Personagem Passas por mim e deixas-me cheio de perguntas sobre mim próprio.
Desde a perspetiva do teu olhar, levas o mundo contigo. Os patins deslizam pelo passeio de cimento. Conheces tão bem esse som que prescindes dele, troca-lo por uma música só nos teus ouvidos, inventada por alguém só para os teus auscultadores. Deslizas. Para ti, as palmeiras à volta do caminho são exemplos banais de mais uma manhã. Ao mesmo tempo, não estranhas o cheiro salgado do mar a infiltrar-se na areia, a chegar numa brisa, como uma memória. Tu atravessas essa brisa e não te surpreendes sequer com a velocidade, lanças o movimento de uma perna, depois de outra, e tudo isso está bem e faz parte de um instante completo.

Já eu, parado no momento que te sucede, estranho até o sol, essa estrela mundial. E penso que poderia facilmente apaixonar-me por uma certa ideia que construísse de ti. Seria, quase de certeza, uma ideia bronzeada, coberta pelo brilho da Ocean Drive ou, mais concretamente, pelo brilho de um sonho. Seria a minha vontade súbita de acreditar. Tão boa e necessária essa inconsciência, esse voo simples e repentino. Reparando com mais detalhe, desconfio que cheguei a apaixonar-me. Creio que os vapores dessa embriaguez chegaram a tocar-me os sentidos. Quantos, como eu, se apaixonarão à tua passagem? Sou capaz de imaginar as margens do teu caminho povoadas por essa ilusão. Talvez a tua tarefa seja espalhar esse pólen no ar, talvez sejas uma técnica da primavera para amenizar o mundo.

Mas, logo a seguir, és como um perfume, a tua presença dilui-se devagar. Transformas-te numa espécie de melancolia ligeira, dor muito fininha. E o tempo continua, a idade continua, as imperfeições de tudo continuam. Considerando a velocidade a que passaste, acredito que já estejas longe. Não venho aqui todos os dias, por isso é quase seguro que não voltaremos a cruzar na vida. Desculpa, eu sei como tudo isto é injusto para ti. Neste momento, estás a seguir os teus pensamentos, alheia aos reflexos que permanecem em mim e se diluem. Estás onde não sou capaz de imaginar a não ser capaz de imaginar onde estou. Num certo sentido, no teu sentido, não passaste por mim.

Tens razão. Aquela que passou por mim não eras tu, aquele por quem passaste não era eu. E não creio que me tenha chegado a apaixonar. Se essa chama tivesse ardido, não aceitaria o seu fim tão depressa. Seria capaz de acreditar que duraria para sempre. Teria mil dúvidas sobre tudo, menos sobre essa certeza, a mesma certeza que agora, neste momento que te sucede, não tenho.

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Crónica publicada na edição de março de 2012 da revista Volta ao Mundo (número 209).

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