Guadalupe e Martinica são dois territórios ultramarinos franceses. Praia, sol, rum, natureza, música e história são algumas das marcas que ficam de uma viagem de descobertas. Nas Caraíbas há outros destinos para além do óbvio.

Texto de Ricardo Santos | Fotografias de Pedro Correia

GUADALUPE
Ainda se come bem e barato em Lisboa?» A questão vem de Alain, vendedor de gelados junto à Pointe des Chateaux, na ilha de Guadalupe, nas Antilhas Francesas. Paris está a 6700 quilómetros de distância (cerca de oito horas de voo) e mais perto estão Barreiro, Algarve e Troia, destinos que entram rapidamente na conversa. Este francês de 47 anos fez amigos junto ao Tejo e visitou as praias do Sul de Portugal, mas já foi há quase trinta anos – «É verdade, como o tempo passa…» Pergunta pela situação económica, pelo sol, pelo peixe assado e pelo marisco enquanto raspa gelo para um copo de plástico, num processo secular de fabrico de gelados. De seguida, despeja licor de menta sobre a massa fria e já está. Sabe bem, está calor.

O vento sopra quente e pequenos grupos de turistas vão subindo e descendo até à cruz de cimento que marca o local avistado por Cristóvão Colombo e seus marinheiros em 1493. Todos os anos, cerca de meio milhão de visitantes procuram este ponto no extremo este de Guadalupe, com vista para a praia de Grandes Salines e para as ilhas Désirades, Saintes e Marie Galante que, juntas, formam o arquipélago da Guadalupe. Nesta, a principal, conhecida por ilha Borboleta graças à sua configuração, encontramos as duas «asas», Grande Terre e Basse Terre. Foi na primeira que começámos, preparados para a primeira mariscada de uma semana de praia, natureza, animação e descobertas nos territórios ultramarinos franceses. Uma viagem onde a história também está sempre presente.

Os quase 1700 quilómetros quadrados de área da Guadalupe estão repletos de segredos bem guardados pelos seus mais de quatrocentos mil habitantes. Aqui é França, mas já foi Inglaterra e Suécia, e se há coisa que os guadalupenses gostam de relembrar é o nome da sua capital – Paris. Basse Terre é a cidade mais importante do arquipélago, em termos administrativos, mas oficialmente estamos em França, na União Europeia, com direito ao euro e seus preços, bem como às inerentes questões delicadas do desemprego ou da falta de oportunidades. São temas difíceis de analisar corretamente quando se mergulha pela primeira vez neste mar ou se descobre as maravilhas da cozinha crioula. E quando se podem juntar as duas realidades no mesmo local, parece que falar de felicidade faz todo o sentido. Mudamos de «asa» no mapa através do rio do Sal e passamos para a Basse Terre, a porção da ilha mais vulcânica, em contraste com as planícies de Grande Terre. Doze mil hectares de plantações de cana-de-açúcar e seis mil de banana dão uma boa ideia dos principais produtos da ilha. São estes que começam a ser apresentados à mesa do Karacoli, restaurante em plena praia de Grand Anse Deshaies. Juntem-se-lhe peixe no forno, caril de frango, inhame e os inestimáveis akra (tradicionais bolinhos ou pastéis de peixe) e a refeição fica completa. Ou quase, é que ainda não se falou do rum, uma paixão e indústria desta região. Sabendo que são necessários mil quilos de cana para se chegar a cem litros desta bebida, há que fomentar a economia local. E assim se abrem as hostilidades – depois de um mergulho prolongado nas ondas ali bem perto – com um ti’punch: açúcar, lima e rum.

Parece não ser possível começar a interação social sem esta mistura, por isso, em Roma sê romano… Mais tarde, na destilaria Domaine de Séverin (severinrhum.com), a «romanização» continuou sob a forma de provas, compras e uma visita à propriedade (11 euros por pessoa), a bordo de um comboio onde não faltaram turistas, franceses na sua imensa maioria. Chegam em busca de exotismo no seu próprio país, a milhares de quilómetros de distância de casa, mas encontram mais do que desejavam. Encontram um território onde os efeitos da mestiçagem estão bem presentes e onde a herança dos antigos grandes proprietários não foi esquecida. Mas também descobrem a Guadalupe das especiarias dos inúmeros restaurantes de peixe e marisco e da improvável inspiração gourmet que faz dos habitantes locais os maiores bebedores de champanhe de toda a França. É, pois, em grande estilo que continuamos viagem, entre montanhas e através de estradas sinuosas até à mais procurada das praias de Guadalupe – Saint Anne. A meio da costa sul da Grande Terre, com proteção natural dos recifes de coral e areia branca de fazer inveja a catálogos de férias, abrem-se as portas do Club Med La Caravelle (clubmed.fr). A praia é de folheto, com palmeiras a debruçarem-se sobre a água e pequenas enseadas a exigirem que se estendam toalhas no areal ou nas espreguiçadeiras.

