Esta é uma reportagem publicada na revista Volta ao Mundo – edição n.º 251, setembro de 2015. Recuperamos para recordar a terra do escritor cabo-verdiano Germano Almeida.
Texto de Valentina Marcelino
Fotografias de Orlando Almeida
«Tenho medo de voltar, receio de se ter perdido a morabeza que lá deixei. Quero ficar com essa memória. Prefiro guardá-la assim. Perfeita.» Há emoção na voz de Germano Almeida, o premiado escritor que nasceu na Boa Vista, em Cabo Verde, quando lhe ligamos da sua terra, no último dia de viagem. Queríamos que nos desvendasse alguns dos mistérios da ilha que já inspirou livros seus. Germano deixou a Boa Vista aos 18 anos (tem agora 72) e voltou lá apenas em 2005.
Contamos-lhe o que fizemos nos últimos dias, os lugares que visitámos, avivamos-lhe as imagens de contraste entre o agreste das colinas secas e as dunas aveludadas, as praias desertas, as comidas que provámos, a música, uma morna suave para nos embalar como um mar terno, outras vezes um funaná tão intenso como ondas altas a explodirem na areia. Mas, principalmente, falamos-lhe das pessoas. Das gentes das terras, das suas histórias, dos seus sorrisos, da forma como nos acolheram, enfim, a tal morabeza que Germano teme ter-se sumido. Do outro lado do telefone sente-se o seu sorriso aberto. «Na última vez que aí fui fiquei triste. A ilha estava muito descaraterizada, com o turismo de massas. Senti que tinha perdido aquilo que me está a dizer que encontrou. Se calhar ainda volto.»
Areais macios como veludo e mar cristalino são a «boa vista» que deu nome à ilha.
Venha daí Germano Almeida, venha daí. Pode começar por visitar a sua velha aldeia, João Galego, lá no Norte, onde as casas pintadas de cores garridas contrariam descontraidamente a aridez castanha e pedregosa da paisagem. Antes, ainda parámos em Bofareira, na Mercearia do Elvis a beber uma Strela, a cerveja de Cabo Verde, quase gelada (ainda só há luz metade do dia) e a ouvir as piadas do Luís Morais («Sim, tenho o nome do grande saxofonista da Cesária Évora», disse com orgulho), com um inesperado cap de pequenas lantejoulas prateadas.
Em João Galego, as mulheres vão duas vezes por semana à capital, Sal Rei, vender a sua fruta, legumes e, claro, o inesquecível queijo de cabra. Estes resistentes animais são uma constante no cenário, com os seus perfis a recortarem-se em cada monte, à procura de alguma erva entre as pedras. Não chove há um ano, está tudo muito seco, terras gretadas a gemer por água, mas ainda há onde fazer pequenas plantações para delas tirar o sustento. A água para rega vem do mar, é dessalinizada e tratada para consumo.
Ah! Quer saber a melhor? Uma das excursões que organizam no hotel onde ficámos chama-se A Ilha Fantástica. Sim, o nome de um dos seus livros sobre a Boa Vista, aquele das histórias do nhô David, neto do judeu Ben’oliel que ali desembarcou fugido de Marrocos, em 1800, da Ti Júlia, da Ti Maia e tantos outros. Aquele onde eu dei o primeiro mergulho da viagem, antes sequer de ter chegado. «Temos praias de areia grossa e branca, onde o mar é fundo, manso e límpido; praias de cascalho ligeiro e ondas fortes e também praias paradas como se fossem lagos ou simples poças d’água.»
A praia de nhô David também está lá, a norte de Sal Rei. É a praia de David e está tal e qual como a descreveu – «Aconchegada e recatada, uma espécie de língua sensual de mar em eterna e fascinada carícia sobre corpo adormecido da terra». É verdade que para lá chegar «é preciso descer-se por uma espécie de escada escavada entre as rochas e este simples acidente natural confere-lhe a intimidade e a quietude de um templo cujo suave vazio, que o preguiçoso ondular não chega a perturbar».
No interior da ilha a paisagem é agreste, seca, pedregosa. Passeios de jipe são opção a ter em conta.
De João Galego descemos ao Fundo das Figueiras. São cinco minutos. É outra aldeia com uns 150 habitantes, as ruas muito limpas e as casas, também, coloridas e bem dispostas como os habitantes. Como a D. Tina (não gosta do nome Constantina), a proprietária e cozinheira do restaurante Reencontro. Do calor seco da rua entramos numa aragem fresca que corre na sala das refeições, uma espécie de ar condicionado ao natural, provocado pelas portas abertas.
As paredes estão forradas com cestos de vime e redes de pesca, o teto são ramos de tamareira apertados. A mesa, com uma toalha de cores vistosas, enche-se: cabrito guisado, legumes de toda a espécie, beringela, aboborinha, cenouras, lentilhas. Como tempera estes filetes de atum, D. Tina? «É muito simples, alhinho, limãozinho, sal e coentrinho», responde, numa voz doce embalada por um sorriso terno, enquanto volta a prender uma madeixa do cabelo que lhe fugiu da touca de cozinha.
