gente, é a alma da Patagónia.

A ecologia é uma das vossas batalhas?
L.S
. – Sim. Por exemplo, na Patagónia há um lema que é «Patagónia, reserva de vida».E queriam construir lá umas centrais elétricas. Fui ter com o ministro da Economia a Santiago de Chile, tínhamos sido colegas na escola. Na altura ele vendia canetas, pastilhas, apontamentos, tudo. E terminou como ministro…
D.M. – Se tivermos tempo, devias contar o que vendias nessa altura…
L.S. – Espera, espera. Falei com ele e perguntei-lhe o que achava da construção das centrais. Estupendo para o Chile, disse-me. E sabes que a energia é para uma fábrica de alumínio, poluente, na região onde se encontra a terceira maior reserva de água do planeta e vivem quarenta mil pessoas? Ele respondeu – em termos de macroeconomia, quarenta mil pessoas são ninguém. Voltei no dia seguinte com uma câmara e fiz-lhe novamente a pergunta. Fui à Patagónia, levei um televisor portátil e bati às portas para mostrar o vídeo que tinha feito, falar do projeto das centrais e da fábrica do alumínio. Digamos que a mãe do ministro se tornou muito popular. No final, fiz um documentário, ganhámos o prémio do Festival de Veneza e conseguimos parar aquele projeto. A essência da Patagónia é também a enorme capacidade de resistência das pessoas que lá vivem. Hoje, o maior movimento é o Patagónia sem Barragens.

Este livro é também para dizer que há alguém atento?
L.S.
– Mais do que isso, é para contar quem é esta gente que vive no extremo sul. Para que se sinta menos só. Dá-me um prazer imenso chegar lá e receber tanto carinho. Dizem-me que não me dão as boas-vindas porque eu sou de lá.

Que diferenças vê entre outros grandes espaços como a Sibéria ou o Alasca e a Patagónia?
L.S
. – Os crimes ambientais no Alasca também são enormes e bem disfarçados. Deixaram foi as árvores à beira das estradas para parecer que continua tudo selvagem. Na Sibéria, quando existia o comunismo, pelo menos havia uma ordem elementar, brutal, repressora, mas agora, com a necessidade de enriquecer o mais rapidamente possível, os crimes ambientais na Sibéria não se conseguem medir. Os russos falam de excessos, mas enormes regiões já estão desflorestadas.

Onde pode estar a redenção para tudo isto?
L.S.
– Nos cidadãos. Todos. Têm de pensar em formular com grande seriedade um grande projeto alternativo. Uma coisa é clara: o comunismo fracassou e o capitalismo também. Países como Portugal, Grécia ou Espanha são a prova de que o capitalismo também fracassou. Há que inventar outra opção. Há uma revolução pendente, a do imaginário. Queremos ser cidadãos ou consumidores? Há que estabelecer novos paradigmas.

Daniel, como fotógrafo de escritores, lê-os antes de os fotografar, depois ou não os lê?
D.M
. – Levo 34 anos a fotografar escritores e diria que no meu coração há três grandes lutas por três grandes paixões. A fotografia não é a primeira delas. Desde muito jovem, quando vivia na ditadura argentina, três maneiras de escapar eram a literatura, o cinema e a fotografia. E quando era jovem não sabia o que iria fazer na vida. Hoje pergunto-me se retratar os escritores do modo como o faço não é uma maneira de unir essas três paixões. Não é necessário ler um escritor para o fotografar melhor, mas é necessário lê-lo para fazer melhor o trabalho. Não há atividade mais solitária do que escrever. Aconteceu que, aos escritores que li e que me emocionaram, no momento do encontro foi muito mais difícil fotografá-los. Eu queria era falar com eles. Como sou também jornalista, também tenho os meus truques. Para primeiro encontro proponho sempre retratar o escritor em sua casa, ele sente-se mais à vontade. Sem que me convidem, sento-me na sala, falo de banalidades com ele e peço-lhe um café. E ninguém diz que não. Então a pessoa vai à cozinha fazer o café e sigo-a e entro no seu mundo. Faço a primeira fotografia e quando regresso à sala já ganhei vinte minutos…
L.S. – Que hijo de puta! [risos]

Que fotografia gostaria de fazer a Luis Sepúlveda?
D.M.
– Uau!
L.S. – Tem cuidado…
D.M. – Tenho milhares de fotografias dele, mas gosto daquelas em que viajamos para contar histórias e me esqueço de que ele é o Luis Sepúlveda escritor. Encontro esse olhar brincalhão, quase infantil, como aquela dele entre as ovelhas na Terra do Fogo [capa do livro Últimas Notícias do Sul]. Ele sabe que são fotos seguras, respeitosas. Não gosto de ser invasivo, demasiado presente.

Luis, essa é uma qualidade ou um defeito do Daniel?
L.S. – É uma grande qualidade. Conhecemo-nos porque ele me fotografou, eu não estava em boas condições físicas e pedi-lhe para não usar a imagem. Disse que as enviava, não acreditei, mas enviou.

D.M. – Mandei-as com a minha morada e poucas semanas depois recebi resposta dele a agradecer as imagens. E pedia-me para não as usar porque não gostava de se ver. Falava-me de artista para artista e propôs que eu fosse a casa dele fazer novas fotografias. Fui e assim nos fizemos amigos.


A Volta ao Mundo agradece à Fortaleza do Guincho o apoio na realização desta entrevista.

Entrevista publicada originalmente na edição de abril de 2012 da revisa Volta ao Mundo, número 210.