Crónica de uma viagem adiada
[Imagem: D.R.]

O mundo é uma aldeia que comeu muito, ampliou-se.

Pensava no poema de José Régio, “Não sei por onde vou, sei que não vou por aí!”, durante a Volta ao Mundo, quando as fronteiras anunciaram a sua tristeza. Antes de rodarem a chave para trancar o mundo girei-lhe a maçaneta e consegui chegar a Portugal, à aldeia onde nasceu a minha infância. Pareceu-me uma forma de criar uma versão mais simples do novo modo de estar. Uma criança a quem deram um quadro com os contornos do mapa mundo organizados do seguinte modo: o percurso que tinha planeado percorrer apagara-se e, na aldeia de Picote, estava um quadrado verde a acenar-me. Comecei a preocupar-me menos com a localização e mais com o tempo. Os meus pais esperavam-me para uma hipótese única de recuperar e ampliar romances familiares. Os cães tinham o focinho irrequieto de quem farejou a minha história toda à distância. Não sei de onde vem tanto ânimo nos regressos. Mas o sismógrafo, opado de felicidade, aponta para valores de pico nestas alturas. Uma casa na aldeia consegue ser pouco mais ruidosa que o piar de um pardal. Nesse tipo de silêncio, entro. A televisão ouve-se ligada, mas é difícil comprar pensamentos que daí vêm. O chão da entrada raramente está varrido. A terra da lavoura, à boleia da sola das botas, estende-se até casa. Às refeições somos funcionários públicos porque há horários marcados. Ter rotina é diferente de ser rotineiro. Ter rotina é regar todos os dias e esperar noventa dias pela primeira cebola com cerca de 10 centímetros de diâmetro. Na aldeia exagera-se no tamanho das coisas. Ser rotineiro é um espantalho pendurado ao correr dos campos de trigo, como se fosse uma montra na rua de Santa Catarina. Os dias tornam-se idênticos entre si e parecem não mudar de posição. É o chamado carpe idem. Os dias são um género de jogo de xadrez, mas com uma diferença: um peão vale menos que um cavalo, mas uma segunda-feira vale tanto como um sábado. O mesmo cheiro, que não leva perfume nem incenso. As porcas, deitadas, com os peitos túrgidos, alimentam seis crias iguais a ela. A cosmética dos pintainhos acabados de nascer com bis no piar. O vento cala-se e raramente chega aqui. Talvez porque goste mais de estar perto dos barcos à vela. Os legumes parecem estar vivos porque são imperfeitos. A fruta parece que estudou, porque é fruta que sabe. As tarefas do costume causam insónias durante o dia: recolher os ovos quentes, carregar estrume, arar campos, drogar ervas daninhas. O trator, dependendo do tipo de solo, ajuda os burros mirandeses. Quando o sulco fica às curvas é porque os burros beberam bom vinho. O primeiro sistema de irrigação da história foi feito com canais a partir do Tigre e do Eufrates, mas aqui a água chega de um furo a 130 metros. O regadio faz lembrar um ribeiro com pouca personalidade. Os canais de rega alteram toda a lavoura. Foi esta que aliviou os povos para se dedicarem a outras artes, nomeadamente, a da escrita, o que deu origem à propagação de boatos. Há um que a Ti Arminda, de 97 anos, costuma contar: “isto do Corona vírus vai atirar os velhos todos para a Companhia do Pé Junto.” Ofereçam-lhe um cume a ela e um trono aos 200 habitantes da aldeia e ficamos a ouvi-la o dia todo. Somos poucos, mas às vezes lá vem alguém alto que rasga o céu e, entretanto, cai água. Nesses dias descansa-se o regadio, mas tudo continua a crescer. Nunca vi meloas com braços, mas já avistei batatas com joanetes. Não sei de onde vem a força da horticultura, mas com certeza que a das batatas vem do monte Olimpo. É de lá, também, de onde vem uma frase que o meu tio diz: “Hades cá vir.” Provavelmente refere-se a Hades, o deus do submundo. Os meus tios, com cerca de 90 anos e rostos de pergaminho, falam com as personagens das telenovelas, numa tentativa de interação com o mundo. Defendem-se sempre um ao outro mesmo que se encurralem a si próprios. Não sabem que a palavra família leva um acento agudo, mas sabem que é uma palavra sublinhada. E, para eles, as palavras sublinhadas, metafísicas ou físicas, são as coisas mais importantes da vida: gaita de foles, roca, alforje, telefone com a voz dos netos, bota de vinho, dolorosa geografia. Os salpicões conservam-se nas talhas de azeite e o culto das coisas anteriores a nós são preservadas a pó. Ainda ontem o meu pai falou do seu caderno escolar, um quadro a giz, tratando o distanciamento do objeto de uma forma muito próxima fazendo da lembrança um lugar seguro. Se chamarmos centro comercial à estufa ela não se cultiva sozinha e, portanto, vou até lá ampliar o que a terra dá. Quando estou lá imagino-me com os meus documentos protegidos, debaixo de uma almofada, como se estivesse numa Volta ao Mundo.


Rui Peres nasceu em 1982 na aldeia de Picote, Miranda do Douro, Trás-os-Montes, Portugal. É licenciado em Engenharia de Telecomunicações e Informática mas continua a usar máquina de escrever. Trabalhou em projectos para aviões e comboios mas prefere andar a pé. Viveu em vários países. Editou centenas de poemas nas toalhas de mesa dos jantares de família. Está a cumprir o seu sonho – dar a volta ao mundo. Partilha histórias com pessoas e lugares no seu projeto @mal.parado.

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