Do bar chegam os sons dos ritmos locais, mas também o apelo de um cocktail colorido. As decisões não são fáceis de tomar neste destino: Praia ou bar? Massagens ou piscina? Desportos náuticos ou compras? Snorkeling ou um passeio pela localidade de Saint Anne? Acabamos por tomar todas as decisões, sem arrependimentos. Porque, como lembrava Alain, o vendedor de gelados, com um sorriso do tamanho do mundo: «Vou dar-vos uma novidade – amanhã o Sol vai nascer outra vez.» E agora só há tempo para fazer a mala e partir para a próxima paragem: Martinica.

MARTINICA

Lucca é italiano, passou dos 30 anos, mas poderia facilmente não ter chegado a essa idade. Uma semana antes do momento em que se aproximou para pedir um cigarro, naquela praia da Martinica, estava perdido no oceano, quinhentas milhas ao largo de Barbados. Uma tempestade inesperada partiu o mastro principal da embarcação da qual é skipper – «São vinte mil euros de prejuízo», informa encolhendo os ombros. O som da dance music e o nível de alcoolemia do velejador italiano fazem que algumas partes da conversa se percam. A praia de Saint Anne (exatamente o mesmo nome da de Guadalupe) foi invadida pelo Martizik, um festival internacional de música eletrónica, e cerca de 2500 pessoas aproveitam as boas temperaturas para dançar com pouca roupa no areal, mergulhar no mar ou incentivar o DJ a acelerar o ritmo. Lucca faz contas aos dias que faltam até as reparações estarem concluídas. A seguir à Martinica, a próxima paragem será a marina da Horta, nos Açores. O gin tónico no Peter’s está praticamente garantido, assegura antes de se despedir e seguir cambaleando em direção às luzes coloridas que saem do palco. Tem sorte em estar vivo e está consciente do quase milagre de ter sobrevivido com mastro e vela de improviso até ser rebocado por um cargueiro que seguia para a Martinica, a menos de uma hora de voo de Guadalupe. Estamos no mar das Caraíbas, num território com cerca de 1200 quilómetros quadrados entre Dominica, Santa Lucia e Barbados. É outra das 27 regiões francesas e também ela foi encontrada por Cristóvão Colombo (desembarcou em 1502) quando, errante, procurava o caminho para a Índia. O acaso resultou bem.

Martinica [Imagem: D.R.]
As primeiras horas da manhã são passadas a descobrir Fort de France, a mais importante cidade da ilha e onde se localiza o aeroporto internacional que leva o nome de Aimé Césaire (1913-2008), o poeta da negritude. «Papa» Césaire, como ainda é conhecido na sua ilha, foi político e pensador, amigo de Léopold Sénghor e Mário Soares e deixou bem expressas as suas ideias contra, por exemplo, o colonialismo: «Eu falo de sociedades esvaziadas delas mesmo, (…) de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas, de extraordinárias possibilidades suprimidas.» A sua vida e obra está presente na imponente Biblioteca Schoelcher (cg972.fr), no centro de Fort de France, que é provavelmente o mais belo monumento da cidade. É quase impossível não apreciar a sua arquitetura romano-bizantina. Ali bem perto também há outros motivos de interesse, como a Catedral de Saint Louis (século xix), o forte com o mesmo nome (construído em 1640) ou, fora da cidade, o Sacré Coeur de Balata, uma basílica da década de 1920 (réplica da famosa congénere de Montmartre, em Paris) e a partir da qual se tem uma vista abrangente sobre Fort de France. E depois da experiência religiosa e contemplativa, que tal uma aula de botânica e um passeio pelas árvores? É possível fazê-lo no Jardim de Balata (jardindebalata.fr), um espaço único nas Caraíbas onde a flora da região está bem representada e não falta a aventura do arvorismo através de pontes de madeira construídas junto às copas das árvores.

