A poesia de José Luís Peixoto em Miami
[Imagem: D.R.]

A poucas horas de Miami, no norte do estado da Florida, fica Orlando. A maioria dos seus milhões de visitantes não chega a conhecer a cidade. Em vez disso, passam dias inteiros num ou em vários dos parques temáticos mais conhecidos e visitados do mundo.

Texto de José Luís Peixoto
Fotografias de Adelino Meireles

Abandona os gestos desnecessários, abandona
o peso e a forma do corpo, abandona o chão.
Tens altura suficiente para entrar. Podes
sentar-te à frente e podes levantar os braços nas
descidas. Subirás devagar, aproveita para ver
a paisagem. Descerás de repente, num instante de
onomatopeias: zut, vrrrum. Grita. Se quiseres,
podes gritar. O vento gritará ao teu lado.
Tens o cinto de segurança posto, já não podes
voltar atrás, já não podes abandonar o ritmo
a que bate o teu coração, o teu coração, o teu
coração. Respira, a vida é feita de estar vivo.
Não vás de olhos fechados, abre os olhos
e respira, repara neste momento da tua vida:
estás numa montanha-russa, mas nem estás
numa montanha, nem estás na Rússia.

Sea World, Miami

Os risos das crianças levantam-se,
são como bandos de pardais invisíveis
a espetarem-se no ar. São pardais ligeiros,
de coração limpo, de alma transparente.
Bendita seja a primavera.

Eis que chegou o tempo imaginado, o tempo
sonhado durante meses no escritório.
O riso das crianças vale longos invernos,
dias de horas extraordinárias a anoitecerem cedo.
O riso das crianças protege o mundo inteiro
de si próprio. Bendita seja a primavera.

Um universo completo feito de pipocas, gelado e gomas.
O ar e o início da manhã cheiram a açúcar.
A brisa mais natural, vinda diretamente do fresco,
nascida de uma nascente, cheira a açúcar refinado.
Até as palavras são doces, sente-se ao pronunciá-las.
As crianças gostam, quase enlouquecem por instantes.
Sem resistência, os adultos aprendem o que já esqueceram.

Sea World Miami

Fechamos os olhos às engrenagens e aos motores.
Sabemos que existem lá atrás, camuflados por
músicas garridas e arco-íris. Não sabemos tudo,
mas acreditamos que sabemos alguma coisa.
Inclinados sobre essa paisagem, fechamos os olhos
à eletricidade e ao combustível. Temos facilidade
nesse paradoxo porque não é preciso fechá-los mesmo,
podemos abrir bem os olhos, arregalá-los, podemos
sorrir o quanto quisermos, tudo ou quase tudo,
basta não pensar naquilo que não está à vista.
Ao contrário do que acabámos de fazer,
basta não falar nisso.


Poema publicado na edição de março de 2012 da revista Volta ao Mundo (número 209).

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