Ao final do primeiro dia, a música cabo-verdiana passou a estar na nossa cabeça, no nosso corpo. Quando regressarmos, sentiremos que também invadiu o nosso coração. Não fosse a Boa Vista a terra onde nasceu a morna, um doce canto triste, sentido, de saudade. Na procura da morabeza a Linda Araújo, uma encantadora cabo-verdiana, com um sorriso de olhos radioso, «imigrante» de São Vicente, que teve a ousadia de se apaixonar por aquela ilha, abriu-nos a porta da casa de Celeste Almeida. Sua prima, Germano, sim. O mundo é pequeno, a Boa Vista é uma grande casa de família. Foi ela que nos disse que o seu sítio favorito em Sal Rei, quando era miúdo, era numas rochas negras, banhadas pelo mar, onde se sentava a ler e a escrever.
No pequeno porto de Sal Rei, capital da Boa Vista, o fresco da água convida a um mergulho do cais. Todos os dias o ritual repete-se.
Celeste, 61 anos, aqueceu primeiro os nossos estômagos com uma cachupa rica. «Esta é diferente dos restaurantes, onde servem tudo misturado», começou por explicar. O tudo são as carnes e enchidos diversos, o filete de atum fresco estufado com cebola, as couves, as cenouras, a batata-doce, a mandioca e a cachupa propriamente dita, com o milho, o feijão-pedra e sapatinha (família do feijão). «Gosto de servir tudo separado e cada um põe a riqueza que quer no seu prato», acrescentou. A conversa flui, tão amena como a brisa que entra pela janela aberta sobre o mar. «Boa Vista é uma ilha sem vaidade, ampla. A vaidade cresce no mar. Olhando para ele a nossa alma fica limpa. Se tivesse de nascer outra vez, escolhia este sítio», diz firmemente Celeste, que voltou no ano passado de 30 anos fora do país como emigrante, na Suécia.
O mar limpo abastece de bom peixe e marisco os habitantes da Boa Vista e os turistas que a visitam todos os anos.
Há raras famílias na ilha que não têm emigrantes. Muitas mornas se inspiraram nesta fatalidade, para expressar as saudades da ilha. «Quando estamos lá fora, a música da terra é a nossa alimentação da alma», conta Celeste. Levanta-se e, de repente, a sala foi invadida pela sua voz, a fazer arrepiar os pelos dos braços. «Parti p’a terra longe / Foi sempre nha ilusão / E ali ja’m esta / Di sorriso falso / Margurado e triste /Ta vaga de mar em mar / Ta corre de vento em vento / Em busca de um futuro / Entre sombras di distino», canta, a morna de Ildo Lobo, um histórico músico de Cabo Verde, dos Tubarões. No seu rosto, em cada linha, nos seus olhos molhados, passa a sua vida como num filme, dura, sofrida, mas sempre, sempre determinada a voltar à sua ilha. «Fiz uma promessa ao meu chão. No dia que saí, fui beijar o chão da minha igreja e jurei que regressaria», lembra.
Agarra-nos pela mão e leva-nos porta fora. Andamos uns metros pela rua poeirenta e quente e chegamos perto de uma pequena casa de portas abertas. «Mulheres Ativas», anuncia uma tábua pintada de azul na parede. Lá dentro, mulheres, umas mais novas outras mais velhas do que Celeste, costuram em máquinas antigas, recortam pedaços de tecido coloridos que cosem uns aos outros até formar colchas alegres e festivas. Joana, Valentina, Filomena, Dazinha, Paulete, Amorina e Marcelina passam ali muitas da suas tardes.
Quase todas estiveram fora da sua ilha, emigradas, mas a saudade não as deixou ficar. «Organizei aqui este espaço e quero que todas se juntem a conversar, a costurar. Vamos começar a vender coisas, mas o importante é estarmos distraídas», sublinha Celeste, levando-nos de volta para o prometido «lanche cabo-verdiano»: bolo de cuscuz de mandioca e milho, barrado com mel de cana ou manteiga, queijo fresco de cabra e «sucrinha» (quadradinhos de doce de leite). A acompanhar um aromático chá de hortelã fresca.
São praias para todos os gostos: areia grossa, branca, mar fundo ou manso, com cascalho ou ondas fortes, mas todas elas inesquecíveis.
Na Boa Vista não faltam iguarias, para apreciar com tempo e estômago preparado. Alguns restaurantes são de ex-emigrantes que aprenderam no estrangeiro e regressaram para ficar e partilhar sabores. Como Armando Marques, que esteve 18 anos em Basileia, Suíça, e aprendeu a cozinhar num navio. «Nunca tinha entrado numa cozinha», conta, «fui aprendendo e trabalhei nos melhores restaurantes.» O nome que deu ao seu restaurante diz tudo sobre o que o puxou de volta: «Sôdade di nha terra».
