O dono da casa tratava-me por José Manuel. À primeira, achei que corrigi-lo seria um ruído no ritmo da conversa, não valia a pena. Depois, em todas as outras vezes, era demasiado tarde. Quando me recebeu, o dono da casa avisou-me logo acerca do frigorífico.

Era uma casa pequena no centro de Havana, cinco minutos a pé do Parque Central e do Capitólio. Subia-se por umas escadas até ao quarto, única divisão desse piso superior. No rés-do-chão, havia uma pequena cozinha, uma pequena casa de banho, a porta era uma cortina, e uma sala. No canto da sala, estava o frigorífico. O dono da casa explicou-me que, ao longo dos anos, já teve muitos hóspedes portugueses. Explicou que oferecia um preço honesto e, por essa razão, recebia visitantes de todo o mundo. Quando conseguiam comunicar em castelhano, melhor. Apreciava conversar, saber como é a vida fora de Cuba. Não a vida dos filmes ou dos livros, a vida mesmo, a vida das pessoas, o quotidiano. À chegada, transpirado, ouvi as instruções elementares acerca do funcionamento da casa. E, por fim, o frigorífico. Explicou-me que ia trocar de frigorífico. No dia seguinte, viriam vários potenciais compradores ver o velho e, assim que o vendesse, iria buscar o novo.

«E foi sem precisar de chave, que, na manhã seguinte, o dono da casa entrou. Vinha acompanhado por uma senhora enorme…»

Essa área, Centro Habana, é sobrepovoada. As ruas cruzam-se numa rede de paralelas e perpendiculares, ocupadas por gente a todas as horas. Carros e camiões passam devagar, a desviar-se do peões e de buracos enormes. O rugido desses motores antigos ressoa no interior das casas, mal protegidas por janelas e portas que o calor obriga a manter sempre abertas. E foi sem precisar de chave, que, na manhã seguinte, o dono da casa entrou. Vinha acompanhado por uma senhora enorme, que trazia uma toalhinha sobre o ombro. Ocasionalmente, utilizava-a para limpar o suor do rosto, do pescoço, da nuca. Ao longo da negociação, o dono da casa e eu ficámos a saber que a senhora era advogada, trabalhava no aeroporto. Conseguia comprar aquele frigorífico porque tinha uma filha a trabalhar como dançarina num hotel de cinco estrelas em Cancun.

A venda fez-se logo nessa primeira visita. O dono desmarcou por telemóvel os encontros com outros interessados. Depois disso, a senhora ficou mais uma hora, até chegar um rapaz com uma bicicleta de três rodas, onde, juntos, em movimentos coordenados, conseguimos pousar o frigorífico.

No fim dessa tarde, quando voltei dos meus passeios, estava o dono da casa sentado numa cadeira de baloiço, a contemplar o novo frigorífico, uma beldade de fabrico vietnamita. Sentei-me ao lado, noutra cadeira de baloiço. José Manuel, és tu que vais estrear o frigorífico novo, disse-me com solenidade épica. Contou-me que o anterior estava em ótimo estado, apenas tinha vinte e três anos; mas aquele era novo, tecnologia. Essas palavras eram interrompidas ocasionalmente por barulho que chegava da rua e que se sobrepunha à sua voz. Dando-me palmadas de felicitação no ombro, certificando-se de que eu entendia a importância daquele momento, o dono da casa voltou a repetir: José Manuel, és tu que vais estrear o frigorífico novo.

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Crónica publicada originalmente na edição de junho de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 308.

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