No céu, com liberdade para todos os lados, está um pequeno pássaro. Tem as asas abertas, mas não as bate, apenas administra a sua subtileza, ínfimo coração, pena, penas. Às vezes, fica parado no ar, como se fosse o mundo inteiro que estivesse suspenso, como se fosse este pássaro a única porção de mundo em que se pode realmente confiar. Um pequeno pássaro, uma criatura, a entender o vento, a ver algo que me escapa.

Estou deitado no mar das Caraíbas. O sal carrega-me, flutuo sem esforço e sem peso. Assento na água, como se lhe pertencesse. O tempo passa sem medida até ao instante em que me levanto. O meu corpo atravessa este espaço translúcido. Há luz no interior da água, há a claridade límpida do sol e há a areia incandescente onde pouso os pés, perturbando essa capa em quase nada. É assim que caminho, eu próprio transformando-me neste sentimento cristalino.

Chego com os tornozelos às ondas que desmoronam sobre a praia, comedidas, sem quererem perturbar, breves lamentos, respiração de todas as horas. Piso a ilha Grande, uma das 47 ilhas que constituem o Arquipélago do Rosário, na Colômbia.

As árvores à minha frente, enormes, são construções altas, complexas como pessoas ou romances. Cada um dos seus mil ramos contribui com precisão para este formato sem falhas, volume sublime. Os pássaros escolhem onde pousar, apreciam a manhã, ou nos ramos mais salientes, debaixo do sol, como se os seus corpos inertes fossem também feitos de madeira, ou no interior da copa, protegidos pela sombra grossa das folhas, a serem uma presença invisível. Os cantos das aves parecem mais prolongados, têm notas que não reconheço, instrumentos novos, toda uma nova orquestra.

O mar estende-se até ao céu. Encontram-se lá ao fundo, há uma diferença entre os dois azuis, espécie de linha impossível de assinalar realmente. Espero ser capaz de não esquecer as lições destes dias. Precisarei delas em manhãs cinzentas, engarrafamentos, problemas que pareçam não ter solução.

Acredito que a seiva corre dentro destas árvores da mesma maneira que o sangue corre dentro de mim, à mesma velocidade lenta e natural. Parece-me agora que talvez a maior força da natureza seja o tempo, o modo como impõe um ritmo a todas as coisas, uma ordem única, interligada, o mar, as árvores, o céu, as aves e o vento a regerem-se pelo mesmo sentido. Sinto o vento na pele, fecho os olhos para concentrar-me no toque da sua temperatura, suave, vento como algodão.

O mar estende-se até ao céu. Encontram-se lá ao fundo, há uma diferença entre os dois azuis, espécie de linha impossível de assinalar realmente. Espero ser capaz de não esquecer as lições destes dias. Precisarei delas em manhãs cinzentas, engarrafamentos, problemas que pareçam não ter solução. Agora, no entanto, preciso de estar verdadeiramente aqui. Só assim poderei vincar esta clareza, guardá-la para quando precisar de me guiar no caos, quando perder por momentos a consciência das proporções e deixar de saber aquilo que importa realmente.

Como este mar, estas árvores, este céu. Que eu possa ter a imensa sabedoria daquele pássaro, pequeno, que não bate as asas e, assim, possui o céu inteiro, interpretando o vento, sentindo as suas marés, sem pressa de ultrapassar o tempo, sem a ilusão de vencê-lo, absolutamente livre e vivo.

Leia aqui todas as crónicas de José Luís Peixoto.


Crónica publicada originalmente na edição de maio de 2018 da revista Volta ao Mundo, número 283.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.