Quando chego à porta aberta, ao cimo da escadaria do avião, é de madrugada e está um calor diferente, árabe. Tenho uma multidão à minha frente, vejo-os ao longo da escada, a entornarem-se pela pista, já a encherem autocarros e, sei, tenho também uma multidão atrás de mim, ainda afunilados nos corredores do avião por onde passei há pouco ou, mesmo, ainda sentados, sem terem tirado a bagagem de mão. Apesar do mês de inverno, ignorando o calendário, este é um calor de verão, posterior ou anterior a um dia muito quente. Depois de horas fechado, parece-me que atinjo de repente o fim das escadas, onde está um homem com um longo letreiro a indicar destinos para um lado e outro, diferentes continentes, como um cruzamento do mundo. Dependendo do destino, entra-se no autocarro da esquerda ou da direita. Essa triagem não alivia o autocarro cheio de gente, hora de ponta na madrugada de uma estrada ocupada por enormes aviões estacionados, também não impede a avalanche de gente que se lança debaixo das luzes brancas do aeroporto. Carregam mochilas com almofadas de pescoço penduradas, sacos enormes que os desequilibram para um dos lados, arrastam malas com rodinhas.
«Depois dos apitos mecânicos, somos largados num labirinto de escadas rolantes, vários andares de escadas rolantes cruzadas.»
Antes da máquina de controlar metais, está um enorme cartaz com dezenas de sinais de proibido: armas, cordas, martelos, berbequins, baterias de lítio, tesouras, facas, etc. Os funcionários à volta da máquina são filipinos, grande movimento de tabuleiros, estrondos de plástico duro. Estou numa fila entre famílias inteiras, homens e mulheres de todas as idades. Eles e elas com as suas pulseiras, com os seus colares, com as suas túnicas, com as suas bengalas, com as suas malas repletas de objetos inusitados, eu com os meus piercings. Depois dos apitos mecânicos, somos largados num labirinto de escadas rolantes, vários andares de escadas rolantes cruzadas. E dirigimo-nos todos a seis ecrãs com o que parece ser a lista desordenada de todas as cidades do mundo: Perth, Islamabad, Dallas, Manila, Durban, Taiwan, Kuwait, Birmingham, Dakar, etc. É nesse ponto que nos separamos, cada um leva uma porta gravada no espírito, C14 é a minha. E, ao longo de corredores infindos, súbitos espantos de arquitetura, passo por pessoas a comerem em bancos de pé alto, ou perdidas entre prateleiras de Duty Free, quando conseguirão sair dali?, ou a serem atendidas individualmente em lojas de luxo, espécie de aquário luminoso, ou a caminharem no fluxo incerto a que também pertenço, atravessado por carros elétricos, por funcionários fardados a empurrarem cadeiras de rodas. A seguir, haverá passadeiras rolantes; a seguir ainda, haverá o shuttle, limpo e branco, um tiro num túnel. Sigo a velocidade constante, interrompida por soluços, contorno obstáculos, pessoas principalmente. Não me sobressalto com o horário impresso no cartão de embarque, com o resto do caminho, milhares de quilómetros. Sei que a porta C14 existe e está à minha espera, sei que hei de chegar a ela e atravessá-la. É de madrugada no Dubai. Toda a gente vem de algum lado e vai para algum lado.
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Crónica publicada na edição de maio de 2020 da revista Volta ao Mundo (número 307).
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