Mas quando se fala de Martinica, Caraíbas e Antilhas há que falar de praias e a escolha por estas paragens é diversificada. Ilha vulcânica que é, não será difícil encontrar praias de areia negra e água quente. É o caso de Le Carbet, na costa oeste, o local onde o pintor Paul Gauguin (1848-1903) viveu durante cerca de um ano. E já que se fala de almas excêntricas, nada melhor do que seguir viagem mais meia dúzia de quilómetros para sul e fazer uma paragem em Bellefontaine. É aqui que vive e trabalha Guy Ferdinand, um cidadão da Martinica e do mundo ao qual se aplica o velho dizer: «Se não nascesse, teria de ser inventado.» Guy é negro de cabelo loiro, oxigenado. Veste uma jaleca encarnada de chef e uns curtos e apertados calções de ganga que são a sua imagem de marca. Assume-se como um artisan-restaurateur e escolheu os nomes de dois dos aquartelamentos romanos em redor da aldeia de Astérix para os seus restaurantes. No Babaorum e no Le Petibonum (babaorum.net) as suas poções mágicas fazem sucesso. E se a comida convence, com marisco e gastronomia crioula em sintonia, é o seu one man show que mantém os clientes satisfeitos. «Crise, qual crise? Isso é lá na Europa, aqui não sinto nada disso. Olhem para ali: o mar, as mulheres bonitas, o calor…» Repete a ideia duas ou três vezes durante o almoço de lagostins acompanhado por vinho branco gelado. E é bem capaz de ter razão.

Prosseguimos a viagem sempre junto à costa, deixando Fort de France para trás e passando por Les Trois Ilets e descobrindo enseadas a cada curva. Até que se chega a Les Anses d’Arlet e não existe outra hipótese que não seja a de parar. É uma pequena aldeia de pescadores que cresceu e é hoje procurada como destino turístico. Mantém a estrutura das casas térreas e coloridas e da sua igreja principal sai um pontão em direção ao mar, de onde as crianças e adolescentes continuam a saltar sem medo. A água convida, tal como o ritmo de vida desta vila de 3500 habitantes onde não se vislumbram hotéis, apenas casas particulares para alugar. E continua a descoberta da Martinica: passa-se o rochedo do Diamante e a vila com o mesmo nome, descobre-se o Memorial Cap 110 e fica a saber-se histórias de 1830. Foi nesse ano que um barco repleto de escravos naufragou junto ao rochedo. Enormes estátuas viradas para o mar, em direção ao golfo da Guiné, homenageiam os 46 homens que não se salvaram.

E eis que a estrada nos leva até outra Sainte Anne. Depois de Guadalupe, é na Martinica, também ela na praia, também ela com um Club Med à nossa espera. É na sua extensa praia que se realiza o festival de música eletrónica. Há bar na praia, música e coreografias, esqui aquático, piscina, areal e água onde apetece estar, mas o que há também é o desejo de continuar a descobrir este segredo das Caraíbas. E é a isso que nos propomos na manhã seguinte depois de uma curta viagem de vinte minutos desde o hotel. Em Le Vauclin há que subir para uma piroga transparente e remar até aos mangais, conhecer os ecossistemas locais, aprender e apanhar uma das maiores chuvadas de que há memória. A experiência acaba, primeiro, no barco de apoio e, depois, num pequeno areal com vista para a encosta onde foi filmado em 1999 parte de O Caso Thomas Crown, com Pierce Brosnan e Renée Russo. Há o silêncio, as piadas dos guias da empresa de ecoexcursões (fleurdo.com), os sempre presentes akras e o rum. Mas também há a vontade de que o tempo não passe e seja possível fazer mergulho, snorkeling, caminhadas na natureza, descobrir jardins botânicos e parques naturais, vulcões inativos, plantações de cana-de-açúcar e antigas e atuais destilarias onde a tradição é protegida. Ainda não se está de partida e já há desejo de voltar. Ou de ficar. Nem que seja por uns tempos, como Gauguin.


Reportagem publicada originalmente na edição número 213 da revista Volta ao Mundo.

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