Nasceu ali no Rabil, perto da capital da ilha, e foi ao lado da antiga casa da família que comprou o terreno e ergueu o estabelecimento. Nas paredes estão fotografias suas ao lado de verdadeiras obras de arte culinária, bolos principescos, cascatas de fruta. «Trouxe mais de mil receitas, mas aqui não tenho tido muitas oportunidades de as cozinhar», afirma com uma certa nostalgia. Ainda assim, faz questão de, em cada pormenor, dar um toque de chef e colocar um pequeno adorno, como flores recortadas de uma cenoura e pétalas de vegetais.
Conta que várias figuras políticas já por ali passaram, desde Aristides Pereira, o primeiro presidente de Cabo Verde, natural da Boa Vista, ao próprio António Costa, atual secretário-geral do PS português. Certamente provaram a sua especialidade, uma salada de couve ripada com uma vinagreta especial, a acompanhar os peixes sempre frescos. «Tenho um pescador que me liga uma hora antes de chegar a terra a dizer o que tem», afiança.
Mais a sul, há um outro espaço também animado – e de que maneira – por uma emigrante. O Fon’Banana. Cristina Brito esteve 20 anos na Alemanha e voltou há cinco para Povoação Velha, a primeira localidade da ilha povoada e uma das atrações turísticas mais visitadas. Restaurou a casa dos pais, forrou o terraço com canas e vime, decorou-a com cestos coloridos e ali criou uma sala de refeições fresca e aconchegada. Ainda se provam as entradas quando se começa a ouvir o som dos acordes de ensaio de um violão. Depois um cavaquinho, um reco-reco e uma viola.
O grupo, Frank, Arikson, Aguinaldo, Marlo, Manel e Ailton, têm idades entre os 17 e os 63 anos e são todos de Povoação Velha. Frank, o mais velho, toca «há muitos anos, com amigos», mas tem ensinado os mais novos «numa espécie de escola de música», ao ar livre na pracinha da povoação. Três vezes por semana animam e enchem de mornas e coladeras o Fon’Banana.
A surpresa da noite é quando Cristina, que recebe os convidados com um sorriso quente e vai depois para a cozinha apurar o gosto às comidas (um cabrito que se desfaz na boca, galinha tenra guisada, lagosta grelhada…), entra na sala e canta, acompanhada pelos músicos. A sua voz invade a noite lá fora e junta-se às outras estrelas, as do céu. «É de família, a sua mãe tinha uma voz do outro mundo, era incrível», revela-nos Frank, mais tarde, quando lhe confessamos a nossa emoção.
Enquanto os cabo-verdianos emigrados ainda não voltavam à ilha, outros, estrangeiros, aportaram a ela, à procura da sua morabeza, da história, de um lugar de gentes afetuosas. O italiano Toni Libardoni está em Sal Rei há 15 anos e escolheu a Boa Vista depois de visitar todas as outras ilhas do arquipélago cabo-verdiano. «Sol e praia, era o que procurava. E está tudo aqui. Foi simples», justifica. Porém, foi mais profundo do que isso. A guest house que dirige nasceu do restauro total da casa de uma família judaica, os Ben’oliel.
Frank toca mornas no Fon’Banana. Além de cantá-las no restaurante, também dá aulas a crianças, ao ar livre, na pracinha de Povoação Velha.
Esses mesmo, Germano, a família do nhô David. «Estava em ruínas e recuperei tudo mantendo a estrutura original, as cores, os espaços», conta. Em baixo, onde era a loja da família judaica, é agora a receção, onde serve iguarias da terra e feitas ali em casa, como o doce de papaia, o grogue (aguardente) e o ponche (grogue com mel e limão). Lá dentro é um terraço interior, em quadrado, cercado na parte superior por uma balaustrada, que protege os quatro quartos, a que deu nomes de descobridores (Cadamosto, que chegou primeiro à Boa Vista, Magalhães e Vasco da Gama) e Ben’oliel, o patriarca judeu. Paredes amarelo-torradas, portadas azuis e brancas.
Foram só três dias de viagens de norte a sul, por estradas a rasgar colinas de pedras, caminhos de terra batida, desde a praia da Boa Esperança, onde ainda está aquele navio italiano encalhado (desde 1968), já só um esqueleto disforme de ferros ferrugentos, até ao sul, às paradisíacas praias de Santa Mónica e Varandinha. Estas têm mais de 18 quilómetros de areais brancos e macios que massajam os nossos pés quando caminhamos, águas mornas de um turquesa translúcido. Como dizia Juan Pujol, um catalão que dirige um hotel onde ficámos, «é pegar num cesto de morangos e champanhe e sentar-nos na areia a olhar o pôr do Sol naquelas praias desertas. Um entardecer perfeito». É esta a sua ilha perdida, Germano?
Reportagem publicada originalmente na edição de setembro de 2015 da revista Volta ao Mundo (número 213).
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