Ilha do Farol: uma crónica de Rui Peres
É difícil encontrar um lugar português onde os faróis dos carros não alumiem. Nesse sentido, a ilha do Farol é uma tentativa de equilibrar mais o mundo. Não é possível subir nem descer passeios altos, porque não os há. O que é bom para as rótulas. Não dá para buzinar o volante dos automóveis, porque não os há. O que é bom para os brônquios. Quando se chega, de barco, a partir de Olhão ou de Faro, antes demais, observa-se. Instalados próximos da margem, numa espécie de cais, estão os barcos, sem ordem específica, girando sobre si próprios. A quantidade de barcos é insignificante para a quantidade de mar. Não é preciso procurá-lo. Porque nunca se está de costas para ele. A ilha tem a sua ordem. E é importante tentar absorvê-la. As casas, apesar de não se confundirem com flores, partem todas de um princípio expressivo: são azuis, cores-de-rosa, verdes ou amarelas. As ruas são poucas e curtas, a vegetação é rasteira, há poucos serviços e muito repouso. É um bom lugar para adormecer. Faltam algumas peças, mas o essencial vence. Um pão, que se encomenda no dia anterior, a fruta, os legumes, e outros consumos alimentares básicos, o sol que enxuga as toalhas, a água que se acumula nos reservatórios dos telhados das casas, as conversas retomadas que ficaram paradas nos anos anteriores, a gentileza na mistura dos diálogos, o ar leve que abraseia os corpos e o céu normalmente limpo. Há rituais nas cores indecisas do entardecer: as ruas são povoadas pelas luzes dos candeeiros, as pessoas juntam-se em cima dos terraços, crentes de que o sol se deitará, mais coisa menos coisa, sempre no mesmo sítio, e tomará conta da luz que os contorna; além disso, quando a maré baixa, as pessoas, de joelhos na areia, ou de cócoras, apanham conquilhas durante muito tempo, como se estivessem a nidificar. De madrugada, de calção e camisa desfraldada, com o peito e os pés a descoberto, passeia-se a ilha pelo lado da ria. Um pescador fuma, de forma aplicada. E nem a convulsão de um peixe, quando capturado, lhe saca o cigarro da boca. Durante a caminhada, os ruídos são poucos e vêm das brasas das casas junto à ria, onde se assa o peixe fresco. Na volta, e já do lado do mar, desde os famosos bolos no centro da ilha da Culatra até ao Farol de Santa Maria – que parece um telescópio gigante pousado na terra – os pés vão andando e, quando tocam um no outro, é para aplaudir a areia branca, fina, passada a ferro pelas línguas de água mansa que chegam do Mediterrâneo. Este trajeto convida ao mergulho e nega o jogo do nosso recuo para com a água. Em relação ao isolamento, que nos tem vendado, dá-nos uma leitura: não estamos preparados para estar separados temporariamente. Mas as ilhas estão sempre assim, vivem assim, separadas pelo mar. Temos algo a aprender com elas.
Rui Peres nasceu em 1982 na aldeia de Picote, Miranda do Douro, Trás-os-Montes, Portugal. É licenciado em Engenharia de Telecomunicações e Informática mas continua a usar máquina de escrever. Trabalhou em projectos para aviões e comboios mas prefere andar a pé. Viveu em vários países. Editou centenas de poemas nas toalhas de mesa dos jantares de família. Está a cumprir o seu sonho – dar a volta ao mundo. Partilha histórias com pessoas e lugares no seu projeto @mal.parado.
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