Numa roda, no centro da praça e no centro da multidão, as mulheres giram as suas longas saias, são círculos de cores vivas, flores bordadas, vermelho de cetim, verde, amarelo, cores a arderem e a prenderem o olhar de toda a gente. As notas da marimba são lançadas à pressa por um homem com duas baquetas numa mão e apenas uma na outra. Parece não querer perder um instante que só ele reconhece, que escapa à mesma velocidade com que as mulheres rodam, perseguem os leques que seguram numa das mãos, luvas brilhantes, por entre essa chuva de notas de marimba. As mulheres seguram os leques em frente ao rosto, coberto por uma máscara de madeira, peruca de cabelo grosso. Há grupos de voluntários de mãos dadas para conter a multidão que rodeia esta dança, mas essa é uma barragem imperfeita e são frequentes aqueles que se perdem entre os bailarinos. Está agora um jovem aluno de uniforme, mochila às costas, a tentar desviar-se destes objetos que rodam, passinhos curtos, sapatos de cabedal grosso.

«Estes céus sobre Granada, na Nicarágua, estão em ruínas, são destroços de uma beleza tranquila, luminosa.»

Estes céus foram esculpidos sobre os edifícios coloniais, imitam as formas das fachadas das igrejas, os detalhes das torres e das estátuas a esboroarem-se, de contornos lisos. Estes céus sobre Granada, na Nicarágua, estão em ruínas, são destroços de uma beleza tranquila, luminosa. Estes são os céus necessários para receber a festa que nos rodeia. A marimba foi substituída por uma orquestra espontânea, os músicos entre a múltidão, gente de pele sublimada por esta luz, os trompetes e os trombones, o bombo e os pratos a gerirem um tempo colectivo, o tocador de tuba com as bochechas cheias de ar. E toda a gente a dançar.

Misturado com a brisa, que começa agora a planar no tempo, o cheiro da fruta fresca: mangas, cachos de bananas, montes de ananás e papaia, grandes talhadas de melancia, melancia garrida, as tais cores vivas, a pingarem doce. Também os carrinhos dos vendedores de gelados, empurrados pelo empedrado da praça, pintados à mão com desenhos de gelados, a campainha insistente a dar sinal de presença, como se fosse necessário, rodeado de crianças com olhos grandes, a receberem com as duas mãos gelo triturado, coberto por xaropes que tingem as línguas das crianças. E aves de todos os tamanhos a cruzarem o céu, a distância dessa luz, a pousarem ou a levantarem voo nas árvores da praça, o seu coro ininterrupto sopreposto à música e às vozes.

Vêem-se daqui os autocarros que trouxeram grande parte destas pessoas, estão pintados com as mesmas cores dos xaropes doces, da fruta, dos vestidos das mulheres, da alegria. Têm chamas pintadas nos para-choques e mensagens sobre Dios nos vidros: En Dios Confiamos ou Solo Dios Sabe si Volveré. Serão também esses autocarros a levá-las para casa, mas isso será muito mais tarde. Agora, dançam. Gente a rir-se com máscaras de morte ou de diabo, gente à civil, também a rir-se, também a dançar, gente que aproveita este instante preciso e que está muito longe de imaginar o fim da festa.

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Crónica publicada na edição de agosto de 2020 da revista Volta ao Mundo (número 310).

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